Ajahn Chah“Tuccho Pothila” – Venerável Escrituras Vazias

~ Ven. Ajahn Chah ~

[1] Há duas formas de se apoiar o Buddhismo: uma é o asāmisapūjā, por meio de oferendas materiais, como comida, vestuário, moradia e remédios. Com isso, apoia-se o Buddhismo fazendo oferendas materiais à Sangha de monges e de monjas para que vivam com razoável conforto para a prática do Dhamma. Isso promove a compreensão direta do ensinamento do Buddha, trazendo, por sua vez, prosperidade contínua à religião buddhista.

O Buddhismo pode ser comparado a uma árvore. Uma árvore tem raízes, um tronco, galhos, ramos e folhas. Todas as folhas e ramos, incluindo o tronco, dependem das raízes para absorver nutrientes do solo e mandá-los para eles. Da mesma maneira, como a árvore depende das raízes para se manter, nossas ações e nossa fala são como “ramos” e “folhas”, que dependem da mente, da “raiz”, absorvendo nutrientes, que são então enviados para o “tronco”, “ramos” e “folhas”. Estes, por sua vez, tornam-se os frutos de nossas ações e palavras. Seja qual o estado da mente, hábil ou não, ela vai expressar-se externamente através de nossas ações e palavras.

Portanto, o suporte do Buddhismo mediante a aplicação prática do ensinamento é o tipo mais importante de suporte. Por exemplo, na cerimônia de determinação de preceitos nos dias de observância, o professor descreve as ações inábeis que devem ser evitadas. Mas se você simplesmente passar pela cerimônia de determinação de preceitos sem refletir sobre o seu significado, o progresso torna-se difícil. Você não será capaz de encontrar a verdadeira prática. Assim, a verdadeira base do Buddhismo deve ser alcançada por meio de patipattipūjā, a “oferta” da prática, cultivando verdadeira restrição, concentração e sabedoria. Então, você saberá o que o Buddhismo é. Se você não entender por meio da prática, você ainda não saberá, mesmo se aprender todo o Tipitaka.

Na época do Buddha, havia um monge conhecido como Tuccho Pothila. Tuccho Pothila era muito erudito, meticulosamente versado nas escrituras e textos. Ele era tão famoso que era reverenciado pelas pessoas de todos os lugares, e tinha dezoito monastérios sob seu cuidado. Quando as pessoas ouviam o nome “Tuccho Pothila” ficavam maravilhadas e ninguém ousaria questionar nada por ele ensinado, tanto que reverenciavam suas ordens ou ensinamentos. Tuccho Pothila foi um dos discípulos mais eruditos de Buddha.

Um dia ele foi prestar reverências ao Buddha. Assim que ele prestou suas reverências, o Buddha disse: “Ah, olá, Venerável Escrituras Vazias!” … bem desse jeito! Eles conversaram por um tempo até que, chegada a hora de partir, ele foi se despedir do Buddha, que disse: “Ó, partindo agora, Venerável Escrituras Vazias?”

Foi tudo o que o Buddha disse. Na chegada: “Olá, Venerável Escrituras Vazias”. Na partida: “Oh, já vai, Venerável Escrituras Vazias?” O Buddha não elaborou e isso foi todo o seu ensinamento. Tuccho Pothila, o eminente professor, ficou perplexo. “Porque o Buddha disse aquilo?” “O que quis dizer?” Ele pensou e pensou, revendo tudo que já tinha aprendido até compreender… “É verdade! Venerável Escrituras Vazias é o monge que estuda mas não pratica!” Quando ele olhou em seu coração, ele viu que realmente não era diferente das pessoas leigas. O que quer que seja que elas aspiravam, ele também aspirava, o que elas gostavam, ele também gostava. Não havia um samana [2] real dentro dele, nenhuma qualidade verdadeiramente profunda capaz de estabelecê-lo firmemente no Nobre Caminho e proporcionar a verdadeira paz.

Então, ele decidiu praticar. Mas não havia nenhum lugar para ele ir. Todos os professores estavam em torno de seus próprios alunos, ninguém se atreveria a aceitá-lo. Normalmente, quando as pessoas se encontram com o professor tornam-se tímidas e respeitosas, e por isso ninguém se atreveria a se tornar seu mestre.

Finalmente ele foi visitar um certo jovem noviço, que estava iluminado, e pediu para praticar com ele. O noviço disse: “Sim, claro que você pode praticar comigo, mas só se você for sincero. Se você não for sincero, então eu não vou aceitá-lo”. Tuccho Pothila se comprometeu, então, a ser um aluno do noviço.

O noviço, então, disse-lhe para vestir todos os seus mantos. Acontece que perto dali havia um pântano lamacento. Quando Tuccho Pothila estava quase acabando de vestir os mantos, que eram caros por sinal, o noviço disse: “Tudo bem, agora corra adentro deste pântano lamacento. Se eu não lhe disser para parar, você não para. Se eu não lhe disser para sair dali, não saia. Certo….corra!”

Tuccho Pothila, perfeitamente vestido no manto, mergulhou no pântano. O noviço não lhe disse para parar até que ele ficou completamente coberto por lama. Por fim, ele disse: “Você pode parar agora”… então ele parou. “Ok, vamos lá para cima!”… E então ele saiu.

Isso mostrou claramente que Tuccho Pothila tinha abandonado seu orgulho. Ele estava pronto para aceitar o ensinamento. Se ele não estivesse preparado para aprender ele não teria entrado no pântano daquele jeito, sendo um professor tão famoso, mas ele o fez. O jovem noviço, vendo isso, soube que Tuccho Pothila estava sinceramente decidido a praticar.

Quando Tuccho Pothila saiu do pântano, o noviço passou-lhe o ensinamento. Ele o ensinou a observar os objetos dos sentidos, a conhecer a mente e a conhecer os objetos dos sentidos, usando o símile de um homem caçando um lagarto que se escondia num cupinzeiro. Se o cupinzeiro tivesse seis saídas, como ele poderia pegar o lagarto? Ele teria de fechar cinco saídas, deixando apenas uma aberta. Então, ele teria que simplesmente observar e esperar, vigiando aquele único buraco. Quando o lagarto sair, ele poderá pegá-lo.

Observar a mente é assim. Fechando os olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo, deixamos apenas a mente. “Fechar” os sentidos significa restringi-los e compô-los, observando-se apenas a mente. A meditação é como pegar uma lagartixa. Usamos sati para observar a respiração. Sati é a qualidade da lembrança, como se perguntássemos: “O que estou fazendo?” Sampajañña é a consciência de que “agora eu estou fazendo isto e aquilo”. Observamos o dentro e o fora respirando com sati e sampajañña.

Esta qualidade de recordação é algo que surge da prática, não é algo que pode ser aprendido a partir de livros. Conheça os sentimentos que surgem. A mente pode ser bastante inativa por um tempo e, em seguida, surge um sentimento. Sati trabalha em conjunto com esses sentimentos, recordando-os. Há sati, a lembrança de que “Eu vou falar”, “Eu vou”, “Eu vou sentar” e assim por diante e, então, há sampajañña, a consciência de que “agora eu estou andando”, “eu estou deitado”, “eu estou experimentando tal e tal estado de espírito”. Com essas duas coisas, sati e sampajañña, podemos conhecer nossas mentes no momento presente. Saberemos como a mente reage a impressões sensoriais.

Aquilo que está consciente dos objetos dos sentidos é chamado de “mente”. Os objetos dos sentidos “vagueiam” pela mente. Por exemplo, há um som, como a plaina elétrica aqui. Ele entra pelo ouvido e viaja para o interior da mente, que reconhece que é o som de uma plaina elétrica. Aquilo que reconhece o som é chamado de “mente”.

Esta mente que reconhece o som ainda é bastante primária. É apenas a mente mediana. Talvez a irritação surja neste que reconhece. Temos de treinar ainda mais “aquele que reconhece” para se tornar “aquele que sabe” de acordo com a verdade – conhecida como Buddho. Se não soubermos muito claramente de acordo com a verdade, então vamos nos aborrecer com os ruídos das pessoas, dos carros, da plaina elétrica e por aí fora. Esta é apenas a mente comum e sem treino a reconhecer o ruído com irritação. Ela conhece de acordo com as suas preferências, não de acordo com a verdade. Devemos, então, treiná-la para conhecer com visão e insight, ñānadassana [3], o poder da mente refinada, para que ela conheça o som simplesmente como som. Se não nos apegamos ao som, não há aborrecimento. O som surge e nós simplesmente notamos isso. Isso é chamado de conhecer verdadeiramente o surgimento dos objetos dos sentidos. Se desenvolvermos Buddho, percebendo claramente o som como som, então não nos irritará. Ele surge de acordo com as condições, não é um ser, um indivíduo, um eu, um “nós” ou “eles”. É apenas som. A mente deixa ir.

Esse conhecimento é chamado Buddho, o conhecimento que é claro e penetrante. Com esse conhecimento podemos deixar o som ser simplesmente som. Ele não nos perturba, a menos que nós o perturbemos pelo pensamento: “Eu não quero ouvir aquele som, ele é chato”. O sofrimento surge por causa desse pensamento. Aqui está a causa do sofrimento, o fato de que não sabemos a verdade sobre este assunto faz com que não desenvolvemos o Buddho. Nós ainda não estamos livres das impurezas, ainda não despertos, ainda não conscientes. Essa é a mente crua e não treinada. Esta mente ainda não é verdadeiramente útil para nós.

Portanto, o Buddha ensinou que essa mente precisa ser treinada e desenvolvida. Nós precisamos desenvolver a mente da mesma maneira que desenvolvemos o corpo, mas fazemos de forma diferente. Para desenvolver o corpo precisamos exercitá-lo, correndo de manhã e à noite e por aí vai. Isso exercita o corpo. Como resultado, o corpo se torna mais ágil, forte, os sistemas respiratório e nervoso tornam-se mais eficientes. Para exercitar a mente não precisamos nos mexer, mas trazer para uma parada, trazer para um descanso.

Por exemplo, quando praticamos meditação, tomamos um objeto como a inspiração e a expiração como nossa fundação. Elas tornam-se o foco da nossa atenção e reflexão. Notamos a respiração. Notar a respiração quer dizer que seguimos a respiração conscientemente, notando seu ritmo, seu vai e vem. Colocamos consciência na respiração, seguindo o natural ir e vir desta e largando todo o resto. Como resultado de trazer consciência a esse objeto, nossa mente revigora-se. Se deixarmos a mente pensar nisto, nisso e naquilo outro, teremos muitos objetos para nos tornamos conscientes; a mente não se unifica, não descansa.

Dizer que a mente cessa significa dizer que ela sente como se tivesse parado, deixando de saltitar para ali e aqui. É como ter uma faca afiada. Se a usamos para cortar qualquer coisa indiscriminadamente, como pedras, tijolos ou relva, a nossa faca irá ficar cega rapidamente. Nós devemos usá-la para cortar aquilo para a qual ela está preparada. Com a nossa mente passa-se o mesmo. Se deixarmos a mente vaguear pelos pensamentos e emoções que não têm valor ou utilidade a mente ficará cansada e fraca. Se a mente não tem energia, a sabedoria não surgirá pois uma mente sem energia é uma mente sem samādhi.

Se a mente não parar, você não consegue ver claramente os objetos sensoriais pelo que são. A compreensão de que a mente é a mente, objetos sensoriais são apenas objetos sensoriais, é a raiz a partir da qual o Buddhismo cresceu e se desenvolveu. Isso é o coração do Buddhismo.

Devemos cultivar esta mente, desenvolvê-la, treiná-la em calma e insight. Treinamos a mente para ter contenção e sabedoria permitindo que a mente pare e permita a sabedoria crescer, conhecendo a mente como ela é.

Você sabe, a forma como os seres humanos são, a maneira como fazemos as coisas, é como se fôssemos crianças pequenas. Uma criança não sabe de nada. Para um adulto observando o comportamento de uma criança, a forma como ela brinca e pula de lá pra cá, suas ações não parecem ter propósito algum. Se a nossa mente não tem treinamento, é como se ela fosse uma criança. Falamos sem consciência e agimos sem sabedoria. Podemos arruinar a nós mesmos ou causar danos incalculáveis sem que sequer saibamos. Uma criança é ignorante, ela joga como jogam as crianças. Nossa mente ignorante é o mesmo.

Assim, devemos treinar esta mente. O Buddha ensinou a treinar a mente, a ensinar a mente. Mesmo que apoiemos o Buddhismo com os quatro requisitos, o nosso apoio ainda é superficial, atinge apenas a “casca” ou “entrecasca” da árvore. O verdadeiro apoio do Buddhismo deve ser feito através da prática, de nenhum outro modo, treinando as nossas ações, a fala e os pensamentos de acordo com os ensinamentos. Isto é muito mais proveitoso. Se formos corretos e honestos, possuidores de contenção e sabedoria, a nossa prática trará prosperidade. Não haverá motivo de rancor e hostilidade. É assim que a nossa religião nos ensina.

Se determinarmos os preceitos simplesmente a partir da tradição, então mesmo se o mestre ensinar a verdade nossa prática será deficiente. Podemos ser capazes de estudar os ensinamentos e de repeti-los, mas temos de praticá-los se realmente quisermos entendê-los. Se não desenvolvermos a prática, isso pode ser um obstáculo para nossa entrada no coração do Buddhismo por incontáveis vidas a vir. Não entenderemos a essência da religião buddhista.

Portanto, a prática é como uma chave, a chave da meditação. Se tivermos em nossa mão a chave certa, não importa quão fortemente o cadeado esteja fechado, quando colocamos a chave e a viramos, o fecho se rompe. Sem a chave não poderemos abrir a fechadura. Nunca saberemos o que está trancado.

Na realidade há dois tipos de conhecimento. Quem conhece o Dhamma não fala apenas a partir de memórias, ele fala a verdade. As pessoas mundanas falam com arrogância. Por exemplo, imagine que há duas pessoas que não se veem há muito tempo. Talvez elas tenham viajado para estados ou países diferentes por algum tempo e, então, um dia se encontram por acaso em um trem… “Oh! Que surpresa. Eu estava pensando agora em te procurar!”… Na realidade, não é verdade. Realmente não tinham pensado um no outro, mas eles dizem isso por pura excitação. E assim torna-se uma mentira. Sim, é mentira por desatenção. Isso é mentir sem saber. É uma forma sutil de impureza mental, e isso acontece com muita freqüência.

Assim, no que diz respeito à mente, Tuccho Pothila seguiu as instruções do noviço: inspirando, expirando… consciente de cada respiração… até que viu o mentiroso dentro dele, a mentira de sua própria mente. Ele viu as impurezas enquanto surgiam, assim como o lagarto que sai do cupinzeiro. Ele as viu e percebeu a sua verdadeira natureza, logo que surgiam. Ele percebeu como em um minuto a mente inventava uma coisa, e no momento seguinte, uma outra.

Pensar é um sankhata dhamma, algo que é criado ou inventado a partir de condições de apoio. Não é asankhata dhamma, o incondicionado. A mente bem treinada, um com a consciência perfeita, não inventa estados mentais. Este tipo de mente penetra as Nobres Verdades e transcende qualquer necessidade de depender de fatores externos. Conhecer as Nobres Verdades é conhecer a verdade. A mente proliferadora tenta se esquivar desta verdade, dizendo, “isto é bom” ou “aquilo é bonito”, mas se há Buddho na mente, ela não pode mais nos enganar, pois conhecemos a mente como ela é. A mente não pode mais criar estados mentais iludidos, pois há uma consciência clara de que todos os estados mentais são instáveis, imperfeitos e uma fonte de sofrimento para os que se apegam a eles.

Onde quer que fosse, aquele que sabe estava constantemente na mente de Tuccho Pothila. Ele observou as várias criações e proliferações da mente com a compreensão. Viu como a mente mentia de muitas maneiras. Ele compreendeu a essência da prática, vendo que “Esta mente mentirosa é a única para observar – esta é a única que nos leva a extremos de felicidade e sofrimento e nos faz girar sem parar no ciclo do samsāra, com o seu prazer e sua dor, bem e mal – tudo por causa dela”. Tuccho Pothila percebeu a verdade, e compreendeu a essência da prática, como um homem agarrando o rabo do lagarto. Ele viu o funcionamento da mente iludida.

Para nós é a mesma coisa. Apenas esta mente é importante. É por isso que eles dizem para treinarmos a mente. Agora, se a mente é a mente, com o que iremos treinar? Por termos sati e sampajañña continuamente, nós seremos capazes de conhecer a mente. Este alguém que sabe, está um passo além da mente, ele é aquele que conhece o estado da mente. A mente é a mente. Quem conhece a mente como simplesmente mente é aquele que sabe. Isso está acima da mente. Aquele que sabe está acima da mente e, assim, é como ele é capaz de procurar a mente, de ensinar a mente a conhecer o que é certo e o que é errado. No final, tudo retorna a essa mente proliferadora. Se a mente se prende em suas proliferações não há atenção e a prática é infrutífera.

Portanto, temos de treinar esta mente para ouvir o Dhamma, para cultivar o Buddha, a consciência clara e radiante, que existe acima e além da mente comum e sabe tudo que se passa dentro dela. É por isso que meditamos sobre a palavra Buddho, para que possamos conhecer a mente além da mente. Basta observar todos os movimentos da mente, sejam bons ou ruins, até que se perceba que a mente é simplesmente a mente, não um eu ou uma pessoa. Isso é chamado de cittānupassanā, Contemplação da Mente [4]. Vendo desta forma vamos entender que a mente é transitória, imperfeita e sem dono. Esta mente não nos pertence.

Podemos resumir assim: a mente é aquela que reconhece os objetos dos sentidos; objetos dos sentidos são algo distinto da mente; ‘aquele que sabe’, sabe tanto o que é a mente e quanto os objetos dos sentidos e para quê eles servem. Devemos usar sati (a vigilância) para limpar constantemente a mente. Todo mundo tem sati, mesmo um gato tem quando ele vai pegar um rato. Um cão tem quando ele late para as pessoas. Esta é uma forma de sati, mas não é sati de acordo com o Dhamma. Todo mundo possui sati, mas em diferentes níveis, assim como há diferentes níveis de como olhar as coisas. Como quando eu digo para contemplar o corpo, algumas pessoas dizem: “O que há para contemplar no corpo? Qualquer um pode vê-lo. Kesā e Lomā são vistos de imediato… cabelos, unhas, dentes e pele também podem ser percebidos de imediato. Então do que trata sati?”

É assim que as pessoas são. Conseguem ver claramente o corpo, mas a sua visão é defeituosa, não veem com Buddho, aquele que sabe, o iluminado. Apenas veem o corpo de modo comum, veem-no visualmente. Ver apenas o corpo não é suficiente. Se apenas vemos o corpo há problema. Temos de ver o corpo no corpo, então as coisas tornam-se mais claras. Somos enganados se só virmos o corpo, ficaremos encantados apenas com a sua aparência. Não vendo a transitoriedade, a imperfeição e a impossibilidade de haver posse, kāmachanda [5] surge. Você se torna fascinado pelas formas, sons, odores, sabores e sensações. Ver desta maneira é ver com o olho mundano da carne, gerando amor, ódio e discriminação entre o agradável e o desagradável.

O Buddha ensinou que isso não é suficiente. Vocês devem ver com o “olho da mente”. Ver o corpo no corpo. Se vocês realmente olharem para o corpo… Eca! Ele é muito repulsivo. Tem coisas de hoje e coisas de ontem tudo misturado lá dentro. Vocês não podem dizer o que é o quê. Ver desta forma é muito mais claro do que ver com o olho carnal. Contemplar, ver com o olho da mente, com o olho da sabedoria.

O entendimento das pessoas difere assim. Algumas pessoas não sabem o que contemplar nas cinco meditações, cabelo, pêlos, unhas, dentes e pele. Elas dizem que já conseguem ver ver essas coisas mas apenas conseguem enxergá-las com os olhos carnais, com esse ‘olho louco’, que apenas olha para as coisas que quer olhar. Para ver o corpo no corpo você precisa ver muito mais claramente do que isso.

Essa é a prática que pode erradicar o apego aos cinco khandhas [6]. Erradicar o apego é erradicar o sofrimento, porque o apego aos cinco khandhas é a causa do sofrimento. Se o sofrimento surge, ele está aqui, no apego aos cinco khandhas. Não é que os cinco khandhas são, em si, sofrinento, mas sim o apego a eles… isso é sofrimento.

Se claramente virmos a verdade dessas coisas por meio da prática da meditação, então, o sofrimento se desprende como um parafuso removido. Quando o parafuso se desprende ocorre a remoção deste. A mente desprende-se da mesma forma, deixando passar, largando a obsessão com o bem e com o mal, com as posses, elogios, status, prazer e sofrimento.

Se não sabemos a verdade dessas coisas, é como apertar o parafuso o tempo todo. Ele fica cada vez mais apertado até começar a te esmagar e você sofre por tudo. Quando você sabe como as coisas são, então afrouxa o parafuso. Na linguagem do Dhamma, chamamos isso de surgimento de nibbidā, desencantamento. Você fica cansado das coisas e diminui a fascinação por elas. Se você age dessa forma, encontrará a paz.

A causa do sofrimento é agarrar-se às coisas. Então, deveríamos nos livrar da causa, cortando sua raiz e não permitindo que isso cause sofrimento novamente. Pessoas tem apenas um único problema – o problema de apegar-se. Apenas por causa disso, pessoas matam-se umas as outras. Todos os problemas, seja individual, familiar ou social, vêm dessa raiz. Ninguém vence… elas matam-se umas as outras e no final ninguém ganha nada. Eu não sei porque pessoas continuam se matando tão inutilmente.

Poder, posses, status, louvor, alegria e sofrimento… estes são os dhammas mundanos. Esses dhammas mundanos engolfam os seres mundanos. Seres mundanos são arrastados pelos dhammas mundanos: ganho e perda, elogio e calúnia, status e perda de status, felicidade e sofrimento. Esses dhammas são causadores de problemas, se você não refletir sobre a sua verdadeira natureza, você vai sofrer. As pessoas chegam a cometer assassinatos por causa de riqueza, estatuto ou poder. Porquê? Porque eles os levam a sério demais. Eles são nomeados para alguma posição e isso sobe às suas cabeças, como o homem que se tornou chefe da aldeia. Após a sua nomeação, ele tornou-se “bêbado de poder”. Se algum dos seus velhos amigos o ia ver ele dizia: “Não apareças tantas vezes. As coisas não são mais as mesmas”.

O Buddha ensinou a entender a natureza das posses, status, elogio e felicidade. Tomem essas coisas como elas vem, mas deixem-nas ser. Não as deixem chegar até sua cabeça. Se vocês realmente não entendem essas coisas, vocês são enganados por seu poder, por suas crianças e parentes… por tudo! Se vocês as entendem claramente, então sabem que todas são condições impermanentes. Se vocês a elas se apegam, elas se tornam manchadas.

Todas essas coisas surgem depois. Quando as pessoas nascem há simplesmente nāma e rūpa, isso é tudo. Nós acrescentamos esse negócio de “Sr. Jones”, “Senhorita Smith”, ou seja o que for, mais tarde. Isto é feito de acordo com a convenção. Mais tarde ainda aparecem os apêndices de “Coronel”, “General”, e assim por diante. Se realmente não entendemos essas coisas, nós pensamos que elas são reais e as carregamos com a gente. Carregamos posses, status, nome e posição social conosco. Se você tem poder você pode dar as ordens: “Leve esta pessoa e execute-a. Leve aquela e jogue-a na cadeia”… Posição social confere poder. Essa palavra “posição” é onde se dá o apego. No momento em que as pessoas adquirem um posto elas começam a dar ordens. Certo ou errado, elas simplesmente agem de acordo com seu humor. Assim, elas continuam fazendo os mesmos velhos erros, desviando-se mais e mais do caminho da verdade.

Aquele que compreende o Dhamma não se comportará desse jeito. O bem e o mal existem no mundo desde sabe-se lá quando… se posses e status aparecerem no seu caminho, então deixe-os ser simplesmente posses e status, não deixe que eles se tornem a sua identidade. Apenas utilize-os para cumprir as suas obrigações e deixe por isso mesmo. Você permanece inalterado. Se houvermos meditado sobre essas coisas, não importa o que aconteça em nosso caminho não seremos enganados por isto. Estaremos imperturbáveis, não afetados, constantes. Afinal de contas, tudo é praticamente a mesma coisa.

É assim que o Buddha gostaria que compreendêssemos as coisas. Não importa o que você recebe, a mente não acrescenta nada a ela. Eles te elegem como um vereador… “Ok, então eu sou um vereador… mas eu não sou”. Eles te elegem como o chefe do grupo… “Claro que eu sou, mas não sou”. Tudo o que eles fazem de você… “Sim, eu sou, mas eu não sou!”. O que somos, afinal? Todos nós vamos morrer no final. Não importa o que eles façam de você, no final, é tudo o mesmo. O que você pode dizer? Se você puder ver as coisas dessa maneira você terá uma sólida fundação e um verdadeiro contentamento. Nada será alterado.

Isso não é ser enganado por coisas. O que quer que surja em seu caminho, são apenas condições. Não há nada que pode atrair uma mente como essa para criar ou proliferar, para seduzi-lo para a cobiça, aversão ou ilusão

Agora isso que é ser um verdadeiro apoiador do Buddhismo. Esteja você entre aqueles que são apoiados (i.e., a Sangha) ou entre aqueles que estão apoiando (os laicos), por favor, considere isso cuidadosamente. Cultive o sīla-dhamma [7] dentro de vocês. Este é o caminho mais seguro para apoiar o Buddhismo. Apoiar o Buddhismo com oferendas de comida, abrigo e remédios também é bom, mas tais oferendas só alcançam a “casca” do Buddhismo. Por favor, não se esqueçam disso.

Uma árvore tem casca, seiva e cerne, e essas três partes são interdependentes. O cerne deve contar com a casca e com a seiva. A seiva conta com a casca e com o cerne. Todos eles existem de forma interdependente, assim como os ensinamentos de Disciplina Moral, Concentração e Sabedoria [8]. Disciplina Moral é estabelecer o seu discurso e ações na retidão. Concentração é fixar a mente com firmeza. Sabedoria é o conhecimento profundo da natureza de todas as condições. Estude isso, pratique isso, e você vai entender o Buddhismo profundamente.

Se vocês não percebem essas coisas, vocês serão enganados por posses, enganados por posições, enganados por qualquer coisa que vocês entrarem em contato. Simplesmente apoiar o Buddhismo de forma externa nunca irá pôr fim aos combates e disputas, os rancores e animosidades, os esfaqueamentos e tiros. Se todas essas coisas devem cessar, devemos refletir sobre a natureza das posses, posição, elogio, felicidade e sofrimento. Devemos considerar nossas vidas e levá-las a um alinhamento com o que foi ensinado. Devemos refletir que todos os seres no mundo são parte de um todo. Nós somos como eles, eles são como nós. Eles têm felicidade e sofrimento do mesmo jeito que nós. Isso tudo é muito parecido. Se refletirmos desse modo, paz e compreensão surgirão. Esse é o fundamento do Buddhismo.

Notas:

[1] Uma palestra informal dada no kuti de Ajahn Chah, a um grupo de laicos, numa tarde de 1978.

[2] Alguém que vive dedicado a práticas religiosas. O termo é usado tb para se referir a alguém que desenvolveu certa quantidade de virtude a partir de tais práticas. Ajahn Chah usualmente traduz o termo como “alguém que é pacífico”.

[3] Literalmente: conhecimento e insight (nas Quatro Nobres Verdades).

[4] Uma das quatro fundações da vigilância: corpo, sensações, mente e dhammas.

[5] Kāmachanda: desejo sensorial, um dos cinco obstáculos, sendo os outros quatro: má-vontade, dúvida, inquietude e preocupação/dúvida.

[6] Os cinco khandhas, ou “amontoados”: forma, sensação, percepção, concepção e consciência.

[7] Sīla-dhamma: A prática da virtude.

[8] Sīla, samādhi, paññā.


 

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright

© 2014 Edições Nalanda


Nota: Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.


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