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Cláudio Miklos – Outubro, 2006
Revisado em 2010

Há algumas semanas atrás, durante o mês de setembro (2006), tive a grata oportunidade de conviver durante um fim-de-semana com praticantes budistas ligados ao Centro Nalanda (linhagem Theravada), localizado em Belo Horizonte (MG). Eu tinha sido convidado pelo professor Ricardo Sasaki para coordenar um workshop de arte Origami, e evidentemente fiquei muito feliz e realmente honrado com a oportunidade. O professor Sasaki é um dos mais conceituados líderes budistas no Brasil, e seu esforço em desenvolver o Centro Nalanda – junto com o apoio do seu Sangha mineiro – é realmente admirável. Digo isso não por educação ou política de elogios mas porque, honestamente, caminhando entre as árvores e olhando para o Nalandarama (o templo de prática construído pelo Centro Nalanda nos arredores de Belo Horizonte), fui capaz de ver ali o esforço e a profunda identidade saudável com os conceitos essenciais budistas que aquele Sangha foi capaz de resgatar, sem fanatismos, sem formalismo inútil.

Ao contrário do que se poderia imaginar, o Nalandarama não é um complexo luxuoso de construções douradas, com lagos e chafarizes de mármore ou esculturas de Buddha feitas de prata em suas salas. Trata-se de um sítio tranqüilo em meio a um pequeno bosque, com um salão de práticas quase zen-budista em seu vazio despojado de objetos, e com quartos de hóspedes simples, todos construídos em prédios despretensiosos; em uma pequena clareira entre as árvores nativas, o professor Sasaki plantou uma muda descendente da árvore Bodhi original (aquela sob a qual Shakyamuni atingiu a experiência de Esclarecimento), que ele trouxe da Índia em uma de suas viagens ao local onde o Buddha pregou por quase toda a sua vida. Ela está lá, lutando para sobreviver como toda e qualquer criatura neste mundo, e sendo tratada de uma forma realmente muito budista: com respeito e cuidado, mas sem pompas e circunstâncias especiais (mesmo para a descendente da árvore original de Buddha, nada de apegos!).

É justamente isso o que faz do Nalandarama digno de minha admiração: estas construções simples, o empenho quase discreto dos praticantes e simpatizantes em cuidar o melhor possível da comunidade, tudo isso feito com muito respeito e através de um esforço suave mas determinado – e mais nada. Eu admiro o grau de esforço e genuíno empenho que pessoas comuns (budistas ou não) denotam para tornar realidade espaços de prática espiritual que, como o Nalandarama, sejam sérios e simples, e cujo fundamento é o aprimoramento de nossa consciência, sabedoria e correto discernimento, e não o exercício ilusório de místicas fantasiosas, doutrinações fanáticas ou deslumbramentos esotéricos.

No último dia do evento, quando eu já estava de malas prontas para voltar ao Rio de Janeiro, fomos jantar em um restaurante chinês na cidade. Lá, durante uma conversa casual sobre assuntos de prática, eu fiz alguns comentários sobre o processo de Falar e Ouvir Atentamente, uma prática comum na tradição zen vietnamita, mas também muito focada por outras tradições, incluindo a Theravada. Logo percebi que um debate sobre o tema havia ocorrido tempos antes entre os praticantes do Nalanda, e que durante o fato houve certo desentendimento sobre os conceitos. Basicamente, algumas pessoas consideravam a perspectiva de “ouvir” como algo passivo demais, condescendente até, e que não deveria ser associada ao conceito de Falar Correto. O episódio me chamou muito a atenção porque ele justamente representava o cerne de um dos mais importantes problemas relacionados ao exercício de profunda consciência associado à percepção, segundo a psicologia budista: a questão de aceitarmos o exercício saudável da compreensão das coisas e pessoas como uma dialética contemplativa – e nunca uma ação simplista. Neste caso, (em relação aos conceitos práticos de Falar e Ouvir conscientemente), havia uma séria dificuldade de entendimento do sentido vivencial e integrado – e não intelectual ou opinativo – destes conceitos.

É interessante perceber como essa dificuldade humana em compreender corretamente está profundamente arraigada no comportamento individual. De fato, o que sempre domina nossa forma de perceber as coisas é nossa personalidade, nossa condição psico-intelectual e sua influência naquilo que conseguimos apreender em relação ao mundo. Além disso, poucas pessoas entendem a lição vital de que o processo de compreensão não se dá no âmbito do intelecto, da análise, das conclusões opinativas e sequer das emoções, mas justamente na pura dialética entre falar e ouvir – o fluxo intenso de interpretação atenta e clara de tudo aquilo que nossa mente expressa e tudo aquilo que ela é capaz de captar e entender –, um movimento sutil e sofisticado, é verdade, mas ainda assim acessível para qualquer um.

Por que muitas pessoas insistem em definir o falar e o ouvir como atos puramente sensórios? Evidentemente, um dos motivos reside na facilidade em se confundir a ação física da vocalização de palavras ou de audição de sons com os conceitos abstratos de falar e ouvir. Notem como é muito claro, para nossa razão, entender que o Falar significa “falar alguma palavra, produzir algum signo sonoro inteligível” e o Ouvir significa “ouvir um som, uma palavra”. Eis porque é tão comum que pessoas, ao abordarem o tema a partir da faceta analítica de suas mentes, considerem o ato de falar e de ouvir como processos cujo fundamento está no corpo, e o meio de experimentação nos sentidos. Talvez eu devesse buscar outro termo para definir o processo de compreensão plena, mas sinceramente não acho isso útil de modo algum; apenas estaria introduzindo mais uma palavra em uma questão já suficientemente rica de termos. Contudo, torna-se importante frisar que ao usar a frase “falar e ouvir conscientemente”, quero dizer muito mais do que apenas falar e ouvir. Estranho? Bem, estamos estudando o espírito da prática zen-budista, não é mesmo? Nele, a ocorrência de paradoxos é quase uma regra absoluta. Mas na tradição de Buddha encontramos freqüentemente paradoxos, mas de modo algum contradições. O aparente subterfúgio de usar palavras para indicar mais do que sua simples definição é, de fato, uma prática altamente pertinente e lúcida, que visa estimular nossa reflexão, atenção e correto entendimento.

O exercício contemplativo de Falar e Ouvir Corretamente diz respeito especificamente a uma prática de afinação de nossa compreensão, e não uma simples ação de falar coisas boas ou ouvir bondosamente, como muitas pessoas podem imaginar em seu esforço por interpretarem esses conceitos à luz da proposta budista. Em outro extremo, existem aquelas pessoas que consideram o falar e ouvir como atos ou fenômenos de linguagem, e que portanto estão restritos ao universo cognitivo imediato. É óbvio que existe um âmbito onde as ações de falar e ouvir (assim como as ações de ver, sentir, pensar e cheirar) tornam-se ferramentas para a nossa elaboração de opiniões, conceitos, sentimentos ou experimentações comuns. Mas o fato é que para podermos estudar melhor a abordagem de “consciência em falar e ouvir” apresentada pelo budismo, precisamos saber distinguir claramente entre o fenômeno da linguagem e o fenômeno das palavras. Normalmente, confundimos muito a linguagem com as palavras; achamos que por “linguagem” sempre se quer dizer “palavras, termos, frases, conceitos, etc.”. Mas não é assim. A linguagem é um fenômeno amplo, complexo e delicado. Ela engloba os signos verbais e escritos, claro, mas vai muito além deles – e mais importante, os precede.

Existe, em nosso potencial perceptivo, uma região onde os signos associados aos conceitos se formam e são externados de muitas maneiras em nosso comportamento e entendimento comum para representar objetos, emoções, idéias e tudo o que nossos sentidos podem captar. Para alguns – como muitos filósofos, existencialistas ou religiosos – esta é uma região mística, prototípica ou transcendente; para outros – como alguns psicólogos, terapeutas e neuropesquisadores – é uma região-fonte de fenômenos da psique, de grandes e importantes experiências primais, determinantes de profundas experiências psico-emocionais. O Budismo também concorda com estas visões. Nós somos criaturas com um grande potencial mental, e justamente em função de nossa capacidade em associar signos a idéias e conceitos é que desenvolvemos uma personalidade complexa e extremamente rica em sua diversidade. Mas o budismo não encara o processo de conceitualização como um fenômeno exclusivo da mente; o budismo, em sua condição de prática psico-sensitiva, aborda também o fenômeno da dialética de falar e ouvir (no qual a epistemologia e ontologia humana se inserem) como um caminho, uma senda para outras possibilidades. Desta forma, o budismo confere à Linguagem uma característica única, sob a qual toda a diversidade interpretativa do intelecto se manifesta. Sei muito bem que filósofos analíticos consideram a linguagem apenas um processo inerentemente representativo (e falho) que procura retratar as realidades, ou antes, determinar qual seria a verdadeira realidade. Mas o uso do termo na proposta contemplativa é outro, longe de sua abordagem analítica. A linguagem aqui é retratada como um fluxo de experiências completamente anterior a qualquer elaboração de signos lingüísticos, de tal forma que ela pertence ao próprio processo existencial de todos os seres do universo, seja um verme de esterco ou uma bela mulher. A Linguagem é o fluxo de percepção que entra e sai de todo ser e permeia todas as coisas, é o rio do Tao, o Caminho. Essa afirmação não representa nos ensinos de Buddha algo sobrenatural, inefável; este conceito de fluxo permanente é absolutamente simples e naturalmente manifestado em nosso cotidiano, qualquer que seja. Portanto, quando falo de Falar e Ouvir Corretamente, quero dizer realmente externalizar e internalizar corretamente, sustentar uma dinâmica saudável de movimentos direcionados para fora e para dentro de nosso ser.

A meta do Budismo é levar um praticante a viver este fluxo a partir de um esforço contínuo de interpretação consciente, centrada, de tudo o que ele recebe e transmite à sua volta. Este processo vem a ser a essência do que procuro esclarecer neste ensaio. Portanto, jamais devemos cometer o erro de interpretar o ato de falar e ouvir como sendo algo distinto um do outro, ou inútil para o exercício contemplativo. Eu sei muito bem que vários autores budistas (ou de outras religiões) associam o ouvir e falar às intenções bondosas de perdão e compaixão ao outro, e que psicólogos e terapeutas aludem aos mesmos termos considerando seu aspecto terapêutico válido de catarse e elaboração saudável do histórico das nossas mais profundas neuroses. Estas são abordagem que podem ou não funcionar, mas elas não correspondem ao fenômeno dialético da compreensão profunda na prática contemplativa. Porque, quando a mente é capaz de fluir intensamente no rio da compreensão plena, ela não só poderá vivenciar a compaixão e a catarse das neuroses, mas igualmente – e principalmente – será capaz de apreender tudo à sua volta com um grau de integração extremamente saudável e claro. Esta é a condição da mente búddhica: perceber a tudo sem conflitos, sem a interferência de nossas opiniões ou conceitos.

E onde fica a personalidade, onde está a atuação do ego analítico neste processo? Esta atuação fica restrita aos aspectos comuns de nosso dia-a-dia, restrita ao simples falar e ouvir cotidianos. Justamente para que estes aspectos comuns possam ser curados de suas neuroses, medos ou ignorâncias é que o Buddha apresentou-nos a “outra margem do rio”, onde a mente saudavelmente integrada com o fluxo de introversão e extroversão perceptiva (que constantemente se move em nossa consciência) atua sem conflitos, e em paz.

A cura, nos ensinos de Buddha, sempre têm a ver com a compreensão: quanto mais a mente torna-se integrada e capaz de falar (expor a si mesma) e ouvir (perceber todas as coisas) em correto equilíbrio, mais a nossa personalidade, nosso Eu, abandona os tortuosos caminhos do ódio, da frustração, do medo, da tristeza e do egoísmo. Como sempre, faço a pergunta: esse tipo de transformação é muito rebuscada, impossível para nós? Não, não é. Apesar de tanta diversidade nas doenças do Ego, a despeito de você e eu sermos tão apegados aos nossos conceitos, comportamentos e vícios de hábito, existe uma saída. Ela se abre através de uma constante reflexão e esforço de reconhecimento interno, associados ao exercício de falar e ouvir o mundo corretamente.

Mas existe um último e grande segredo em toda esta questão: para Falar e Ouvir Corretamente, precisamos antes de tudo aprender a exercer esta dialética em nós mesmos, em nossa mais profunda intimidade. Eu preciso ouvir a mim mesmo, e falar comigo, com total consciência e honesta atenção. Sem isso, estaremos sempre vivendo uma grande ilusão – talvez a maior delas, enganados e perdidos em um mundo cheio de contradições, fingindo que sabemos quem somos e o que estamos fazendo. Estamos muito errados ao interpretar o mundo, e isso ocorre porque estamos perdendo a chance de olhar para nós mesmos e compreendermos qual a nossa real condição, o nosso real estado de ser. Estamos perdendo a chance de falar e ouvir em harmonia o nosso próprio coração. E sem isso, tudo aquilo que achamos entender do mundo torna-se, no melhor dos casos, apenas uma pálida expressão da realidade.
Precisamos aprender a ouvir a linguagem sem palavras da vida, oculta e ao mesmo tempo constantemente revelada em cada ação, pensamento e sensação que é capaz de atingir nossos corações e mentes. Esta é a profilaxia terapêutica e espiritual mais urgente e definitiva, que deve ser levada a sério por todos nós aqui e agora, sem perder tempo.


Claudio Miklos

Claudio Miklos

Nascido em 1962, Claudio Miklos iniciou sua prática no buddhismo aos 17 anos, através da tradição Zen Soto. Participou de retiros e freqüentou locais de prática na região do Rio de Janeiro. Aos 28 anos começou a organizar grupos de estudos sobre o Buddhismo tradicional, sempre na qualidade de praticante zen leigo. Em 1994 viajou à China (Hong Kong) onde realizou uma peregrinação pessoal a diversos templos buddhistas da região do sul da China, com o objetivo de conhecer mais profundamente a tradição espiritual a qual se dedica. A partir de 1996 filiou-se informalmente à escola zen vietnamita – escola do Inter-ser (Tiep Hien) – liderada por Thich Nhat Hanh, cujos ditames e orientações vem seguindo desde então.

Em 2001 recebeu, em cerimônia formal ocorria durante um retido de Plena Atenção em Teresópolis e organizado pelo Centro Lótus e coordenado pelos monges Phap An e Phap Ung, da tradição Interser, o Nome de Dharma Tam Huyen Van (Maravilhosa Nuvem do Coração) na condição de praticante leigo.

Em 2009 recebeu título de Mestrado em Ciência da Arte pela UFF (Universidade Federal Fluminense), com a tese “A Arte Zen e o Caminho do Vazio: uma investigação sobre o conceito zen-budista de Não-Eu na criação de arte”.

É autor dos livros independentes (Editora Virtual AGBook): “O Hóspede da Caverna“, “O Bosque de Bambus” e “A Arte Zen e o caminho do Vazio“, que abordam os fundamentos buddhistas em diversos campos de reflexão.

Atualmente (2012) encontra-se como postulante à condição de monge noviço pela tradição Soto Zenshu.