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Há quem se compraza em fazer do Buddha um não-humano. Eles citam uma passagem do Anguttara Nikaya (II, 37), traduzem-na erroneamente e a interpretam incorretamente. A história é esta:

Uma vez o Buddha estava sentado sob uma árvore em postura meditativa, seus sentidos calmos, sua mente quieta, tendo atingido o controle supremo e a serenidade. Então um brahmana, de nome Dona, aproximou-se do Buddha e perguntou:

“Senhor, és um deus, um deva?”
“Não, brahmana”.
“Senhor, és um anjo celestial, um gandhabba?”
“Não, brahmana”.
“Senhor, és um demônio, um yakkha?”
“Não, brahmana”.
“Senhor, és um ser humano, um manussa?”
“Não, brahmana”.
“Então, senhor, o que és?”

Agora compreenda a resposta do Buddha cuidadosamente:

“Brahmana, quais sejam as nódoas (asavas) [1] graças às quais a presença de uma pessoa possa ser identificada como um deus ou um anjo celestial ou um demônio ou um ser humano, todas essas nódoas em mim foram abandonadas, cortadas pela raiz, como com o cepo de uma palmeira, retirados, e não são mais sujeitos ao surgimento futuro. Assim como, brahmana, um lótus azul ou vermelho ou branco nascido na água, cresce na água e se ergue sobre a água intocada por ela, também eu, que nasci no mundo e cresci no mundo, transcendi o mundo e vivo intocado pelo mundo. Lembre-se de mim como um que é iluminado (Buddhoti mam dharehi brahmana)”.

O que o Buddha disse era que ele não era um deus ou anjo celestial ou um demônio ou um ser humano com nódoas. Disso dito acima é claro que o Buddha queria que o brahmana soubesse que ele não era um ser humano com nódoas. Ele não queria que o brahmana o colocasse em nenhuma dessas categorias. O Buddha estava no mundo mas não era do mundo. Isso é claro pelo símile do lótus. Críticos apressados, contudo, chegam a uma conclusão errônea e querem que outros acreditem que o Buddha não era um ser humano.

No Anguttara Nikaya (I, 22), há um claro exemplo em que ele declara que era um ser humano:

“Monges, há uma pessoa (puggala) cujo nascimento neste mundo é para o bem-estar e felicidade de muitos, por compaixão pelo mundo, para o ganho e bem-estar dos deuses (devas) e da humanidade. Quem é essa pessoa (eka puggala)? É o Tathagata, aquele que é um Ser Consumado (arahat), um Ser Supremamente Iluminado (samma-sambuddho)… Monges, uma pessoa nascida no mundo é um homem extraordinário, um homem maravilhoso (acchariya manussa)”.

Note a palavra pali manussa, um ser humano. Sim, o Buddha era um ser humano, mas não apenas outro homem. Ele era um homem maravilhoso.

Os textos buddhistas dizem que o Bodhisatta (como ele é conhecido antes de se tornar o Buddha) estava no paraíso Tusita (devaloka) mas veio ao mundo humano para nascer como um ser humano (manussatta). Seus pais, o rei Suddhodana e a rainha Mahamaya, eram seres humanos.

O Bodhisatta nasceu como um homem, atingiu a iluminação (estado de Buddha) como um homem, e finalmente faleceu indo ao parinibbana como um homem. Mesmo após sua Iluminação Suprema ele não se nomeou um Deus ou Brahm? ou qualquer “ser sobrenatural”, mas um homem extraordinário.

O Dr. S. Radhakrishnan, um hindu versado nos Vedas e no Vedanta, diz que o Buddhismo é uma ramificação do Hinduísmo, e chega ao ponto de chamar o Buddha de hindu. Ele escreve:

“O Buddha não se sentiu como se estivesse anunciando uma nova religião. Ele nasceu, cresceu e morreu um hindu. Ele reafirmava com uma nova ênfase os antigos ideais da civilização indo-ariana”.

Mas o próprio Buddha declara que seus ensinamentos eram uma revelação de verdades descobertas por ele, desconhecidas de seus contemporâneos, não herdadas de uma tradição passada. Assim, em seu primeiro sermão, referindo-se às Quatro Nobres Verdades, ele diz: “Monges, com o pensamento ‘Esta é a nobre verdade do sofrimento, esta é a sua causa, esta é a cessação e este o caminho que leva à cessação’, veio-me uma visão, conhecimento, sabedoria, intuição e luz concernente coisas nunca ouvidas antes (pubbesu ananussutesu dhammesu)” [2].

De novo, enquanto deixava claro a seus discípulos a diferença entre um Ser Plenamente Iluminado e os arahats, os consumados, o Buddha diz: “O Tathagata, ó discípulos, enquanto arahat é plenamente iluminado. É ele quem proclama um caminho não proclamado antes, ele é o conhecedor de um caminho, alguém que compreende um caminho, que é hábil em um caminho (maggaññu, maggavidu, maggakovido). E agora seus discípulos são caminhantes que seguem seus passos” [3].

O antigo caminho a que o Buddha se refere é o Nobre Óctuplo Caminho e não qualquer ideal da civilização indo-ariana como o Dr. Radhakrishnan imagina.

Contudo, referindo-se ao Buddha, Mahatma Gandhi, o arquiteto da independência da Índia, diz: “Por seu imenso sacrifício, por sua grande renúncia e pela imaculada pureza de sua vida, ele deixou uma indelével impressão no Hinduísmo, e o Hinduísmo tem um débito eterno para com esse grande professor”. (Mahadev Desai, With Gandhiji in Ceylon, Madras, 1928, p. 26).

[1] Asavas são profundas úlceras enterradas nos recessos da mente, a eliminação das quais equivale ao atingimento da iluminação. Asavas são variadamente traduzidos por nódoas, manchas, cancros. A preferência no Nalanda é traduzir por “ulcerações”, devido à sua natureza orgânica e biológica sugerida pela palavra no original. Aqui mantemos a preferência do tradutor/autor [Nota: Dhanapala].

[2] Vin. I, 10; V, 420.

[3] SN III, 66.

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