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~ por Ven. Ajahn Payutto ~

2. A Prática Da Diligência

No tocar de suas vidas, as pessoas geralmente possuem duas tendências. Quando oprimidas pelo sofrimento ou numa situação de crise, as pessoas se apressam a alterar a situação. Às vezes elas são capazes de resolver o problema, enquanto em outras vezes elas não conseguem e precisam encarar a perda ou a ruína. Mesmo se forem bem sucedidas, experimentam muita aflição e conflito até encontrar uma solução duradoura; elas podem até encontrar a derrota em meio ao seu sucesso: ‘vencer a batalha, mas perder a guerra’. Enquanto há tranquilidade na vida cotidiana, tendo as preocupações imediatas atendidas, as pessoas se tornam complacentes, permitindo que seus dias passem na busca por prazer ou entregando-se à gratificação. Elas não se preocupam com a prevenção de danos futuros. A menos que se vejam encurraladas, elas procrastinam as suas responsabilidades. Assaltadas pela aflição ou perigo, se apressam a encontrar alívio. Depois de o terem alcançado, se contentam em desfrutar de seus deleites. Esse ciclo continua até que um dia elas tornam-se impotentes para alterar o curso dos acontecimentos ou são subjugadas em sua tentativa de fuga.

O comportamento descrito acima é pamāda, que pode ser traduzido de formas variadas como negligência, descuido, lassidão, desprezo, falta de esforço e letargia. Tende a seguir de mãos dadas com a preguiça.

A qualidade oposta é a diligência (appamāda)*, que é despertada e guiada por atenção vigilante. Pessoas diligentes estão continuamente cientes do que deve ser evitado e do que deve ser buscado e se comprometem com essas tarefas. Elas reconhecem a importância do tempo, do trabalho e da menor responsabilidade que seja. Não são intoxicadas ou excessivamente encantadas pela vida. Fazem todo o esforço para evitar transgressões, e não perdem oportunidade alguma de evoluir na virtude. Apressam-se em direção a sua meta, ou ao bem, sem interrupção e despendem um grande cuidado em seus preparativos. [70/41]

* Outras traduções comuns incluem atenção, seriedade, perseverança, cuidado e vigilância.

Um entendimento das Três Características promove diretamente a diligência, porque quando se sabe que tudo é impermanente, instável, fugaz, não subordinado à vontade e sujeito a causas, apenas uma forma de prática resta, que é agir em conformidade com essas causas. Isso significa que se faz o esforço para se proteger de influências prejudiciais, para reparar os danos, para preservar as qualidades benéficas e para agir de forma meritória no sentido de obter progresso mais adiante. Tal prática envolve a investigação da causalidade e ação em conformidade com isso. Por exemplo, consciente de que todas as coisas são sujeitas a mudanças, a pessoa se esforça para agir de tal forma que as condições saudáveis desejadas permaneçam durante o maior tempo possível, e que proporcionem o máximo de benefícios aos outros.

Após uma análise mais aprofundada, a pessoa percebe que a causa real (ou força) que induz a essa diligência é o sofrimento. O relacionamento das pessoas com o sofrimento, desta forma, afeta a sua reação a ele, resultando em negligência ou cuidado. E mesmo as reações de cuidado variam em qualidade. Uma análise dessa dinâmica irá mostrar o valor de appamāda. Há três maneiras de responder ao sofrimento:

1. Comportamento baseado no Sofrimento: algumas pessoas se entregam ao conforto e ao prazer, negligenciam suas responsabilidades, não consideram perigos potenciais, mas, ao invés, preferem esperar até que o perigo as confronte. Diante dos problemas e da necessidade, apressam-se para remediar a situação, às vezes com sucesso, outras vezes não.

2. Comportamento baseado no Medo do Sofrimento: algumas pessoas temem o sofrimento e a dificuldade e, assim, se esforçam para impedi-los. Embora as suas tentativas de garantir mais segurança sejam geralmente bem sucedidas, suas mentes são sobrecarregadas pela ansiedade. Além de temer o sofrimento, elas sofrem pelo medo e agem guiadas por essa fonte secundária de angústia.

3. Comportamento baseado no Conhecimento do Sofrimento: algumas pessoas refletem com sabedoria sobre como lidar com o sofrimento potencial. Elas não são intimidadas pelo medo, uma vez que compreendem a natureza das Três Características, pois reconhecem o perigo potencial. Elas investigam a dinâmica da mudança, baseando-se na consciência da impermanência e na liberdade e flexibilidade oferecidas pela característica de não-eu, para escolher o melhor caminho a seguir. [70/42] Além disso, utilizam as experiências do passado como uma lição para evitar o sofrimento e para se orientar no sentido do maior bem possível. Vão sendo aliviados do tanto de sofrimento que estiver em suas capacidades, até o ponto de tornarem-se livres de todo sofrimento e ansiedade.

O primeiro tipo de comportamento é negligente; os tipos dois e três são condutas diligentes, mas o tipo dois é uma precaução alimentada por impureza e, portanto, ligada ao sofrimento. O tipo três, por outro lado, surge da sabedoria e, por isso, é livre de embaraços: nenhum sofrimento mental surge. Essa é a completa e adequada diligência que só um arahant pratica perfeitamente. A qualidade da vigilância das pessoas não despertas depende de sua capacidade de aplicar a sabedoria (em conformidade com o tipo três) e da redução do estresse causado pelo medo e pela ansiedade (do tipo dois).

Como descrito acima, as pessoas comuns não são as únicas suscetíveis à negligência; pessoas nos estágios iniciais do despertar podem ser descuidadas também. A razão para essa falta de cuidado é o contentamento, a saciedade ou a complacência com respeito às qualidades excepcionais que atingiram. Elas deleitam-se na felicidade e no bem estar e abandonam o seu trabalho espiritual. Outra razão é porque perceberam as Três Características: elas têm uma compreensão profunda da mudança, se resignam com a condicionalidade e não estão preocupadas com a decadência e a separação. Devido a estas tranquilidade e resignação elas param; não mostram mais interesse e não fazem qualquer esforço para lidar com questões não resolvidas. Negligenciam as tarefas necessárias para a prevenção ou aprimoramento, permitindo que os problemas simplesmente se mantenham ou mesmo agravem-se. Nesse caso, a realização do bem espiritual, ou da (inicial) libertação, é o motivo para o descuido. Esses indivíduos agem incorretamente, a sua prática é unilateral e incompleta, carecendo do esforço necessário para atingir o valor integral da diligência. Para corrigir essa situação, eles devem estar cientes de ambos os benefícios, o espiritual e o prático, e levá-los até a conclusão.

Uma causa adicional para o comportamento negligente é apegar-se ao desapego. O conhecimento aprofundado das coisas, com base em um entendimento das Três Características, solta ou liberta do apego às coisas. Esse não-apego é o cerne da libertação e da liberdade em relação ao sofrimento conducentes à meta do Buddhismo. Na prática apropriada tal abandono ocorre por si só, é uma consequência da visão clara das coisas de acordo com a verdade das Três Características. Algumas pessoas, entretanto, ainda não têm este lúcido discernimento, elas apenas ouvem falar sobre tal verdade e racionalizam sobre ela. [70/43] Além disso, elas aderem-se à idéia de que pelo apego a coisa alguma elas serão liberadas do sofrimento. Pensando dessa forma, tentam provar para si mesmas, e a outros, que não se apegam a qualquer coisa ou que estão livres de impurezas, a ponto de não considerar qualquer coisa seriamente. [84] O resultado é um desequilíbrio funcional, desatenção e negligência. Este é o apego ao desapego: é um desapego artificial.

Comparar as ações incitadas por diferentes motivações contribuirá para explicar a ação induzida pela diligência. Comparemos os quatro tipos de atividade e inatividade:

1) Algumas pessoas não agem se não recebem ou se vão perder algum ganho pessoal. Agem para ganhar ou para proteger um lucro.

2) Algumas pessoas não agem porque se apegam ao desapego: se abstêm de agir para mostrar que estão livres de impurezas.

3) Algumas pessoas não agem devido à negligência, deliciando-se em contentamento e tranquilidade. Não afligidas pelo sofrimento, ou resignadas à condicionalidade, elas são complacentes.

4) Algumas pessoas agem ou se abstêm de agir na dependência da sábia ponderação das circunstâncias. Sabendo que algo deve ser feito, elas agem mesmo que não obtenham vantagem. Sabendo que algo não deve ser feito, elas se abstêm mesmo que, se agindo, fossem obter algum ganho. Quando a ação é necessária, agem imediatamente, sem hesitações ou procrastinações.

O quarto tipo é a ação apropriada realizada com plena atenção correta e sabedoria.

As diretrizes do Buddha para a ação diligente são duas, com respeito a ambas as atividades, internas e externas. As primeiras são as exortações para o desenvolvimento espiritual, para fazer um esforço em direção aos estados de consciência superiores, que é o mesmo que o atingimento dos benefícios espirituais das Três Características, ou a libertação do coração. Em resumo, essa ação é o ‘aperfeiçoamento pessoal’. Os últimos são os ensinamentos para a vida diária e a interação com o mundo: as necessidades de diligência no trabalho, do cumprimento das responsabilidades, da solução e prevenção das dificuldades, do desenvolvimento da virtude e da promoção do bem-estar social. Em suma, é o ‘aperfeiçoamento social’. [70/44]

Os ensinamentos sobre a diligência encorajam a contemplação dos três períodos de tempo: o passado, a fim de tirar lições de acontecimentos e experiências passadas, e usar tais lições como incentivos para esforço adicional; o presente, para uma maior urgência em nossas atividades, para não postergar e para aproveitar o máximo de cada momento; e o futuro, para refletir sobre as mudanças potenciais, tanto as benéficas quanto as prejudiciais, usando a sabedoria para examinar a causalidade, elaborando planos para prevenir prejuízos e promover o progresso.

Comparados com os ensinamentos espirituais do Buddha, os ensinamentos práticos são poucos e com menos detalhes; eles são encontrados espalhados por todas as escrituras e tendem a ser concisos. A razão para isso é que as atividades humanas variam muito de acordo com o tempo e lugar; não podem ser descritas com uniformidade. Portanto, o Buddha apenas apresentou princípios ou exemplos. Em contraste, a transformação do coração diz respeito a todos os seres humanos: a natureza da mente humana é idêntica para todos. Além disso, essa transformação é profunda e difícil de realizar e é o aspecto singular do ensinamento do Buddha. Ele, portanto, explicou-a meticulosamente.

 


 

Traduzido por Jorge Furtado para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2011 Edições Nalanda


Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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