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~ por Ven. Ajahn Payutto

1. Nibbāna pode ser atingido nesta Vida.

O Nibbāna, que é o objetivo mais alto do Buddhismo, pode ser percebido pelas pessoas nesta vida, se elas aplicarem esforços e estiverem dotadas com as qualidades necessárias. Uma pessoa não precisa esperar até a próxima vida, como é explicado pelos atributos do Nibbana, como sandiṭṭika (ver claramente por si mesmo, realizável nesta vida) e akalika (não sujeito ao tempo, imediato). [1]

O Buddha ofereceu caminhos para praticar e perceber o Nibbāna nesta própria vida [2], como relata esta passagem:

Eu falo a vocês: Deixem uma pessoa sábia vir a mim, se ela for sincera, honesta e direta, eu a instruirei, ensinarei o dhamma a ela. Se ela praticar o que é ensinado, em sete anos perceberá por ela mesma, aqui e agora, com conhecimento direto, a meta suprema da vida santa, pelo qual os membros de um clã de forma correta abandonam a vida no lar para uma vida sem lar. Deixem para lá sete anos –  em seis anos, cinco anos, meio mês, em sete dias, ela poderá atingir seu objetivo [3].

2. Nibbāna pode ser atingido por todos.

Todas as pessoas que têm determinação e aptidão espiritual podem atingir o Nibbāna. Não há restrição de raça, classe, casta, riqueza, sexo ou se é um chefe de família ou um monge, assim como verificado nos versos do Buddha:

Esse caminho é chamado de ‘O Caminho Reto’,

e ‘Sem Medo’ é o seu destino.

O veículo é chamado de ‘Silencioso’,

Possuidor de rodas de justiça,

um sentimento de vergonha é a sua retaguarda,

a vigilância é a sua armadura;

Digo isso que este veículo do Dhamma,

Tem visão correta que dirige como o cocheiro.

Aquele que tem um veículo desse tipo,

se uma mulher ou um homem,

por meio desse veículo,

chega à morada do Nibbāna. [4] [372]

 

O Buddha permitiu que as mulheres fossem ordenadas como bhikkhunis apesar da oposição por elementos da sociedade indiana daquele tempo; ele afirmou que as mulheres que seguem o Dhamma-vinaya [5] são capazes de atingir estados supramundanos, desde a entrada-na-corrente até o estado de arahant, do mesmo modo que os homens. [6]

Numa vez, Somā Bhikkhunī estava sentada aos pés de uma árvore quando Māra se aproximou, e querendo perturbá-la e assustá-la, exclamou em verso:

    Aquele estado tão difícil de atingir

    Que é para ser alcançado pelos sábios que veem,

    Não pode ser alcançado por uma mulher

    Com sua sabedoria de dois-dedos.

 

Somā Therī replicou:

    Que importa realmente a feminilidade

    Quando a mente é bem concentrada,

    Quando o conhecimento flui estavelmente,

    Corretamente vendo o Dhamma.

    Aquele a quem possa ocorrer,

    “Eu sou uma mulher” ou “Eu sou um homem”

    Ou Eu sou uma coisa qualquer –

    É adequado para Māra se dirigir. [7]

 

Com relação aos que moram em família e aos monásticos, o Buddha dizia o seguinte:

Eu não elogio o modo errôneo de prática seja dos que moram em família ou daqueles que abandonaram o lar; pois seja um chefe de família ou quem haja abandonado o lar, aquele que adota o modo errôneo de prática, por meio desse modo errôneo de prática, não cumpre o caminho verdadeiro, o Dhamma que é saudável. Eu elogio o modo correto de prática seja dos que moram em família ou daqueles que abandonaram o lar; pois seja um chefe de família ou quem haja abandonado o lar, aquele que adota o modo correto de prática, por meio desse modo correto de prática, cumpre o caminho verdadeiro, o Dhamma que é saudável”. [8]

Digo que não há diferença entre um seguidor laico que é (assim) liberto na mente e um bhikkhu que foi liberto na mente por cem anos, isto é, uma libertação é a mesma que a outra [9].

[373] As castas eram um tema difícil de debate e controvérsia na Índia e sobre o qual o Buddha frequentemente discursava. Um exemplo era a discussão entre o Buddha e o brāhmaṇa Esukārī:

Mestre Gotama, os brāhmaas prescrevem quarto tipos de riqueza: prescrevem pedir alimento como a riqueza de um brāhmaa… a tigela e a aljava como a riqueza de um nobre… plantar e criar gado como a riqueza de um comerciante… a foice e o cajado como a riqueza de um trabalhador. O que o Mestre Gotama te a dizer sobre isso?

Bem, brāhmaa, todo o mundo autorizou os brāhmaas a prescreverem esses quarto tipos de riqueza?”  “Não, Mestre Gotama”. “Suponha, brāhmaa, que eles forçassem um pedaço de carne a um homem pobre, sem dinheiro, destituto, e dissessem a ele: ‘Bom homen, você deve comer estar carne e pagar por ela’; da mesma forma, sem a permissão daqueles [outros] reclusos e brāhmaas, os brāhmaas prescrevem esses quarto tipos de riqueza”.

Eu, brāhmaa, declaro que o nobre Dhamma supramundano é a riqueza da própria pessoa. O que pensa, brāhmaa? Suponha que um nobre rei que foi ungido fosse reunir aqui cem homens de diferentes nascimento e dizer a eles: ‘Venham, senhores, que qualquer um aqui que tenha nascido em um clã nobre ou em um clã brāhmaa, ou em um clã real tome o pedaço de madeira, teca, madeira sala, pinho, sândalo, romã, e acenda um fogo e produza calor. E também que qualquer um que tenha nascido em um clã desprovido de casta, em um clã de caçadores, em um clã de trabalhadores de vime, em um clã de carpinteiros de carroças, em um clã de catadores, tome um pedaço de madeira de uma calha os cães bebem, de porcos, de uma tina vazia ou de uma madeira de óleo de rícino, e acenda um fogo e produza calor”.

O que pensa, brāhmaa, quando um fogo é aceso e o calor é produzido por alguém do primeiro grupo, aquele fogo teria uma chama, uma cor e uma radiância, e seria possível usá-lo para os propósitos do fogo, enquanto que quanto a um fogo aceso e o calor produzido por alguém do segundo grupo, um tal fogo não teria chama, cor ou radiância, e não seria possível usá-lo para os propósitos do fogo?”.

Não, Mestre Gotama. Todo fogo tem uma chama, uma cor e uma radiância, e é possível usar todos os tipos de fogo para os propósitos do fogo”.

Assim, também brāhmaa, se alguém de um clã nos nobres vai da vida no lar para uma vida sem lar, dependendo no Dhamma e na Disciplina proclamados pelo Tathāgata, mantém a visão correta, ele é alguém que preenche as qualidades saudáveis que são o caminho da libertação. Se alguém de um clã dos brāhmaas, de um clã dos comerciantes, de um clã dos trabalhadores, vai da vida no lar para uma vida sem lar, dependendo no Dhamma e na Disciplina proclamados pelo Tathāgata, mantém a visão correta, ele é alguém que preenche as qualidades saudáveis que são o caminho da libertação” [10]. [374]

3. Nibbāna é a Mais Alta Realização

Embora a realização do Nibbāna seja dependente da libertação mental (cetovimutti), isto é, depende de uma conquista particular de jhāna, e essa conquista tem uma influência na vida cotidiana dos seres iluminados, Nibbāna é diferente de jhāna. Nibbāna é uma libertação até mesmo destas realizações psíquicas e é acessível quando se é capaz de transcendê-las. Há alguns aspectos únicos ao Nibbāna:

A realização do Nibbāna é decisiva, final e irreversível. Em relação à conduta moral, por exemplo, o verdadeiro desprendimento (ausência de eu) espontâneo surge. Esta conduta altruísta origina-se da erradicação do desejo egoísta pela sabedoria, ao ponto que toda auto obsessão é abolida. Como este desprendimento surge natural e espontaneamente, ele não é resultado de força de vontade ou energia; não é preciso adotar uma opinião ou hábito para abandonar o outro. Não é preciso segurar um ideal, sacrificar-se para um objeto de fé, suprimir paixões pela calma ou introspecção, ou ficar absorvido em jhāna.

Não importa quão elevadas as realizações mentais de uma pessoa, há que observar a sua natureza causal e soltar-se do apego a estas realizações antes de atingir o Nibbāna. No fundo, este soltar-se do apego sustenta, consolida e aperfeiçoa mais desenvolvimento espiritual, até para os seres iluminados. Por exemplo, tais seres podem beneficiar da proficiência em jhāna para repousar, quando sozinhos, no relaxamento e na felicidade (diṭṭhadhamma-sukhavihāra). Se originalmente eles acederam aos oito níveis de jhāna, ao atingir a realização como um não-retornante ou um arahant, podem atingir ‘a cessação das percepções e sensações’ (saññāvedayita-nirodha).

Algumas realizações espirituais podem suspender por um longo período as impurezas e o sofrimento, mas não ainda irrevogavelmente. [375] As impurezas e o sofrimento podem retornar, e portanto esses elevados estados mentais são temporários; eles são meios de suprimir outras condições ou para engajar a mente em alguma outra coisa. A realização do Nibbāna, no entanto, põe um fim absoluto ao sofrimento e às impurezas mentais. E através dessa realização, apenas as condições danosas cessam, como por exemplo: cobiça, desejo sedento, raiva, tristeza, confusão, noções fixas sobre o eu, e a ignorância; todas as qualidades saudáveis permanecem. Além disso, os vícios são automaticamente substituídos pelas excepcionais qualidades de uma vida guiada por sabedoria e compaixão, a qual ultrapassa as felicidades ordinárias e não pode ser acessada de forma segura por outras conquistas espirituais. Portanto, embora uma pessoa que atingiu o Nibbāna possa não ter experienciado os mais refinados estados de jhāna, ele ou ela é ainda superior a alguém que teve essas experiências mas não é ainda completamente desperto.

A realização do Nibbāna traz uma transformação fundamental do coração, personalidade, processo de pensamento, visão de mundo e comportamento de uma pessoa,. Há dois aspectos principais para esta transformação mental. O primeiro envolve o conhecimento, a compreensão, as opiniões e crenças, que diga respeito à ignorância e sabedoria. O segundo diz respeito a um senso de valor da pessoa ou relacionamento com o desejo que pertence à ânsia e entusiasmo (chanda).

Uma estudante que acredita que seu professor vai criticá-la e puni-la pode tremer diante da idéia de encontrar o professor, ao passo que se ela sabe que o professor é gentil ela vai se sentir feliz e à vontade. Pessoas que veem os outros como inimigos e os que veem os outros como amigos irão se comportar de forma diferente. Uma pessoa que descobre um mapa que mostra a localização de um diamante escondido pode arriscar sua vida e até mesmo matar os outros por aquele diamante, enquanto outra pessoa pode não dar muita atenção. Pessoas desejando visões agradáveis​​, sabores, aromas, sons e objetos tangíveis agradáveis tendem a ser envolvidas por estas coisas. Se elas acreditam que podem realmente possuir esses objetos, então sua felicidade depende da aquisição dessas coisas. Em contraste, os seres completamente iluminados entendem o mundo como ele realmente é, não veem nada que possa ser verdadeiramente possuído ou controlado, e assim vão além da busca de sensações prazerosas e compreendem como agir em sintonia com a verdade. Eles não anseiam por impressões sensoriais. Como consequência, surge uma nova compreensão da própria relação com o mundo: os bens materiais, outras pessoas, natureza, e até mesmo a própria vida. Se é do mundo, mas não se está vinculado ou manchado por ele.

Esta libertação e transformação interna são difíceis de descrever e, portanto, as escrituras as explicam com símiles, por exemplo: recuperar-se de uma doença, ficar sóbrio, esfriar, ficar livre da sujeira, escapar de uma armadilha ou corrente e atravessar uma enchente para um abrigo seguro. [376] Todos esses símiles representam a alegria de aliviar um emaranhado original, inconveniência, confinamento e luta. A soltura dessas amarras para um estado de liberdade e segurança é Nibbāna. Uma pessoa iluminada pode se movimentar como quiser, sem se preocupar com sua autoproteção. Alguns desses símiles podem ser utilizados para outras conquistas espirituais; a diferença está no fato de que o jhāna, por exemplo, fornece apenas resultados temporários.

Pelo menos uma pequena percentagem de seres humanos buscarão o sentido último da vida, além de terem meramente nascido, procurarem o prazer dos sentidos e morrerem. Por vezes, dificuldades materiais ou a luta pela sobrevivência fará com que descuidem ou interrompam temporariamente a sua procura, mas quando as circunstâncias o permitirem e enquanto a dúvida persistir, as pessoas irão preocupar-se com essas questões. Portando qualquer credo ou filosofia que responda meramente ao conforto material e que não atenda às necessidades espirituais das pessoas, é incompleto e incapaz de oferecer satisfação adequada. Para usar a terminologia buddhista, responder ao ‘bem-estar mundano’ (diṭṭhadhammikattha) é por si só insuficiente; deve-se também atender ao ‘bem-estar espiritual’ (samparāyikattha) e ao “supremo bem-estar” (paramattha) [11]. Os ensinamentos sobre o Nibbāna e outras realizações espirituais cumprem este requisito. Algumas realizações psíquicas, no entanto, embora superem os fenômenos mundanos, são ainda classificadas como subordinadas (ou secundárias), ou seja, o indivíduo é incentivado a alcançar o estágio final de Nibbāna, a verdadeira e legítima perfeição.

 

[1] A. I. 158-9. Sandiṭṭhika significa o mesmo que diṭṭhadhammika, e.g. em KhA. 124; SnA. I. 71; ver também A.III. 40 e subcomentários do Anguttara, referidos no Mangalatthadīpanī (Sumanavaggo, Sīhasenāpatisuttādivannana).

[2] Ex: S. II. 18, 115 = S. III. 164 = S. IV. 141; A. IV. 351-3, 454-5.]

[3] D. III. 55-56; passagens relacionadas no Vin. I. 9-10; M. I. 172; M. II. 44. (Ver os capítulos no Buddhadhamma sobre cetovimutti/paññavimutti and satipatthana que pertencem à realização na vida presente. Ver também D. II. 314-5; M. I. 62-3.)

[4] [S. I. 33.]

[5] O ensinamento e a disciplina.

[6] Vin. II. 254-5

[7] S. I. 129; Thīg. versos 60-62.

[8] M. II. 197; cf. S. V. 18-19

[9] S. V. 410; a edição thailandesa traduzida verte a frase ‘uma libertação é a mesma que a outra’ como ‘ambos são liberados pela libertação, uma vez que a edição Thai Pali lê: yadida vimuttiya vimuttanti. As edições birmanesas e romanas lêem: yadida vimuttiya vimuttinti. A frase também ocorre em A. III. 34, que a edição thailandesa traduz de forma diferente. Os comentários SA. III. 292 e AA. III. 244 explicam ‘vimutti’ como arahatta-phala-vimutti. As escrituras de cerca do primeiro século a.C. em diante, por exemplo, o Milinda-paṇha (Miln.:Livro IV, Chaṭṭhavaggo, no. 3, Gihi-arahattapaṇho, dilema 62), afirmam que uma pessoa laica, ao realizar o estado de arahant deve tomar a ordenação superior (upasampada) naquele mesmo dia ou então atingir o parinibbāna. Sobre a questão sobre porque um laico iluminado deveria tomar a ordenação, ver Miln: Book IV, Chaṭṭhavaggo, no. 9, Gihipabbajitasammapaṭipattipaṇho (dilema 54).

[10] Esukārī Sutta: M. II. 180-84.

[11] Ver Apêndice 2

 

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2011 Edições Nalanda


Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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