III. Ciência e Buddhismo: Um encontro ou uma separação?

Tal qual uma religião, mas não…

PARA FALAR DO BUDDHISMO, temos primeiramente de falar de suas origens. Eu disse que a origem da religião era o medo do perigo, mas a origem do Buddhismo não é mais o medo do perigo, e sim o medo do sofrimento. Por favor, notem a diferença. Na seção que trata da religião, falamos sobre perigo, mas ao lidar com o Buddhismo nós falaremos sobre sofrimento, o que tem um sentido muito mais amplo. Especificamente, o medo do perigo tem seu objeto em fatores externos, tais como enchentes, terremotos, etc., mas o sofrimento inclui todos os problemas experimentados na vida, incluindo aqueles no interior da mente.

O que é o sofrimento? Sofrimento é a condição de estresse e conflito, ou seja, a condição humana. Podemos simplificar e dizer que sofrimento (dukkha) é dificuldade (panha), porque dificuldade é o que causa estresse e frustração.

Outras religiões procuraram a fonte do perigo. Tão distante quando o homem pôde ver, quando alguma coisa acontecera na sociedade humana, tinha sido causada ou dirigida por alguém. Na sociedade, o homem era o controlador, mas o mundo natural estava além do controle humano. Contudo, o homem pensava que devia ter havido alguém dirigindo as coisas, então ele buscou  este “alguém” e concluiu que um diretor, uma deidade ou deidades, uma força sobrenatural era a fonte de todos esses perigos naturais. Estas eram as forças que traziam as nuvens, as tempestades, as inundações, o fogo e assim por diante. Este é o surgimento das religiões.

O homem antigo olhou para a situação em termos de recompensa e punição. Parecia que a liberdade em relação ao perigo tinha de ser procurada na sua raiz. Observando que na sociedade humana há líderes que exercem o poder, eles aplicaram esse modelo às forças por trás da natureza e surgiram os deuses. É por isso que alguns psicólogos contemporâneos têm dito que a humanidade criou Deus à sua própria imagem, revertendo o ensinamento cristão de que Deus criou o homem à sua própria imagem.

Então a humanidade, vendo essas divindades como a fonte de perigo, raciocinou que isso era necessário para agradar as divindades, assim como se faz com um líder terreno. Isto resultou em inúmeras técnicas e cerimônias para mostrar respeito e prestar homenagem, sacrifícios, orações e assim por diante.

O fator essencial na determinação de ventos no mundo, de acordo com as religiões antigas, era a votnade da deidade (ou deidades).O fator que unia a humanidade a tais deidades ou pode sobrenatural era a fé. Tal fé em um deidade ou deidades era demonstrada por meio de sacrifícios, orações, cerimônias e assim por diante.

Assim, temos uma visão geral aqui de um diretor de eventos – a vontade de Deus; temos a conexão humana – fé; e temos o método de interação – sacrifícios, orações e assim por diante. Essa é a visão geral do papel da fé na maioria das religiões.

Agora, vamos ver como esses fatores se relacionam quando se trata de Buddhismo. Como já mencionei, o Buddhismo é baseado no desejo de se libertar do sofrimento. Qual é o método adequado para a prática no que diz respeito ao sofrimento? Para ser libertar do sofrimento, você deve ter um método. Para saber isso, você tem que buscar a fonte de onde o sofrimento surge. Onde está a fonte do sofrimento? Enquanto que outras religiões ensinavam que a fonte de perigo estaria em forças sobrenaturais, o Buddhismo diz que a fonte do sofrimento é um processo natural que deve ser compreendido.

O Sofrimento funciona de acordo com o processo natural de causa e efeito. Não conhecer ou compreender efetivamente este processo de causa e efeito é o motivo do sofrimento. O Buddhismo investiga a origem do sofrimento olhando para esta ignorância de causa e efeito, ou ignorância da Lei da Natureza.

Nesse ponto, chegamos ao coração do Buddhismo. Até agora eu disse que a origem das outras religiões era a consciência do perigo, e a origem do perigo, por sua vez, era a vontade de forças ou seres superiores; mas a fonte do Buddhismo é a consciência do sofrimento, cuja origem é a ignorância dos processos naturais de sofrimento, ou ignorância da lei da natureza.

Agora vamos corrigir o problema. Como corrigiremos o problema? Quando a ignorância sobre a Lei da Natureza for a causa, o remédio é seu exato oposto, e este é o conhecimento e a compreensão dessas coisas, às quais nós chamamos de sabedoria.

Antigamente, as religiões basearam-se na fé como a conexão entre os seres humanos e a origem do perigo. O Buddhismo mudou a conexão humana para a sabedoria. Nessa fase, a ênfase foi deslocada da fé para a sabedoria, e esta é uma diferença primordial do Buddhismo. Segundo o Buddhismo, os seres humanos devem conhecer e compreender o processo de causa e efeito e, a seguir, tratar o problema em conformidade.

Finalmente (x) o trabalho de corrigir os fatores envolvidos na criação do sofrimento é uma responsabilidade humana e está dentro do potencial humano fazê-lo. Portanto, a ênfase para resolver o problema mudou da vontade de uma força sobrenatural para o empenho humano.

(x) A alusão aqui, e nos quatro parágrafos anteriores, é às quatro nobre verdades: Sofrimento, sua cessação e o caminho que conduz para essa cessação, que é o coração do ensinamento buddhista.

Esses três pontos são altamente significativos.

  1. A maioria das religiões se preocupa com a origem do perigo, que são, supostamente, divindades (celestes), mas o Buddhismo se preocupa com a origem do sofrimento, que diz ser a ignorância.
  2. A conexão com essa origem, na maioria das religiões, é a fé, mas no Buddhismo é a sabedoria.
  3. O diretor de resultados na maioria das religiões é um poder divino ou sobrenatural, mas no Buddhismo esta responsabilidade foi colocada de volta nas mãos dos homens, com a ênfase na ação humana.

A ênfase no Buddhismo muda de fé à sabedoria, e esta é uma mudança revolucionária. Tal sabedoria começa com o desejo de saber, ou o desejo de conhecimento – antes que possa haver sabedoria, deve haver uma aspiração para tal. Mas essa aspiração  pelo conhecimento difere da ciência, como vou apresentar em seguida.

Outra mudança importante de ênfase no Buddhismo é a troca da ênfase nas iniciativas de uma deidade para a importância das atividades humanas. Este é um dos alicerces do Buddhismo. Não importa por onde este se espalhe, ou quão distorcidos os ensinamentos se tornem, esse princípio da ênfase na atividades humanas nunca varia. Se este princípio muda, então podemos afirmar seguramente não se tratar mais de Buddhismo.

O princípio do esforço humano é expresso nos círculos buddhistas como a Lei de Kamma. As pessoas podem interpretar mal o kamma, pode haver muitos equívocos sobre isso, mesmo dentro do mundo buddhista, mas não importa como ele pode variar, kamma sempre trata do esforço humano.

A combinação feita pelo Buddhismo da aderência à Lei da Natureza – proclamando a independência do homem -, e a colocação da sabedoria no lugar de destaque ao invés da fé, é um caso muito singular na história da religião. Isso ainda faz com que alguns analistas ocidentais achem que o Buddhismo não seja uma religião. Livros ocidentais sobre Buddhismo muitas vezes afirmam que o Buddhismo não é uma religião, o que significa que não é uma religião como é compreendida nas culturas ocidentais.

Portanto, temos estes três importantes princípios: 1) uma lei da natureza; 2) proclamação da independência do homem; 3) substituição da fé por sabedoria.

 

As Religiões Naturais: Compreendendo a Natureza Por Meio da Sabedoria

Agora, a fim de esclarecer as coisas aqui, eu gostaria de tomar um pouco do tempo de vocês, falando sobre algumas das características básicas do Buddhismo. Em primeiro lugar, gostaria de apresentar alguns dos ensinamentos do próprio Buddha, expandindo-os para ver como se relacionam com a ciência.

 

  1. Adesão à Lei da Natureza: a verdade é a Lei da Natureza, algo que naturalmente existe.

Foi o Buddha quem descobriu esta verdade. Podemos ter ouvido os monges a cantar o  Dhammaniyama Sutta em funerais, mas a maioria das pessoas não conhece o significado do que está a ser cantado, que é que a verdade da natureza existe como uma condição normal. Quer surja o Buddha ou não, a verdade continua lá.

O que é Dhammaniyama ou Lei da Natureza? Os monges cantam uppadavabhikkhave tathagatanam, anuppadavatathagatanam: “Com ou sem o surgimento de Buddhas, a verdade imutável e natural é que todas as coisas compostas são instáveis, impermanentes e sem-eu”.

Impermanência (anicca) significa que elas são condicionadas por forças opostas e conflitantes e são incapazes de manter a constância.

Não-eu (anatta) significa que não há um eu ou entidade intrínseca, as coisas se limitam a simplesmente seguir fatores de apoio. Qualquer forma que tomem é inteiramente na direção de fatores de suporte. Este é o princípio do surgimento condicionado, o nível mais básico da verdade.

O Buddha se iluminou para essas verdades, após o que ele as declarou e explicou. Assim é como as coisas seguem. Esse primeiro princípio é muito importante, o princípio mais básico do Buddhismo. O Buddhismo respeita essas leis naturais como verdades fundamentais.

 

  1. A inter-relação e a interdependência de todas as coisas: o Buddhismo ensina a Lei da Originação Dependente.

Em resumo, a essência desta lei é:

Imasmim sati idam hoti

Imasmim asati idam na hoti

Imassuppada idam uppadjati

Imassa nirodha idam nirujjhati.

Isto se traduz como:

Quando existe isto, isto existe;

Quando não existe isto, isto também não existe;

Porque isto surge, isto também surge;

Porque isto cessa, isto também cessa.

 

Essa é uma verdade, uma lei natural, que é aprofundada detalhadamente em aplicações práticas. Simplesmente falando, essa é a lei natural de causa e efeito, em seu nível mais básico.

Vale a pena notar que o Buddhismo prefere utilizar a expressão ‘causas e condições’, ao invés de ‘causa e efeito’. Causa e efeito refere-se a uma relação específica e linear. No Buddhismo, acredita-se que os resultados não surgem simplesmente de uma só causa, mas, também, de numerosos fatores sustentadores. Quando as condições são favoráveis, então, o resultado vem em seguida.

Por exemplo, suponha que plantamos uma semente de manga e uma árvore floresce. A árvore é o “fruto” (o efeito), mas qual é a causa dessa árvore de mangas? Pode dizer-se que a semente é a causa, mas se só existisse a semente a árvore não crescia.  Muitos outros fatores são precisos, como a terra, água, oxigênio, temperatura adequada, fertilizante, etc. Somente quando os fatores são apropriados, o resultado surge. Este princípio explica porque algumas pessoas, mesmo que sintam que tenham criado as causas, não recebem os resultados esperados. Elas devem questionar a si mesmas se terão criado as condições necessárias.

Note que essa relação casual não procede necessariamente numa direção linear. Nós tendemos a pensar nessas coisas como consequentes umas as outras – uma coisa surge primeiro e, então, o resultado surge logo em seguida. Mas não funciona necessariamente dessa forma.

Suponha que tivéssemos um quadro negro e que pegássemos um pedaço de giz e escrevêssemos as letras A, B e C. As letras que aparecem são um resultado. E agora, qual é a causa para que as letras apareçam no quadro? Normalmente, responderíamos “uma pessoa”. Se falarmos das marcas brancas no quadro, diríamos ser o giz. Mas não importa qual fator tomemos como causa, com somente uma causa, não é possível haver resultado. Para conseguir a letra ‘A’ neste quadro negro, é preciso uma confluência de vários fatores – um escritor, o giz, um quadro negro de cor apropriada – só ter um quadro negro não é o suficiente, o quadro precisa ser de uma cor que contraste com a cor do giz – é preciso ter uma temperatura adequada, um teor de umidade adequado, a superfície precisa estar livre de umidade excessiva… tantas coisas tem de estar de maneira exata, e esses são todos fatores na geração do resultado.

Agora, no aparecimento daquela letra ‘A’, não é necessário que todos os fatores envolvidos tenham ocorrido um após o outro, é?  Podemos ver que alguns desses fatores devem estar lá ao mesmo tempo, sendo fatores que são interdependentes de várias maneiras, não necessariamente seguindo uns aos outros de um modo linear. Esse é o ensinamento buddhista de causa e condição.

 

  1. O princípio da fé

Acabei de dizer que o Buddhismo deslocou a ênfase na religião: da fé para sabedoria. Então, por que deveríamos estar falando sobre a fé de novo? Em relação a isso, devemos entender que a fé ainda desempenha um papel muito importante no Buddhismo, mas a ênfase é alterada. Antes de mais nada, vamos dar uma olhada em como a fé está conectada, no Buddhismo, à verificação por meio da experiência atual. O ensinamento que é mais citado a esse respeito é o Kalama Sutta, que contém a passagem:

Aqui, Kalamas,

Não acredite simplesmente porque você já ouviu isso.

Não acredite simplesmente porque você tenha aprendido.

Não acredite simplesmente porque você tem praticado desde os tempos antigos.

Não acredite simplesmente porque há rumores.

Não acredite simplesmente porque está nas escrituras.

Não acredite simplesmente na lógica.

Não acredite simplesmente baseado na suposição.

Não acredite simplesmente baseado no raciocínio.

Não acredite simplesmente porque está de acordo com a sua teoria.

Não acredite simplesmente porque parece possível.

Não acredite simplesmente pela fé em seu mestre”

 

Esse ensinamento surpreendia as pessoas no Ocidente quando o ouviam pela primeira vez – este que era um dos ensinamentos mais populares do Buddhismo – porque naquela época a cultura ocidental estava apenas dando início à ciência. A ideia de não acreditar em qualquer coisa com muita facilidade, mas apenas através de uma verdade verificável, era muito popular. O Kalama Sutta era relativamente bem conhecido para as pessoas ocidentais familiarizadas com o Buddhismo, mas o povo tailandês quase não ouvia falar dele.

O Buddha continuou dizendo no Kalama Sutta que temos de saber e compreender, por meio da experiência, quais são as coisas hábeis e quais as inábeis. Sabendo-se que alguma coisa é inábil e nociva, propícia não ao benefício, mas ao sofrimento, ela precisa ser evitada. Sabendo-se que alguma coisa é hábil, útil e propícia à felicidade, ela precisa ser realizada. Isso é uma matéria de claro conhecimento, de direta realização, de experiência pessoal. Isso é a mudança de ênfase da fé para a sabedoria.

Além disso, o Buddha também ensinou alguns princípios claros para examinar a própria experiência pessoal. Ele disse: “Independentemente da fé, independentemente dos acordos, independentemente do aprendizado, independentemente do pensamento argumentado, independentemente da conformidade com suas próprias teorias, sabe-se claramente por si só quando há cobiça na mente, quando não há cobiça na mente; quando há ódio na mente e quando não há ódio na mente; quando há ilusão na mente e quando não há ilusão na mente, no momento presente”. Esta é a experiência pessoal verdadeira, o estado de nossa própria mente que pode ser conhecido claramente por nós mesmos no momento presente. Esse é o princípio de verificação por meio da experiência pessoal.

 

  1. Proclamando a independência da humanidade

O Buddhismo surgiu entre as crenças brahmânicas, que sustentavam que Brahma era o criador do mundo. Brahma (Deus) era o responsável de todos os eventos, e a humanidade tinha de realizar sacrifícios e cerimônias de oração, de que as pessoas naquela época tinham inventado muitas, para manter o Deus feliz. As suas cerimônias eram exuberantes, todas sintonizadas para ganhar o favor dos deuses e receber recompensas. Os Vedas brahmânicos afirmavam que Maha Brahma tinha dividido os seres humanos em quatro castas. Qualquer que fosse a casta em que uma pessoa nascesse, ficava ligada a ela para toda a vida. Não havia nenhuma maneira de mudar a situação, tudo estava amarrado pelas diretivas de Deus.

Quando o futuro Buddha nasceu, como o Príncipe Siddhattha Gotama, a primeira coisa a ele atribuída foi uma proclamação da independência humana. Você deve ter lido na biografia do Buddha, como, quando o príncipe nasceu, ele realizou o gesto simbólico de andar sete passos e proclamar: “Eu sou o maior do mundo, eu sou o primeiro do mundo, eu sou o mais grandioso do mundo”.

Essa citação pode ser facilmente mal interpretada. Pode-se dizer: “Porque o príncipe Siddhattha é tão arrogante?” Só que essa citação do Budhha deve ser reconhecida como a proclamação da independência humana. Todos os princípios expostos pelo Buddha nos momentos finais de sua vida apontam para o potencial dos seres humanos de desenvolverem a mais alta bondade. Um ser humano plenamente realizado é o melhor ser do mundo. O Buddha foi nosso exemplo e representação disso. Atingir o estado de Buddha foi a realização plena do seu potencial humano. Com tal potencial, não é mais necessário que os seres humanos continuem a mendigar ajuda de fontes externas. Portanto eles podem melhorar e confiar neles mesmos. Se um ser humano tornar-se um Buddha, será reverenciado até mesmo pelos anjos e deuses.

Há muitos exemplos desse tipo de ensinamento no Buddhismo. Considere, por exemplo, o frequentemente citado:

Manussabhutam sambuddham

attadantam samahitam…

Deva’pi namassan’ti

Isso é traduzido como “O Buddha, embora um ser humano, treinou e aperfeiçoou-se. Mesmo os deuses o veneram”.

Com esse princípio, a posição humana muda. A atitude de olhar externamente, tomando refúgio em deuses e divindades, foi fortemente retraída e as pessoas são ensinadas a mudarem foco e a olharem para si para verem que dentro delas encontra-se um potencial que pode ser desenvolvido para a melhor das realizações. Já não é mais necessário lançar seus destinos aos deuses. Se eles percebem esse potencial, até mesmo esses deuses reconhecerão sua excelência e o reverenciarão.

Esse princípio implica uma crença ou fé no potencial dos seres humanos para se desenvolverem até o ponto mais alto. O Buddha é nosso exemplo de um ser humano completamente desenvolvido.

 

  1. O princípio do remédio baseado em uma ação prática e arrazoada em vez da dependência de forças externas

Esse princípio está bem ilustrado em um dos ensinamentos do Dhammapada. A estrofe começa, “Babum ve saranam yanti…” “A humanidade, por estar sendo ameaçada por perigos…” Isso se refere à forma como os seres humanos existiam antes do Buddhismo, da mesma forma como já mencionado acerca do surgimento das religiões. A estrofe segue…

Os seres humanos, sendo ameaçados por perigos, refugiam-se em espíritos, santuários e árvores sagradas. Mas esses não são verdadeiros refúgios. Voltando-se para tais coisas como refúgio, não há segurança verdadeira.

Aqueles que se refugiam no Buddha, Dhamma e  Sangha, que compreendem as Quatro Nobres Verdades, vendo  a dificuldade, a causa da dificuldade, a libertação da dificuldade e o caminho que leva à libertação da dificuldade, são capazes de transcender todo perigo”.

Este é um momento decisivo, de mudança da ênfase das súplicas às deidades para a ação responsável. Mesmo assim, alguns buddhistas, desconhecendo este princípio, erroneamente reverenciam a Tríplice Joia como alguma coisa sagrada, como em outras religiões.

A Tríplice Joia começa com o Buddha, nosso exemplo de um ser humano perfeito. Este é um lembrete para a humanidade em relação ao seu potencial, e como tal encoraja-nos a refletir sobre a nossa responsabilidade para desenvolvê-lo. Tomar o Buddha como refúgio é um lembrete. Logo que pensamos na Tríplice Joia e no Buddha, refletimos sobre nossa responsabilidade de usar a sabedoria para resolver os problemas da vida e nos desenvolver a nós mesmos.

Quando pensamos no Dhamma, somos lembrados que o desenvolvimento desse potencial deve ser feito através de meios que estão em conformidade com a Lei da Natureza e funcionam de acordo com as causas e condições. Quando refletimos sobre a Sangha, pensamos naqueles que usaram o Dhamma (ensinamento) plenamente, desenvolvendo e realizando seu potencial. Essas pessoas são exemplos vivos da realização da verdade, e que, quando desenvolvendo a nós mesmos na prática correta, nós também asseguramos a nossa adesão.

Esses são os Três Refúgios. Se acreditamos ou temos fé neles, então devemos lutar para resolvermos problemas como seres humanos. Esse princípio nos força a usar a sabedoria. A maneira de resolver problemas através da sabedoria é:

  1. Dukkha (sofrimento): começamos com o problema, reconhecendo que ele existe;
  2. Samudaya (a causa do sofrimento-desejo baseado na ignorância): procuramos externamente a causa desse problema.
  3. Nirodha (a cessação do sofrimento – Nibbāna): Estabelecemos uma meta, que é extinguir o problema.
  4. Magga (o caminho que leva à cessação do sofrimento): Praticamos de acordo com essa meta. (x) Este é o princípio da resolução de problemas através da inteligência, através do esforço humano.

(x) Essas são as Quatro Nobre Verdades, o coração do Buddhismo que encapsula tudo aquilo que o Buddha ensinou. Em termos simples, são eles:

  1. O princípio da sujeição ao sofrimento.
  2. A lei da causação do sofrimento.
  3. A lei da cessação do sofrimento.
  4. O programa ou o caminho que conduz à cessação do sofrimento.

 

  1. Ensinando apenas aquelas verdades que sejam benéficas

Existem muitos tipos diferentes de conhecimento, muitos tipos diferentes de verdade, mas alguns deles não são úteis, desprovidos de qualquer preocupação em resolver os problemas da vida. O Buddha não ensinou tais verdades e não estava interessado em descobrir alguma coisa sobre elas. Ele se concentrou em ensinar apenas aquelas verdades que teriam benefício prático. Este princípio é ilustrado no símile das folhas, que o Buddha apresentou enquanto estava na floresta Sisapa.

Naquela época, o Buddha estava hospedado com uma companhia de monges. Um dia, ele pegou um punhado de folhas do chão da floresta e perguntou aos monges: “Quais são em maior número, as folhas na minha mão ou as folhas das árvores?” Uma pergunta fácil, e os monges responderam imediatamente. As folhas na mão do Buddha eram muito poucas, enquanto as folhas na floresta eram em muito maior número.

O Buddha respondeu: “É a mesma coisa com aquilo que vos ensino. Há várias verdades que eu conheço, mas a maioria delas eu não ensino. São como folhas na floresta. As verdades que eu de fato ensino são como as folhas aqui na minha mão. Por que eu não ensino aquelas outras verdades? Porque elas não conduzem à sabedoria última, à compreensão do modo como as coisas são ou para a correção dos problemas e a transcendência do sofrimento. Elas não levam à consolidação do objetivo: Nibbāna”.

O Buddha disse que ensinou as coisas como fez por serem úteis, por levarem à solução dos problemas e conduzirem à boa vida. Resumidamente, elas levam à transcendência do sofrimento.

Outro símile significativo, dado em outra ocasião, foi em resposta às questões de filosofia superior. Estas questões estão entre as questões nas quais a ciência está atualmente lutando, tais como: O Universo é finito ou infinito? Será que tem um começo? As escrituras mencionam dez questões filosóficas que existem desde antes a época do Buddha. Um monge que estava interessado em tais questões foi perguntar ao Buddha sobre elas. O Buddha se recusou a responder às suas perguntas e, ao invés, deu o seguinte símile:

Um homem foi atingido por uma flecha envenenada. Com a ponta da flecha ainda presente dentro de si, seus parentes correram para encontrar um médico. Quando o médico estava se preparando para cortar a ponta da flecha, o homem disse: “Espere! Eu não vou deixar você tirar esta ponta de flecha até que você me diga o nome do homem que atirou em mim. Onde ele mora? De que casta ele era? Que tipo de flecha ele usou? A flecha era feita de que? De que era feito o arco? De que foi feita a corda? Que tipo de pena foi anexada ao final da flecha? Até eu descobrir as respostas para estas perguntas, eu não vou deixar você retirar essa flecha”.

Obviamente, se tal homem fosse esperar pelas respostas a todas essas perguntas,  certamente morreria de antemão. Não só não obteria a informação desejada, mas morreria desnecessariamente. Qual seria o curso correto de ação aqui? Antes de mais nada, teria que retirar a flecha. Então, se ele ainda quisesse saber as respostas para aquelas perguntas, poderia sair em busca delas.

Da mesma maneira, o que o Buddha ensina é o sofrimento humano e a maneira de aliviá-lo. Questões filosóficas não são relevantes. Mesmo se o Buddha as tivesse respondido, suas respostas não poderiam ser comprovadas. O Buddha ensinou que se deve fazer rapidamente aquilo que deve ser feito, não perdendo tempo em buscas e debates inúteis. É por isso que o Buddha não respondeu tais perguntas e só ensinou aquelas verdades que são proveitosas.

Estas são algumas das características gerais do Buddhismo. Se já ouviram isso muitas vezes, por favor, não cheguem a conclusões precipitadas a respeito das semelhanças entre o Buddhismo e a ciência. Podem existir alguns pontos que soam bastante semelhantes, mas, dentro dessas semelhanças, há diferenças.

 

O bem e o mal

Já disse que a maioria das religiões viu os acontecimentos do mundo como o trabalho de divindades ou forças sobrenaturais. Se a humanidade não quisesse acontecimentos desagradáveis abatendo sobre ela, ou se aspirasse a alguma recompensa, ela teria de deixar as divindades perceber alguma exibição de adoração e obediência.

Isto não se aplica aos eventos externos e naturais. Mesmo as vidas pessoais estão sob controle das divindades. A divindade, Deus, foi o criador do universo, com toda a sua felicidade e sofrimento. Ele está constantemente a monitorar o comportamento humano de modo a verificar se é do Seu agrado ou não e, assim, as pessoas estão sempre em alerta de modo a evitar qualquer ação que possa desagradar a divindade.

De acordo com esse padrão, todo comportamento humano poderia ser classificado em duas categorias. Primeiramente, aquelas ações que eram agradáveis à divindade, que seriam recompensados e que eram conhecidas como “boas”; e as ações que desagradassem, que deveriam ser punidas e que seriam conhecidas como “más”. Algumas vezes, essas qualidades eram vistas como diretivas das divindades. O que fosse aprovado pelas divindades era “bom” e o que era proibido era “mal”. Os padres ou representantes da religião eram os mediadores que informavam a humanidade quais as  ações boas e quais as más, de acordo com os critérios determinados pelas divindades. Os critérios utilizados para essa definição se tornaram conhecidos como “ética” ou “moral”.

A moralidade ou ética é uma parte muito importante da religião. Você poderia quase dizer que era a essência da religião. A moralidade ocidental evoluiu e se desenvolveu muito, como descrevi aqui.

Quanto a ciência, a partir do momento em que se separou da religião, interessou-se unicamente pelo mundo físico externo e ignorou completamente o lado abstrato das coisas. A ciência não teve qualquer interesse em questões morais ou éticas, encarando-as como preocupações da divindade, sem fundamentos em fatos e abandonou completamente essas coisas. As populações dos países ocidentais, ou dos países que conhecemos como tecnologicamente desenvolvidos, foram cativadas pelos avanços da ciência. Em comparação, ensinamentos da religião das divindades e forças sobrenaturais pareciam mal fundamentados. E, assim, eles viraram as costas para a religião. Naquele momento, moral e ética perderam o significado. Quando Deus deixou de ser importante, a moral ou a ética, o conjunto das leis de Deus, já não eram mais importantes. Muitas pessoas hoje, incluindo aqueles nos círculos científicos, veem a ética apenas como os ditames arbitrários de certos grupos de pessoas, tais como padres ou representantes religiosos, na melhor das hipóteses estabelecidas para manter a ordem social, afora isso não possuindo qualquer verdade intrínseca.

Os ramos da ciência que estudam o desenvolvimento da civilização humana, especialmente a sociologia e alguns ramos da antropologia, vendo o sucesso das ciências físicas, tentaram conquistar uma posição similar usando métodos semelhantes aos das ciências físicas. As ciências sociais tendem a ver a ética ou a moral como valores sem fundamento científico. Tem havido a tendência de evitar a ética por forma a mostrar que eles, também, são ciência pura e vazia de sistemas de valores. Até mesmo quando se fazem estudos sobre questões éticas, apenas olham para quantidades mensuráveis de comportamento social.

As ciências físicas, as ciências sociais e as pessoas na era moderna, em geral, olham para a ética como criação puramente convencional. Elas são incapazes de distinguir a ética da sua manifestação convencional, o que é um passo na direção errada – na tentativa de evitar a falsidade, elas acabaram afastando-se demasiadamente da verdade.

Agora, deixe-nos retornar ao tema do Buddhismo. No que diz respeito a ética, tanto a ciência quanto o Buddhismo diferem da grande gama de religiões. Enquanto a ciência se separou completamente delas, ignorando qualquer consideração sobre ética ou valores, o Buddhismo estuda e ensina o papel da ética dentro do processo natural.

Enquanto a maioria das religiões olha para os acontecimentos da natureza, tanto fora do homem quanto dentro dele, como sendo as diretrizes de uma divindade, o Buddhismo olha para esses eventos como sendo o processo normal e natural de causas e condições. Em relação aos seres humanos e condições abstratas, ou valores, as mesmas leis aplicam-se aos trabalhos físicos da natureza. Eles são parte do fluxo de causas e condições, funcionando inteiramente pelas diretivas das leis naturais. A diferença na qualidade é determinada por variações dentro dos fatores do fluxo.

A fim de facilitar nossa compreensão desses processos, o Buddhismo divide as leis da natureza em cinco tipos, chamados niyama (leis). Eles são:

  1. Utuniyama (leis físicas): As leis naturais que lidam com os eventos no mundo natural ou no ambiente físico.
  2. Bijaniyama (leis biológicas): As leis naturais que lidam com animais e plantas, em particular, hereditariedade.
  3. Cittaniyama (leis psíquicas): as leis naturais que lidam com o funcionamento da mente e do pensamento.
  4. Kammaniyama (leis kármicas ou morais): as leis naturais que lidam com o comportamento humano, especificamente a intenção e as ações dela decorrentes.
  5. Dhammaniyama (a lei geral de causa e efeito): a lei natural que lida com a relação e interdependência de todas as coisas, conhecida simplesmente como o modo das coisas.

Em termos dessas cinco divisões da lei natural, podemos ver que a ciência tem total confiança na dhammaniyama (a lei geral de causa e efeito), embora limitando o seu campo de investigação a utuniyama (leis físicas) e bijaniyama (leis biológicas). Em relação ao Buddhismo, na prática ele enfatiza kammaniyama (a lei da ação moral), embora uma corrente do Buddhismo, o Abhidhamma (x), saliente o estudo de cittaniyama (leis psíquicas), em relação a kammaniyama e dhammaniyama.

(x) O Abhidhamma, ou a Verdade Superior, é a terceira cesta do Tipitaka, o Cânone Pāli buddhista. O Abhidhamma é um compêndio dos ensinamentos buddhistas apresentados em termos puramente analíticos e impessoais).

 

A Lei do Kamma: Moralidade científica

Um verdadeiro entendimento da realidade é impossível se não houver entendimento de todas as leis da natureza, de sua interrelação e unidade. Isso inclui, em particular, o elemento humano, os fatores mentais e valores daqueles que estudam tais leis. Cientistas podem estudar as leis da física, mas enquanto forem ignorantes de si mesmos e estiverem estudando tais leis, jamais serão capazes de ver a verdade, até mesmo aquelas das ciências físicas.

No nível básico, os seres humanos vivem neste mundo físico em um plano material, mas dentro desse mundo físico há o mundo mental. Na medida em que há mente, os seres humanos vivem em um mundo humano, e este mundo humano é de importância vital, exercendo influência sobre nossas vidas de modo muito mais claro do que a influência do ambiente físico.

Nossa vida cotidiana, nossos pensamentos, comportamento e ações, nossa comunicação, nossas tradições e instituições sociais são inteiramente produtos da ação humana intencional, o que no Buddhismo é chamado de kamma. Intenção é aquele fator único que capacitou seres humanos a progredir até aqui.

O mundo humano é, portanto, o mundo da intenção e segue as diretrizes da intenção. No Buddhismo diz-se: kammuna vattayi- loko – o mundo é dirigido pelo kamma. Para compreender o mundo humano, ou a situação humana, é necessário entender a lei natural conhecida como a Lei do Kamma.

Seja isso intenção, kamma, comportamento, princípios morais, qualidades abstratas, valores, natureza interna ou mente humana – tudo isso é inteiramente natural. Isso existe de acordo com as Leis da Natureza, não pelas diretrizes de deidades. Nem são acidentais. São processos que estão dentro de nossa humana capacidade entender e desenvolver.

Por favor, notem que o Buddhismo diferencia entre a lei do Kamma e as leis físicas. Isso indica que a mente e a intenção não são a mesma coisa, e podem ser estudadas como verdades separadas. Entretanto, essas duas verdades estão ligadas de modo extremamente próximo. Uma analogia simples é aquela de uma pessoa pilotando um barco a motor. A mente é como o barco e seu motor, enquanto a intenção é o piloto do barco, que decide onde o barco irá e o que ele fará.

Um tipo parecido de evento natural pode surgir de leis diferentes em situações diferentes, enquanto alguns eventos são produtos de mais de uma dessas leis naturais funcionando em uníssono. Um homem com lágrimas nos olhos pode estar sofrendo dos efeitos da fumaça (lei física) ou de intensos estados emocionais (lei psíquica) de alegria ou de tristeza ou ser resultado de ansiedade sobre ações passadas (lei do karma). Uma dor de cabeça pode ser causada por doença (lei biológica), um quarto abafado ou mal-ventilado (lei física) ou por depressão ou preocupação (lei do karma).

 

A questão do livre-arbítrio

Quando as pessoas do Ocidente começam a estudar o assunto do kamma, ou intenção, elas frequentemente se confundem com o problema do livre-arbítrio. Existe livre-arbítrio? Na realidade, não há livre-arbítrio no sentido de ser “absolutamente livre”, porque a intenção é apenas um dos incontáveis processos inter-relacionados de causa e efeito. No entanto, poderá ser considerado livre de um modo relativo. Poderíamos dizer que é “relativamente livre”, porque isso é de fato um dos fatores dentro do processo natural como um todo. No Buddhismo isso é chamado de purisakara. Cada pessoa tem a capacidade de iniciar pensamento e intenção, e como tal, se tornar o fator instigante em um processo de causa e efeito, ou kamma, para o qual dizemos que cada indivíduo deve aceitar a responsabilidade.

Mal-entendidos, ou falta de compreensão, em relação a esta questão do livre-arbítrio surgem de uma série de equívocos mais profundamente enraizados, em particular, o equívoco do self. Este conceito causa uma grande confusão quando as pessoas tentam ver a realidade como uma condição real, mas ainda estão presas em seu pensamento habitual, que se apega rápido aos conceitos. As duas perspectivas se chocam. A percepção é de um executor e um receptor de resultados. Enquanto, na realidade, há apenas um sentimento, a percepção de ‘aquele que sente’. (Nos textos é dito: há a experiência de sentir, mas ninguém que  sente). A razão para esta confusão é a ignorância da característica de anatta, não-eu.

O Buddhismo não para no mero livre arbítrio, mas aspira à fase de ser ‘livre de arbítrio’, transcendendo o poder da vontade, que só pode ser alcançado pelo desenvolvimento completo do potencial humano por meio da sabedoria.

Observem também que dentro deste processo de desenvolvimento humano, as áreas da mente e da sabedoria são distintas uma da outra. A sabedoria que está totalmente desenvolvida liberta a mente. Então, temos a mente com vontade e a mente com sabedoria. No entanto, isso é um interesse prático, um assunto vasto que deve ser reservado para um momento posterior.

A minha intenção é simplesmente mostrar que alcançar a sabedoria perfeita, ou realidade, deve surgir da compreensão do ser humano e o seu lugar na ordem natural, incluindo as condições abstratas e os valores que existem nelas.


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2015-2016 Edições Nalanda

Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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1 COMMENT

  1. Agradeço ao Centro Nalanda por deixar esse artigo disponível na página do Nalanda no facebook.
    Gostei muito de ler esse artigo.
    _/\_

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