~ Ajahn Chah ~

[1] O Wat Wana Potiyahn [2] aqui é certamente muito tranquilo, mas isso pouco significa se nossas mentes não estiverem calmas. Todos os lugares são tranquilos. Que alguns pareçam nos distrair é por causa das nossas mentes. No entanto, um lugar sossegado pode ser útil para nos acalmar, dando-nos a oportunidade de treinar e, assim, harmonizar com esse sossego.

Vocês devem ter em mente que essa prática é difícil. Treinar outras coisas não é tão difícil, é fácil, mas a mente humana é dura de treinar. O Senhor Buddha treinou sua mente. A mente é uma coisa importante. Tudo dentro desse sistema corpo-mente está unido. Olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo recebem sensações e as enviam à mente, que é o supervisor de todos os outros órgãos sensoriais. Por isso é importante treinar a mente. Se ela estiver bem treinada, todos os problemas acabam. Se ainda houver problemas é porque a mente ainda duvida, ela não está em conformidade com a verdade. Por isso há problemas.

Então, reconheçam que todos vocês vieram completamente preparados para praticar o Dhamma. Estejam em pé, sentados, caminhando ou reclinados, as ferramentas que vocês precisam para praticar foram todas providenciadas, onde vocês estiverem. Elas estão aí, assim como o Dhamma. O Dhamma é algo que está em todo lugar. Exatamente aqui, na terra ou na água…. em qualquer lugar… o Dhamma está sempre lá. O Dhamma é perfeito e completo, é a sua prática que ainda não é completa.

O Senhor Buddha, Completamente Iluminado, ensinou maneiras por meio das quais todos nós podemos praticar e conhecer esse Dhamma. Não é uma grande coisa, apenas uma pequena coisa, mas é correta. Por exemplo, os cabelos. Se nós conhecemos apenas um dos fios de cabelo, então conhecemos todo o cabelo, o nosso e o dos outros. Nós entendemos que eles são simplesmente “cabelos”. Conhecendo um fio de cabelo nós conhecemos todos os cabelos.

Ou considerem pessoas. Se vemos a verdadeira natureza das condições dentro de nós mesmos, então sabemos de todas as outras pessoas no mundo também, porque todas as pessoas são iguais. Dhamma é assim. É uma coisa pequena e ainda assim é grande. Ou seja, ver a verdade de uma condição é ver a verdade de todas elas. Quando conhecemos a verdade como ela é todos os problemas chegam ao fim.

No entanto, o treinamento é difícil. Por que é difícil? É difícil por causa do querer, taṇhā. Se não “querem’” vocês não praticam. Porém, se praticarem a partir do desejo, vocês não verão o Dhamma. Pensem nisso, todos vocês. Se não querem praticar vocês não podem praticar. Primeiro vocês devem querer praticar para depois realmente praticarem. Um passo a frente ou um recuo e vocês encontrarão o desejo. É por isso que os cultivadores do passado disseram que esta prática é algo extremamente difícil de fazer.

Você não vê o Dhamma por causa do desejo. Às vezes o desejo é muito forte, você quer ver o Dhamma de imediato, mas o Dhamma não é a sua mente – a sua mente ainda não é o Dhamma. O Dhamma é uma coisa e a mente, outra. Também não se pode pensar que tudo aquilo que gostamos seja o Dhamma e o que não gostamos não seja. Não funciona dessa forma.

Na verdade, esta nossa mente é simplesmente uma condição da natureza, como uma árvore na floresta. Se você quer uma prancha ou um feixe, estes devem vir da árvore, mas a árvore ainda é apenas uma árvore. Ainda não é um feixe ou uma prancha. Antes que a árvore possa ser realmente útil para nós devemos serrá-la em vigas ou tábuas. É a mesma árvore, mas transformada numa outra coisa. Intrinsecamente é apenas uma árvore, uma condição da natureza. Mas em seu estado bruto ainda não é de muita utilidade para aqueles que precisam de madeira. Nossa mente é assim. É uma condição da natureza. Como tal, ela percebe pensamentos, discrimina em termos de beleza e feiura, e assim por diante.

Esta nossa mente deve ser mais treinada. Nós não podemos simplesmente deixá-la ser. É uma condição da natureza… treiná-la para perceber que é uma condição da natureza. Melhore a natureza de modo que seja adequada às nossas necessidades, que é o Dhamma. Dhamma é algo que deve ser praticado e trazido para dentro.

Se você não praticar você não vai saber. Falando francamente, você não conhecerá o Dhamma se apenas o ler ou estudar. Ou, se você o conhece, o seu conhecimento ainda está imperfeito. Por exemplo, esta escarradeira aqui. Todos sabem que é uma escarradeira, mas não conhecem verdadeiramente a escarradeira. Porque não a conhecem plenamente? Se eu chamasse esta escarradeira de panela, o que diria você? Suponha que de cada vez que eu a pedisse dissesse “Por favor, traga aquela panela aqui”, isso iria confundi-lo. Por quê? Porque você não conhece plenamente a escarradeira. Se você a conhecesse, não haveria problema. Você poderia simplesmente pegar aquele objeto e entregá-lo a mim, porque na verdade não há qualquer escarradeira. Você entendeu? É uma escarradeira devido a uma convenção. Esta convenção é aceita em todo o país, por isso é escarradeira. Mas não há qualquer escarradeira “real”. Se alguém a quiser chamar panela pode ser uma panela. Ela pode ser o que você a chamar. Isso é chamado “conceito”. Se nós conhecermos plenamente a escarradeira, mesmo se alguém lhe chamar panela não há problema. O que quer que outros lhe possam chamar, nós não nos perturbamos porque não somos cegos à sua verdadeira natureza. Este é aquele que conhece o Dhamma.

Agora, vamos retornar a nós mesmos. Suponham que alguém diga: “você é louco” ou “você é estúpido”, por exemplo. Mesmo que isso possa não ser verdade, vocês não se sentiriam tão bem. Tudo se torna difícil por conta das nossas ambições de ter e realizar. Por conta desses desejos de tomar para nós e de ser, porque não sabemos de acordo com a verdade, não temos contentamento. Se conhecêssemos o Dhamma, se fôssemos iluminados pelo Dhamma, aversão e ilusão desapareceriam. Quando entendermos o modo como as coisas são, não haverá nada para servir de base a elas.

Por que a prática é tão difícil e árdua? Por causa dos desejos. Assim que nos sentamos para meditar queremos estar em paz. Se não quiséssemos encontrar a paz, não iríamos nos sentar, não iríamos praticar. Assim que nos sentamos, queremos que a paz esteja bem ali, mas querendo que a mente esteja calma cria-se confusão, e sentimo-nos inquietos. É assim que acontece. Então, o Buddha diz: “Não fale com desejo, não se sente com desejo, não saia com desejo… O que quer que faça, não o faça com desejo”. Desejo significa querer. Se você não quiser fazer algo você não irá fazê-lo. Se nossa prática chegar a esse ponto, podemos ficar muito desanimados. Como podemos praticar? Assim que nos sentamos há desejo na mente.

É por causa disso que o corpo e a mente são difíceis de observar. Se eles não são o ‘eu’ nem pertencem ao ‘eu’, então ao que eles pertencem? É difícil resolver essas coisas, temos de confiar na sabedoria. O Buddha diz que devemos praticar com “deixar passar”, não é? Se deixarmos passar, então simplesmente não praticamos, certo?… Porque nós já deixamos passar.

Suponha que fomos comprar alguns cocos no mercado, e enquanto carregávamos-mos de volta alguém tenha perguntado:

“Para que você comprou esses côcos?”

“Eu os comprei para comer”.

“Você vai comer as cascas também?

“Não”.

“Eu não acredito em você. Se você não vai comer as cascas, então, por que você as compra também?”

Bem, o que você diria? Como você vai responder à pergunta deles? Nós praticamos com desejo. Se não tivéssemos desejo nós não praticaríamos. Praticar com desejo é taṇhā. Contemplar deste modo pode dar origem à sabedoria, você sabe. Por exemplo, aqueles côcos: Você vai comer as cascas também? Claro que não. Então porque levá-los? Porque a hora de jogá-las fora ainda não chegou. Elas são uteis para envolver o côco. Se, depois de comer o côco, você joga as cascas fora, não há problema.

Nossa prática é assim. O Buddha disse: “Não ajam no desejo, não falem pelo desejo, não comam com desejo”. Ficando em pé, andando, sentando-se ou se reclinando… seja o que for… não o façam com desejo”. Isso significa fazê-lo com desapego. É assim como comprar os côcos do mercado. Nós não vamos comer as cascas, mas ainda não está na hora de jogá-las fora. Nós ficamos com elas, inicialmente. É assim como a prática é. Conceito e transcendencia são coexistentes, tal como um côco. A polpa, as conchas e a casca estão todas juntas. Quando compramos, nós compramos o conjunto todo. Se alguém quiser nos acusar de comer cascas de côco, isto é problema dele, nós sabemos o que estamos fazendo.

Sabedoria é algo que cada um de nós encontra por si mesmo. Para vê-la, não devemos ir nem depressa nem devagar. O que devemos fazer? Ir para o lugar onde não há nem depressa nem devagar. Ir depressa ou devagar não é o caminho.

Mas todos nós somos impacientes, estamos com pressa. Tão logo começamos já queremos chegar ao fim, não queremos ficar pra trás. Queremos ter sucesso. Quando chega a hora de consertar suas mentes pela meditação, algumas pessoas vão longe demais… elas acendem incenso, prostram-se e fazem um voto: “enquanto este incenso não tiver sido completamente queimado eu não me levantarei de minha almofada [de meditação] mesmo que eu tenha um colapso ou morra, não importa o que aconteça… eu morrerei sentado”. Tendo feito seu voto, sentam-se. Tão logo se sentam, as hordas de Mara [4] vêm correndo de todos os lados. Elas se sentam por um instante e já pensam que o incenso queimou-se todo. Elas abrem os olhos para dar uma espiada… “Ó, ainda faltam séculos!”.

Eles rangem os dentes e sentam-se um pouco mais, sentindo calor, perturbados, agitados e confusos… Chegam a tal ponto que pensam: “Deve ter acabado agora”… Dão mais uma olhadinha… “Ó, não! Não está nem na metade ainda!’”

Duas ou três vezes e ainda não acabou, então eles simplesmente desistem, finalizam e sentam-se lá odiando a si mesmos. “Eu sou tão idiota, estou tão desesperado!” Eles se sentam e se odeiam, sentindo-se um caso perdido. Isso só gera frustração e obstáculos. Isso é chamado o impedimento pela má vontade. Eles não podem culpar os outros então eles culpam a si mesmos. E por que isso? É tudo por causa do desejo.

De fato, não é necessário passar por tudo isso. Concentrar-se significa se concentrar com desapego, não se concentrar nos nós. Mas talvez leiamos as escrituras sobre a vida do Buddha, como ele se sentou sob a Árvore da Bodhi e firmou sua determinação: “Tanto quanto eu não tiver atingido a Suprema Iluminação eu não me levantarei deste lugar, mesmo que meu sangue se seque”.

Ao ler isto nos livros, pensamos que podemos experimentar por nós mesmos. Fá-lo-emos como o Buddha. Mas não levamos em conta de que o nosso carro é pequeno. O carro do Buddha era grande, podia levar tudo de uma só vez. Apenas com o nosso carrinho, pequenino, como poderemos levar tudo de uma só vez? É uma história bem diferente.

Porque pensamos assim? Porque somos demasiado extremistas. Às vezes, vamos bem baixo, outras vezes muito acima. O ponto de equilíbrio é muito difícil de conseguir.

Agora eu falo somente por experiência própria. No passado, minha prática foi assim. Praticar a fim de obter além do querer… se não queremos, podemos praticar? Eu estava empacado nisso. Mas praticar com querer é sofrimento. Eu não sabia o que fazer, estava confuso. Então, percebi que a prática que é constante é o que importa. Deve-se praticar de forma consistente. Isso é chamado de prática que é “consistente em todas as posturas”. Continuem refinando a prática, não deixem que ela se torne um desastre. Prática é uma coisa, desastre é outra [5]. A maioria das pessoas geralmente cria desastre. Quando têm preguiça, não se preocupam em praticar, elas só praticam quando se sentem energéticas. Esta era a minha tendência.

Agora, perguntem a si mesmos, isto está certo? Praticar quando se está a fim e não praticar quando não se está a fim: isso está em concordância com o Dhamma? Isso é correto? Está em linha com os ensinamentos? Isso é o que faz a prática ser inconsistente.

Estando a fim ou não, vocês deveriam praticar da mesma forma: essa é a maneira que o Buddha ensinou. A maioria das pessoas espera até que estejam a fim antes de praticar e, quando não estão a fim, elas não se importam. Isso é o mais longe que chegam. Isso se chama “desastre”, não é prática. Na verdadeira prática, estejam felizes ou deprimidos, vocês praticam; seja difícil ou fácil, vocês praticam; esteja quente ou frio, vocês praticam. É assim direto. Na prática real, seja em pé, caminhando, sentados ou reclinados, vocês deve ter a intenção de continuar regularmente, fazendo com que seus satis sejam consistentes em todas as posições.

Num primeiro momento, parece como se devêssemos ficar em pé tanto tempo quanto andamos, andamos com a mesma duração que sentamos, e sentamos pelo mesmo tempo em que ficamos deitados…. eu tentei isso, mas não fui capaz. Se um praticante fica em pé, caminha, senta ou deita, tudo com a mesma duração, quantos dias é que ele vai aguentar? Fique em pé por cinco minutos, sente-se por cinco minutos… eu não conseguiria manter isto por muito tempo. Então, pensei um pouco mais sobre isto: “O que será que isto quer dizer? As pessoas não conseguem praticar desta maneira”.

Então eu entendi… “Ó, isto não está certo porque é impossível. Ficar em pé, caminhar, sentar e deitar… faça com que estas posturas sejam consistentes. Fazer isto da maneira que está nos livros é impossível.”

Mas é possível fazer isto: a mente… considere apenas a mente. Para ter sati, recordação, sampajañña, auto-consciência e paññā, sabedoria geral… isso você pode fazer. É algo que realmente vale a pena praticar. Isso significa que enquanto estamos de pé, temos sati; enquanto caminhamos, temos sati; enquanto sentamos, temos sati; e enquanto reclinamos, temos sati, consistentemente. Isso é possível. Colocamos a atenção ao ficarmos de pé, ao caminharmos, ao sentarmos, ao deitarmos – em todas as posições.

Quanto a mente estiver treinada dessa forma, ela constantemente recordará Buddho, Buddho, Buddho… que é saber. Saber o quê? O que é certo e errado todo o tempo. Sim, isso é possível. Isso é ir direto para a verdadeira prática. Ou seja, de pé, caminhando, sentando ou deitando existe sati contínuo.

Então, vocês devem entender aquelas condições que vocês devem abandonar e aquelas que vocês devem cultivar. Vocês conhecem a felicidade, vocês conhecem a infelicidade. Quando vocês conhecem a felicidade e a infelicidade, suas mentes irão se fixar naquele ponto livre de felicidade e infelicidade. Felicidade é o caminho fácil, kāmasukallikānuyogo. Infelicidade é o caminho rigoroso, attakilamathānuyogo. Se nós conhecermos esses dois extremos, nós rejeitaremos ambos. Nós sabemos quando a mente está inclinada para a felicidade ou infelicidade e rejeitamos isso, e não permitimos que isso continue. Nós temos esse tipo de consciência, aderimos ao Caminho Uno, o único Dhamma. Nós aderimos à consciência, não permitindo que a mente siga suas inclinações.

Mas, em sua prática, não tende a ser assim, não é? Você segue suas inclinações. Se você segue suas inclinações fica fácil, não é? Mas esta é a facilidade que causa sofrimento, como alguém que não pode ser incomodado no trabalho. Ele fica calmo, mas quando chega a hora de comer, ele não alcançou nada. Isto é o que acontece.

Então, eu disputava com muitos aspectos do ensinamento do Buddha no passado, mas eu realmente não conseguia vencê-los. Hoje em dia eu os aceito. Aceito que os muitos ensinamentos do Buddha são profundamente diretos, de modo que tomo esses ensinamentos e os uso para treinar tanto a mim mesmo quanto aos outros.

A prática que é importante é patipadā. O que é patipadā? É simplesmente todas as nossas várias atividades, ficar de pé, andar, sentar, reclinar e tudo mais. Este é o patipadā do corpo. Agora o patipadā da mente: quantas vezes no decurso do dia de hoje você já se sentiu deprimido? Quantas vezes você já se sentiu bem? Houve alguns sentimentos perceptíveis? Devemos conhecer-nos assim. Depois de ter visto esses sentimentos podemos deixá-los passar? O que ainda não conseguirmos deixar passar, temos de trabalhar com ele. Quando vemos que ainda não conseguimos abrir mão de algum sentimento especial devemos tomá-lo e examiná-lo com sabedoria. Pensar nele. Trabalhar com ele. Isto é a prática. Por exemplo, quando você está se sentindo zeloso, pratique, e em seguida, quando você se sentir preguiçoso, tente continuar a prática. Se não conseguir continuar a “toda a velocidade” pelo menos faça-o pela metade. Não desperdice o dia sendo preguiçoso e não praticando. Fazer isso levará ao desastre, não é o caminho de um cultivador.

Agora, eu tenho ouvido pessoas dizerem: “Ó, nesse ano eu estava realmente em um mau caminho”.

“Por quê?”

“Eu estive doente todo o ano. Eu não pude praticar”.

Ó, se eles não praticam quando a morte está perto, então quando praticarão? Se eles se sentem bem, vocês pensam que eles praticarão? Não, eles apenas se perdem na felicidade. Se eles estão sofrendo, eles ainda não praticam, e se perdem nisso. Eu não sei quando as pessoas acham que vão praticar! Elas podem ver somente que estão doentes, com dor, quase mortos de febre… muito bem, assuma isso com tudo, é aqui que a prática começa. Quando as pessoas estão se sentindo felizes, isso simplesmente sobe às suas cabeças, e elas se tornam vãs e vaidosas.

Devemos cultivar a nossa prática. O que isto significa é que se você está feliz ou infeliz você deve praticar da mesma forma. Se você está se sentindo bem, você deve praticar, e se você estiver se sentindo doente, você também deve praticar. Aqueles que pensam: “Este ano eu não pude praticar nada, eu estava doente o tempo todo”… se essas pessoas se sentissem bem, elas apenas andariam por aí cantando canções. Este é um pensamento errado, não é pensamento correto. É por isso que os cultivadores do passado todos mantiveram o treinamento constante do coração. Se as coisas estão indo mal, apenas as deixam estar no corpo, não na mente.

Houve um tempo em minha prática, depois de eu ter praticado cerca de cinco anos, que eu senti que a convivência com os outros era um obstáculo. Eu sentava no meu kuti e tentava meditar e as pessoas continuavam passando para conversar e me perturbando. Eu fugi para viver sozinho. Eu pensava que não podia praticar com essas pessoas me incomodando. Eu estava cansado, então fui morar em um pequeno e abandonado mosteiro na floresta, perto de uma pequena aldeia. E fiquei lá sozinho, falando com ninguém – porque não havia mais ninguém com quem falar.

Depois de estar lá cerca de quinze dias, o pensamento surgiu, “Humm. Seria bom ter um principiante ou pa-kow [7] aqui comigo. Ele poderia me ajudar com alguns pequenos trabalhos”. Eu sabia que ia chegar, e com certeza, lá estava ele!

“Ei! Você é um personagem real! Você diz que está farto de seus amigos, farto de seus companheiros monges e noviços, e agora você quer um iniciante. O que é isso?”

“Não”, ele diz, “Eu quero um bom principiante”.

“Aí está! Onde estão todas as boas pessoas, você pode encontrar alguma? Onde você vai encontrar uma boa pessoa? Em todo o mosteiro havia apenas pessoas não boas. Você deve ter sido a única pessoa boa, para ter que fugir assim!”

Vocês têm que fazer o acompanhamento assim, sigam o caminho de seus pensamentos até verem…

“Hmm. Este é o mais importante. Onde uma boa pessoa pode ser encontrada? Não existem boas pessoas, vocês devem encontrar a pessoa boa dentro de si mesmo. Se vocês são bons em si mesmos, então onde quer que vocês forem será bom. Se os outros os criticarem ou elogiarem, vocês ainda serão bons. Se vocês não são bons, então quando os outros fizerem críticas, vocês ficam com raiva, e quando eles elogiam, vocês ficam satisfeitos.

Àquela época, eu refleti sobre isso e cheguei à conclusão de que é verdade, desde aquele dia até hoje. Bondade deve ser encontrada dentro. Tão logo vi isso, aquela vontade de sair correndo desapareceu. Depois disso, quando aquele desejo surgia, eu o deixava passar. Quando ele se mostrava, eu estava atento e mantinha minha vigilância sobre ele. Assim, eu tinha uma fundação sólida. Onde quer que eu morasse, se as pessoas me condenavam ou diziam qualquer coisa, eu refletiria que o ponto não é que eles fossem bons ou maus. Bem e mal devem ser vistos dentro de nós mesmos. Como quer que as outras pessoas sejam, é uma preocupação delas.

Não vão pensar: “Ó, hoje está muito quente” ou “Hoje está muito frio” ou “Hoje está….” Como quer que o dia esteja isto é apenas a maneira como ele está. Na verdade, vocês simplesmente estão culpando o tempo pela própria preguiça de si mesmos. Devemos ver o Dhamma dentro de nós mesmos, então há um tipo mais seguro de paz.

Assim, para todos os que têm vindo praticar aqui, mesmo que seja apenas por alguns dias, muitas coisas ainda irão surgir. Muitas coisas ocorrerão, das quais vocês ainda não estão cientes. Há algum pensamento correto, algum pensamento errado… muitas, muitas coisas. Por isso eu digo que essa prática é difícil.

Apesar de muitos de vocês poderem experienciar alguma paz quando se sentam em meditação, não se apressem em se autoparabenizarem. Da mesma maneira, se existe alguma confusão não se culpem. Se as coisas parecem boas não se deleitem com elas, e se elas não são boas não tenham aversão por elas. Apenas olhem para tudo isso, olhem para o que vocês têm. Apenas olhem, não se aborreçam julgando. Se isso é bom não se apeguem tão depressa, se é ruim, não se agarrem a isso. Bom e ruim podem ambos morder, então não se apeguem depressa a eles.

A prática é simplesmente sentar, sentar e observar tudo. Boa disposição e má disposição vão e vêm como é da sua natureza. Não façam só elogios à sua mente nem estejam sempre a condená-la, saibam qual o tempo certo para essas coisas. Quando for o momento de a elogiar, façam-no, mas só um pouco, não abusem. É como ensinar uma criança, às vezes temos de ralhar um pouco com ela. Na nossa prática, às vezes, talvez tenhamos de nos castigar, mas não se castiguem o tempo todo. Se nos castigarmos o tempo todo, depois de algum tempo abandonaremos a prática. Mas também não podemos estar sempre a nos divertirmos e a relaxar o tempo todo. Não é a forma de praticarmos. Praticamos de acordo com o Caminho do Meio. O que é o Caminho do Meio? O Caminho do Meio é difícil de seguir, não podemos confiar na nossa disposição e desejos.

Não pensem que apenas sentar-se com os olhos fechados é prática. Se vocês pensam desta forma, então mudem rapidamente o pensamento! Prática firme é ter a atitude de prática enquanto se está em pé, andando, sentado e deitado. Ao sair da meditação sentada, reflitam que vocês estão simplesmente mudando de postura. Se vocês refletirem desta forma, terão paz. Onde quer que estejam, vocês terão com vocês, constantemente, esta atitude de prática, vocês terão uma firme conscientização dentro de si mesmos.

Aqueles de vocês que, ao acabarem as suas sessões noturnas de meditação, simplesmente se entregam aos seus humores, deixando suas mentes vagarem por onde querem o dia inteiro, irão descobrir que, na próxima noite quando sentarem-se em meditação, a única coisa que obterão será o retorno esparramado de todo o seu pensar sem propósito. Não há fundação para a calma porque ela foi deixada esfriando durante todo o dia. Se praticarem dessa forma, suas mentes ficarão cada vez mais longes da prática. Quando pergunto a alguns de meus discípulos: “Como anda sua meditação?”. Eles dizem: “Ah, tudo já foi.” Vocês veem? Eles podem mantê-la por um mês ou dois, mas em um ano tudo terá terminado.

Por que isto? É porque eles não tomam em conta esse aspecto essencial na sua prática. Quando eles terminam o sentar eles perdem a samādhi. Sentam-se por periodos cada vez mais curtos até que, por fim, mal começam querem logo terminar. Eventualmente já não se sentam. É o mesmo com a protração à imagem do Buddha. No início fazem o esforço da prostração todas as noites antes do adormecer, mas após algum tempo as suas mentes começam a devanear.  Rapidamente deixam as prostrações, limitando-se a baixar a cabeça, até que por fim nada fazem. Param completamente a prática.

Por isso, para entender a importância de sati, pratique constantemente. Prática correta é pratica firme. Seja em pé, andando, sentando ou reclinando, ela deve continuar. Isso significa que a prática, meditação, é feita na mente e não no corpo. Se sua mente é zelosa, é conscienciosa e fervorosa, então haverá consciência. A mente é algo importante, pois é ela que supervisiona tudo o que fazemos.

Quando nós compreendemos corretamente, então nós praticamos corretamente. Quando nós praticamos corretamente nós não nos extraviamos. Mesmo se nós fizermos só um pouquinho está bem. Por exemplo, quando vocês terminam de meditar, lembrem que vocês não estão finalizando a meditação, você estão simplesmente mudando de postura. Suas mentes ainda estão focadas. Seja sentados, em pé, caminhando, ou reclinados, vocês mantém sati com vocês. Se vocês têm esse tipo de consciência, vocês podem manter suas práticas internas. De noite, quando se sentarem novamente, a prática continua sem interrupção. Seus esforços são contínuos, permitindo que a mente atinja a calma.

Isto é chamado prática constante. Se estamos falando ou fazendo outras coisas nós devemos tentar fazer a prática contínua. Se a nossa mente tem recordação e autoconscientização de forma contínua, a nossa prática vai desenvolver-se naturalmente; gradualmente tudo se harmonizará. A mente encontrará paz, porque ela saberá o que é certo e o que é errado. Ela vai ver o que está acontecendo dentro de nós e perceber a paz.

Se quisermos desenvolver sīla (restrição moral) ou samādhi (firmeza da mente) é preciso primeiro ter paññā (sabedoria). Algumas pessoas pensam que vão desenvolver restrição moral em um ano, samādhi no próximo e sabedoria no seguinte. Elas acham que essas três coisas são separadas. Elas pensam que este ano elas vão se desenvolver, mas se a mente não é firme (samādhi), como podem fazer isso? Se não houver entendimento (paññā), como podem fazer isso? Sem samādhi ou paññā, sīla será desleixada.

De fato, estes três reúnem-se no mesmo ponto. Quando temos sīla temos samādhi, quando temos samādhi temos paññā. Eles são todos um, como uma manga. Pequena ou totalmente crescida, é uma manga. Quando está madura ainda é a mesma manga. Se pensarmos em termos simples como este, podemos vê-lo com mais facilidade. Não temos de aprender um monte de coisas, apenas saber estas coisas, conhecer a nossa prática.

Quando se trata da meditação, algumas pessoas não conseguem o que querem, e então simplesmente desistem, dizendo que não têm ainda o mérito para praticar meditação. Elas podem fazer coisas ruins, elas têm esse tipo de talento, mas não têm o talento para fazer coisas boas. E elas acrescentam que não têm uma fundação boa o bastante. Este é o modo como as pessoas são, elas tomam o lado de suas próprias impurezas.

Agora que você tem a oportunidade de praticar, por favor, entenda que se você achar difícil ou fácil desenvolver samādhi, isso vem inteiramente de você, e não de samādhi. Se for difícil, isso é porque você está praticando de forma errada. Em nossa prática temos de ter a “perspectiva correta” (sammā-diṭṭhi). Se nosso ponto de vista está correto, tudo o mais está correto: entendimento correto, pensamento correto, linguagem correta, ação correta, meios de vida correto, esforço correto, lembrança correta, concentração correta – o Caminho Óctuplo. Quando há o entendimento correto, todos os outros fatores o seguirão.

Aconteça o que acontecer, não deixe que a sua mente se desvie para fora do caminho. Olhe para dentro de si mesmo e você verá claramente. Para a melhor prática, a meu ver, não é necessário ler muitos livros. Pegue todos os livros e tranque-os. Basta ler sua própria mente. Vocês todos estão enterrando-se em livros desde o momento que entraram na escola. Acho que agora você tem a oportunidade e o tempo, pegue os livros, coloque-os num armário e tranque a porta. Apenas leia a sua mente.

Sempre que algo surge na mente, quer você goste ou não, pareça certo ou errado, apenas corte-o pensando: “Isso não é uma coisa certa”. Tudo que surgir apenas corte: “Não tenho certeza, não tenho certeza”. Com este único machado você pode cortar tudo. É tudo “não tenho certeza”.

Durante este próximo mês em que vocês ficarão neste mosteiro na floresta, farão muitos progressos. Verão a verdade. Este “não tenho certeza” é realmente algo importante. É algo que desenvolve a sabedoria. Quanto mais você olha, mais você vai ver a natureza do “não tenho certeza”. Depois que você eliminar alguma coisa com “não tenho certeza” ela pode vir circulando ao redor e aparecer novamente. Sim, é verdadeiramente “não tenho certeza.” O que quer que apareça apenas cole este rótulo em tudo… “não tenho certeza”. Você fixa o sinal… “não tenho certeza”… e algum tempo, quando chegar a hora, ela surge de novo … “Ah, não tenho certeza”. Escave aqui! Não tenho certeza. Você verá esta mesma coisa velha que tem enganado você mês a mês, ano após ano, desde o dia em que nasceu. Há apenas este que tem enganado você o tempo todo. Veja isto e perceba a forma como as coisas são.

Quando sua prática atingir este ponto, vocês não se apegarão a sensações, porque todas elas são incertas. Vocês já tinham percebido alguma vez? Talvez vocês vejam um relógio e pensem: “Ó, este é lindo”. Vocês o compram e vejam…  em poucos dias vocês estão já estão entediados com ele. “Esta caneta é realmente muito bonita”, então, vocês se dão ao trabalho de comprar uma. Em poucos meses vocês se cansam dela novamente. É assim que são as coisas. Onde é que existe alguma certeza?

Se conseguimos ver todas essas coisas como incertas então seu valor se desvanece. Todas as coisas se tornam insignificantes. Por que devemos nos agarrar a coisas que não têm valor? Nós as mantemos apenas como poderíamos manter um pano velho para limpar nossos pés com ele. Vemos todas as sensações como iguais em valor, porque todas elas têm a mesma natureza.

Quando entendemos as sensações entendemos o mundo. O mundo é sensações e sensações são o mundo. Se não estamos enganados por sensações não somos enganados pelo mundo. Se não somos enganados pelo mundo não somos enganados por sensações.

A mente que vê isso terá uma base sólida de sabedoria. Tal mente não terá muitos problemas. Quaisquer problemas que ela tenha ela pode resolver. Quando não há mais problemas não existem mais dúvidas. A paz surge em seu lugar. Isso é chamado de “prática”. Se realmente praticamos deve ser assim.

Notas:

[1] Palestra da no Wat Keuan a um grupo de estudantes universitários que tomaram ordenação temporária, durante o verão de 1978.

[2] Uma dos muitos mosteiros afiliados do mosteiro principal de Ajahn Chah, Wat Pah Pong.

[3] Conceito (sammuti) se refere à realidade suposta ou provisória, enquanto que transcedência (vimutti) se refere à libertação em relação ao apego ou a ilusão dentro dela.

[4] Māra: a personificação buddhista do mal, o Tentador, aquela força que se opõe a quaisquer tentativas de desenvolver a bondade e a virtude.

[5] O jogo de palavras aqui entre o tailandês “phadtibut” (prática) e “wibut” (desastre) fica perdida na tradução.

[6] Esses são dois extremos indicados como caminho errôneo pelo Buddha em seu Primeiro Discurso. Normalmente são traduzidos como “indulgência nos prazeres sensoriais” e “automortificação”.

[7] Pa-kow: um postulante de oito preceitos, que frequentemente vive com bhikkhus e, além de sua própria prática meditativa, também ajuda-os com certos serviços que os bhikkhus são proibidos de realizar pelo Vinaya.


 

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright

© 2014 Edições Nalanda

Nota: Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Tailândia.


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