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~ por Ven. Ajahn Payutto ~

3. Correlação entre Princípios Espirituais e Práticos

A prática espiritual conducente a libertação apoia a prática da diligência por promover purificação da ação. Pessoas libertas agem com um coração puro, não emaranhado por impurezas. A prática conducente à libertação também nutre um sentido de alegria. Ela alivia as pessoas do estresse, perturbação e preocupação com estados mentais não saudáveis, por exemplo, o agir por medo ou competitividade. Ao invés, as pessoas agem com uma mente serena e radiante. [70/45] Além disso, quando as pessoas veem o valor da libertação e do bem-estar mental, elas executam as atividades externas para promover uma vida justa e pacífica. Em resumo, o progresso material vai de mãos dadas com o desenvolvimento espiritual.

A diligência, da mesma forma, complementa a prática conducente à libertação. Geralmente, quando as pessoas estão tranquilas, elas se tornam descuidadas, tornando-se indolentes e falhas em seu esforço. Pessoas que obtêm sucesso material ou que solucionam os problemas externos não são as únicas que se tornam descuidadas quando estão prósperas e confortáveis. Aqueles que se resignaram com a impermanência, dukkha e não-eu, cujos corações estão tranquilos, também tendem a tornarem-se apegados à felicidade e deixam de fazer esforço. Eles não atentam às questões não resolvidas e não incitam a si mesmos a aperfeiçoar tanto a circunstância pessoal quanto a social. O valor prático das Três Características impede essa estagnação e motiva tais indivíduos a perseverar.

Em resumo, essas duas práticas devem ser unificadas para que a prática do Dhamma seja correta. O progresso espiritual, então, inspira a ação virtuosa e plena de contentamento, enquanto as atitudes nutrirão ainda mais o desenvolvimento espiritual. A prática adequada é livre da ação com uma mente perturbada quanto complacente. O bem-estar que as pessoas conquistam com a prática não se torna um obstáculo para esforços subseqüentes. A realização espiritual, então, garante a ação, e a ação nutre a realização espiritual. Em uníssono, a perfeição é alcançada.

Ambas as qualidades, espiritual e prática, dependem da sabedoria que compreende as Três Características e leva ao não-apego, ao abandono, à renúncia e à libertação. Quanto mais profundo o entendimento, maior é a liberdade e maior a realização. Por exemplo, por meio do jhāna* ou da obtenção de um insight, a pessoa é capaz de perceber a impermanência, dukkha e não-eu no êxtase daquela condições e não se apegam ao êxtase nem às realizações.

* Absorção meditativa

Em termos práticos, a sabedoria desperta as pessoas para agir com diligência e aproveitar o máximo de cada oportunidade. Uma compreensão da lei da causalidade leva a pessoa a investigar as causas para resolver os problemas em sua raiz, ou a agir em harmonia com tal lei. Esse conhecimento inclui a análise das causas dos eventos passados de forma que se aprenda com eles e se reconheça as condições necessárias para evitar danos e promover o bem-estar.

As duas formas de prática revelam a suprema importância do ensinamento sobre as Três Características. A primeira destaca a sabedoria que penetra a realidade compreendendo as Três Características [70/46]. A segunda aponta para a prática diligente, que brota de uma compreensão das Três Características. A tarefa da sabedoria é perceber a verdade das Três Características, com essa realização o coração é liberado. Ao mesmo tempo, as Três Características motivam a pessoa que tenha algum nível de discernimento a ser diligente, fazer um esforço além e a evitar a transgressão.

Um entendimento das Três Características é a fonte da ação justa, desde os estágios iniciais da prática do Dhamma até o fim. A consciência das Três Características é a motivação para a diligência, para a abstenção do mal, engenhosidade e boa conduta em todos os níveis. Em última instância, uma completa compreensão das Três Características possibilita perfeita liberdade mental, que é a mais elevada conquista humana.

O mundano e o transcendente convergem nas Três Características. A libertação do coração é uma qualidade transcendente; a diligência é mundana. A natureza mutuamente sustentadora desses dois princípios demonstra que em uma vida louvável o mundano e o transcendente habitam em uníssono. Vê-se a evidência disso claramente no Buddha e nos arahants. Perfeitamente livres eles representam o ideal humano e alcançaram esta liberdade por meio da diligência. Arahants são descritos somente pelo epíteto de ‘aqueles que têm perfeita diligência’ [85]; são pessoas que concluíram os seus assuntos por meio de cuidadosa atenção. Tendo atingido o estado de arahant eles continuam a perseverar pelo bem-estar da comunidade buddhista (saṅgha) e de todos os seres. Deve-se seguir o exemplo desses seres despertos através da realização da liberdade mental e da ação cuidadosa. [86]

Os valores revelados pelas Três Características garantem a perfeita conduta moral, com consequências definidas. Há duas coisas que garantem a conduta moral infalível: [70/47]

1) Uma mente sem desejos, que não experiencia o apego, o anseio, a luxúria por objetos materiais ou pensamentos perversos, sendo livre de impurezas; o fim do egoísmo.

2) A felicidade sublime que é independente da materialidade e é alcançável sem violação moral.

De fato, a primeira qualidade é suficiente para garantir a impecabilidade moral. A segunda é apenas uma confirmação adicional. A libertação concede essas duas garantias morais. Um completo entendimento do mundo e um insight das Três Características conduzem à liberdade do coração. A ganância e o ódio, ambos bases das más ações, cessam. Em outras palavras, a conduta moral surge automaticamente uma vez que não existe o impulso de agir imoralmente. Além disso, a libertação gera uma profunda alegria. Seres despertos experienciam expansividade e alegria, e alguns deles experienciam estados exaltados de bem-aventurança em jhāna. [87] Experimentando tal felicidade, é natural que eles não sejam mentalmente inclinados a agir de forma reprovável por causa de outro tipo de felicidade. Em todo caso, deve-se entender que a segunda garantia de refinada felicidade por si só não é ainda totalmente confiável se ainda for uma forma mundana de felicidade, por exemplo, aquela de jhāna, uma vez que uma pessoa que alcança esses estados mundanos ainda pode reverter à indulgência em formas grosseiras de felicidade. Para estar realmente segura a pessoa precisa obter a primeira garantia do não-anseio, ou então, a felicidade deve ser transcendente, o que automaticamente surge com a primeira garantia.

Os que adentraram a corrente (sotāpanna) possuem estas duas garantias morais; eles são impecáveis na conduta moral e são incapazes de transgressão. As escrituras se referem aos seres despertos (ariya-puggala) de Entrantes na Corrente em diante, como sendo ‘perfeitos na conduta moral’ [88]. Portanto, se aspiramos por paradigmas éticos que devam ser firmemente estabelecidos na sociedade, devemos promover a realização de Entrantes na Corrente. Vamos assim encontrar sucesso real.

Se a pessoa é incapaz de estabelecer essas duas garantias, as chances de uma sociedade eticamente segura serão poucas, porque os membros dessa sociedade estarão infectadas por impurezas e, portanto, predispostos a violar os limites. Nesse caso, sistemas de controle e coerção precisam ser criados, ou mesmo ser aplicada força excessiva, que não oferece segurança verdadeira ou solução. [70/48] Vemos a falta de sucesso de tais medidas em todos os lugares. Por exemplo, as pessoas atualmente recebem avançada educação, e aprendem o que é o bem e o mal, o que é benéfico e prejudicial. Mas porque são vítimas da ganância (lobha), ódio (dosa) e ilusão (moha), elas agem imoralmente; elas ferem a si próprias (por exemplo, pelas drogas) e causam danos à sociedade (por exemplo, pelo desmatamento). Argumentos racionais e aplicação da lei acabam por ter um efeito mínimo.

Quando as pessoas são incapazes de estabelecer as duas garantias antes mencionadas, geralmente usam os seguintes métodos para proteger ou promover padrões éticos, com graus variáveis de sucesso:

• A intimidação pelo estabelecimento de regras, leis e punições. Devido ao não cumprimento dessas leis, novos sistemas devem ser criados como reforço. Em adição, o próprio sistema pode ser falho, por exemplo, devido à corrupção. Como resultado, as tentativas para manter padrões éticos encontram um sucesso sempre decrescente.

• A intimidação por ameaças de um poder oculto, por exemplo, de deuses e forças sobrenaturais. Essa é bem-sucedida durante o tempo em que as pessoas acreditam nessas forças, mas é menos eficaz quando as pessoas têm o tipo de conhecimento científico de hoje em dia. Essa forma de intimidação inclui instilar o medo de ir para o inferno.

• A intimidação por ameaças contra a honra e a popularidade de uma pessoa, por exemplo, aplicando a pressão social da culpa e do descrédito. Isso funciona para alguns, mas não para outros, e é duvidoso na melhor das hipóteses.

• Cultivar o desejo usando uma recompensa ou compensação, quer seja advinda de pessoas, de deuses ou de poderes ocultos, incluindo a promessa de um céu. Esse método é variavelmente eficaz, de acordo com tempo e lugar, e seus resultados são incertos.

• Um apelo à virtude e à justiça, por encorajar um sentimento de vergonha, auto-respeito e atenção. Poucos possuem essas qualidades desenvolvidas; as pessoas costumam se submeter ao desejo e, portanto, sua conduta moral é inconsistente. A proteção conferida por essa motivação é especialmente fraca em uma era abundante de tentações e valores nelas baseados.

• Um apelo à fé, ao restringir a mente por uma forte convicção num ideal. Isso é difícil de realizar, e mesmo quando bem sucedido, é incerto, porque a fé é dependente de algo externo. Fé não é o conhecimento direto, e a confiança apenas pela fé está ainda marcada por impurezas. Ocasionalmente, essa impureza se intensifica e, então, sacraliza a fé, ou a fé diminui e desaparece por si própria. (Esse método inclui o poder da concentração em fases preliminares de liberação da mente – cetovimutti).

• Aplicar o poder do entusiasmo (chanda) pelo incentivo ao interesse no desenvolvimento da virtude. [70/49] Essa força é o oposto do desejo, que é o agente por trás do comportamento imoral. Se alguém ainda não pode cultivar a libertação do coração, deve-se enfatizar o surgimento de tal entusiasmo, pois é uma força saudável, está conjugada com sabedoria e apóia a liberação mais diretamente do que qualquer dos outros métodos mencionados acima.

Independentemente de qual motivação se utilize, a prática do Dhamma deve apoiar-se em auto-contenção (saññama) para alcançar a retidão moral. Portanto, para nutrir a conduta ética as pessoas devem ser treinados em estrita autodisciplina. A qualidade do sucesso depende também da motivação. De todas as motivações listadas acima, o apelo às qualidades virtuosas, fé e entusiasmo são as melhores, mas é preciso lembrar que essas forças são incapazes de gerar resultados definitivos. Uma sociedade ética verdadeiramente estável apenas existe quando as pessoas estabelecem as duas garantias morais: um coração livre e felicidade sublime, que geram a integridade moral automaticamente. Pode-se usar a diligência como um padrão de avaliação para a prática do Dhamma comparando-se aos arahants, que combinam a consumada libertação com perfeita diligência. Eles integram o conhecimento da verdade com a pura conduta, o não-apego com um esforço sincero e transcendente realização com uma ação responsável no mundo. Eles revelam como dois elementos aparentemente discordantes podem existir em harmonia, e mesmo apoiarem-se mutuamente. Diligência é o núcleo de toda conduta justa e é o incentivo por trás de todos os atos virtuosos do início ao fim. Como disse o Buddha, a diligência é como a pegada de um elefante, que envolve as pegadas de todos os outros animais; ela dita a função de todas as outras virtudes. Todas as virtudes dependem da diligência. Independentemente de todas as virtudes descritas nas escrituras a negligência, por si só, suprime e invalida-as como se elas não existissem. Virtudes são verdadeiramente eficazes quando a diligência se encontra estabelecida. Para as pessoas comuns, no entanto, a diligência tende a ser atenuada ou limitada, e se transforma em descuido devido à sua inquietação para com os objetos sedutores dos sentidos. O anseio causa preguiça, preocupação e procrastinação. A conduta das pessoas é assim continuamente ansiosa ou infrutífera. Inversamente, quanto maior a libertação do coração, menos a pessoa se entrega aos ilusórios objetos do sentido, e quanto mais zelosa é, menos oprimida por impurezas. [70/50] Liberdade e esforço compenetrado apoiam um ao outro dessa forma. Em adição, o princípio da diligência é um lembrete de que todas as
pessoas, incluindo os Nobres (ariyas) em estágios iniciais do despertar, são vulneráveis, uma vez que ainda não realizaram o estado de arahant. Eles podem tornar-se negligentes por apegarem-se à tranquilidade e ao contentamento decorrentes de suas realizações: suas virtudes os induzem ao erro. Portanto, devemos constantemente lembrar-nos de cuidar e promover um senso de urgência (saṁvega).

Numa comunidade em que as pessoas sucumbem à negligência, oferecer amizade e encorajar as pessoas a serem prudentes é uma tarefa para a pessoa diligente. A presença de um “bom amigo” (kalyāna-mitta) é um fator chave que é par da prudência, funcionando como antídoto quando todas as outras virtudes são perdidas durante um período de negligência e como uma resposta para a pergunta: tendo sido descuidado, quais são as alternativas ao mero esperar por arcar com as dolorosas consequências?

Para resumir, as pessoas devem ser cuidadosas e fazer um esforço compenetrado para o desenvolvimento e benefício próprios e dos outros. Por exemplo:

• Os líderes de um país devem se esforçar para estabelecer a paz e o bem-estar, promover um ambiente saudável e nutrir as qualidades espirituais das pessoas.

• Anciãos devem propagar o Dhamma para o bem-estar de muitos, agindo em consideração às futuras gerações e fazendo tudo que estiver em suas capacidades para preservar o Verdadeiro Ensinamento (saddhamma) para todos os seres em todos os lugares.

• Os monges devem cumprir as suas funções e inspirar as pessoas com cuidado; eles devem gerar uma sensação de paz e segurança por não se envolverem com práticas de auto-mortificação e ensinando o caminho para uma vida virtuosa.

• Todas as pessoas devem se esforçar pelo bem-estar pessoal através do desenvolvimento da autoconfiança, e pelo bem-estar dos outros ajudando-os a conquistar a autoconfiança. Deve-se cultivar a sabedoria para alcançar o maior benefício, que leva à libertação e a uma vida de integridade. [70/51]

Porque os seres humanos que estão momentaneamente sem problemas, vivendo em conforto ou se resignaram com algum aspecto da verdade, normalmente tornam-se descuidados, professores qualificados costumam oferecer advertências amigáveis. Eles constantemente procuram meios de incentivar seus seguidores com conselhos inspiradores e mesmo frustrantes, para estabelecer as pessoas na diligência.

 


 

Traduzido por Jorge Furtado para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2011 Edições Nalanda


Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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