Buddha e os primeiros discípulos
Buddha e os primeiros discípulos

~ Ricardo Sasaki (Dhanapala) ~

A visão da história que será aqui apresentada é importante principalmente para quem procura aprender sobre a história buddhista por meio de livros, uma vez que, em geral, os livros que existem no Brasil em termos de história buddhista são extremamente inadequados e repletos de equívocos. Essa é uma das grandes áreas deficientes no Buddhismo ocidental, e particularmente no Buddhismo brasileiro, em termos de literatura histórico-religiosa especializada.

A data aceita, atualmente, como a mais provável para a morte (ou mahāparinirvāṇa) do Buddha é em torno de 400 a.C. (diferente dos livros que ainda apontam para uma data de 483 ou 486 a.C.). Essa é uma data que foi revisada pelas últimas décadas de pesquisas históricas, portanto é uma data que ainda não apareceu nos livros. Neste momento ocorre uma grande pesquisa de investigação histórica e arqueológica, de forma que as datas antigas ainda existentes nos livros estão bem desatualizadas.

Portanto, a data da morte do Buddha teria acontecido por volta do ano 400, o que adiantou em quase 100 anos o período que se imaginava antigamente sobre esse importante evento. Antes de sua morte e após a sua Iluminação, o Buddha ensina por 45 anos e morre com mais ou menos 80 anos. E nesses 45 anos são muitos os ensinamentos apresentados. A perpetuação de todo esse conhecimento torna-se uma questão crucial. Nesse período da cultura indiana, bem como em muitas outras culturas antigas, a forma tradicional de registro do conhecimento se baseava na repetição, e isso era feito por meio da memorização dos ensinamentos através da transmissão oral, onde grupos de monges se especializavam em grupos de suttas, recitando-os de forma cadenciada.

Sutta (em pāli) ou sūtra (em sânscrito) são porções registradas de ensinamentos que podem ir desde meio parágrafo ou meia página até volumes inteiros; se supõe que um sutta é uma porção de ensinamento que se contém em si mesmo, ou seja, seria suficiente para evidenciar aquilo que expõe sem a necessidade de outras referências.

Esses grupos de monges se responsabilizavam por um conjunto da transmissão oral; repetiam aquele ensinamento e se reuniam regularmente depois que aquele trecho estivesse decorado. Ainda hoje na tradição buddhista Theravāda existe uma reunião quinzenal onde os monges se reúnem para recitar porções do ensinamento. São resquícios do que acontecia antes com todo o Cânone. Não só se especializaram em decorar aqueles ensinamentos, mas também em passá-los para as gerações seguintes.

Na Índia sempre existiram várias formas de assegurar a fidedignidade da transmissão, portanto não é uma só pessoa que se responsabiliza por ela. É todo um grupo, e existem regras de como devemos fazer uma recitação e como realizar uma contagem de versos que irá assegurar a autenticidade e constância do ensinamento que está sendo passado de geração para geração. E isso já começa a acontecer antes mesmo da morte de Buddha. Três meses depois de sua morte acontece o Primeiro Concílio, onde todos os monges principais se reúnem para realizar a recitação conjunta daquilo que viria a ser chamado de Cânone Buddhista, o conjunto de ensinamentos dados pelo Buddha. Desde a morte do Buddha no ano 400, essas gerações de monges têm perpetuado a recitação dos suttas. Lembremo-nos de que são grupos de monges recitando diferentes partes do ensinamento.

Atualmente, o Cânone antigo está dividido em três partes: Vinaya Pitaka [o conjunto de regras monásticas], Sutta Pitaka [o grupo principal de ensinamentos do Buddha] e Abhidhamma Pitaka [a sistemática daquilo que normalmente se chama de Psicologia Buddhista ou o estudo da consciência e dos fatores mentais presentes no homem, segundo o Buddhismo, além de seções dedicadas à análise da matéria e do incondicionado]. Não é tão importante decorar os nomes, mas sim compreender sobre os três conjuntos de ensinamentos, cada um compilado em vários volumes. Os vários grupos de recitação se especializavam em alguns desses conjuntos e os transmitiam às futuras gerações.

Aproximadamente 100 anos após a morte do Buddha começam a aparecer as primeiras diferenças de pontos de vista. Essas diferenças, no início, ocorreram principalmente em relação a regras de disciplina porque uma das coisas feitas pelo Buddha foi criar um grupo monástico, o que chamamos de Sangha [comunidade] monástica. Ele criou as regras de convivência entre os monges. Observem que, por exemplo, se fossemos viver juntos por um ano, teríamos que estabelecer certas regras. As refeições seriam em tal e qual hora, teríamos que fazer isso ou aquilo. São pequenas regrinhas que têm como objetivo tornar a convivência mútua a mais agradável e sem problemas possível. Esse conjunto de regras monásticas, estabelecidas pelo Buddha, ou seja, as regras de convivência para o grupo, é chamado de Vinaya.

O que acontece é que com a expansão do Buddhismo, depois de um século, esses grupos vão, cada vez mais, se espalhar por outras regiões. Eles vão perdendo também o contato uns com os outros e captando um pouco da cultura da região onde eles estão. Some-se a isso as próprias diferenças que vão se manifestando naturalmente durante todo um século. Depois de cem anos após a morte do Buddha, as diferenças de interpretação de algumas regras menores começam a acontecer.

Quando chegamos a 250 a.C. surge como regente principal do subcontinente indiano o Imperador Asoka, que tem um papel muito importante na história da Índia. Sendo um rei guerreiro, ele assume o trono e logo sai para a guerra contra os vizinhos, dando continuidade ao que seu pai e seu avô já vinham fazendo. E através dessa política expansionista e guerreira, ele consegue unificar, como Imperador, grande parte da Índia. Essa é a primeira unificação da Índia; as pessoas não sabem muito disso, mas a Índia nunca foi um país, até recentemente. A Índia sempre foi um conjunto de reinos e repúblicas e só por três vezes foi unificada de fato. A primeira vez foi com Asoka, a segunda no Império Muçulmano que entra e unifica os vários reinos por meio da guerra, e a terceira vez com o Império Britânico. Fora dos períodos de Asoka, do Império Muçulmano e do Império Britânico, a Índia sempre esteve dividida em vários protetorados, reinos e repúblicas, cada qual com sua estrutura hierárquica, sua cultura, sua língua e seus reis.

Então, com Asoka, a Índia se unifica pela primeira vez (com exceção dos estados do sul), mas uma coisa que ocorre na última guerra de Asoka é que ele, ao percorrer os campos de batalha e ver os milhares de corpos dilacerados e mortos, e um número ainda maior de pessoas feridas, ele sofre um choque profundo, digamos, um choque espiritual. Não se sabe muito bem o que acontece depois disso, mas a história buddhista relata que ele se converte ao Buddhismo ou ao Dharma. Dharma é a palavra sânscrita (em pāli é Dhamma). Dhamma é um conceito que já existe na época do Buddha, é pré-buddhista. No Hinduismo, dharma é a lei universal, é o modo como as coisas são. No Buddhismo, o termo também terá essa acepção.

Asoka, portanto, se converte ao Dharma, especificamente ao dharma buddhista e passa a ser um regente que vai comandar pela paz. Ele se arrepende completamente da violência e tenta aplicar os princípios da não-violência [ahimsā] e de ajuda ao outro, nas regiões dominadas. Asoka tem um grande papel realmente. Ele é fabuloso nesse processo de conversão. Faz uma série de coisas que nunca foram feitas antes. E uma das coisas que faz é passar a dar o suporte da realeza muito grande às comunidades espirituais. Tanto aos brāhmaṇas do Hinduísmo, como aos ascetas do Jainismo e particularmente às comunidades buddhistas. Então, em 250 a.C., a sangha monástica do Buddha realmente passa por um grande crescimento, por uma grande expansão, porque pela primeira vez existe não apenas um rei regional, mas um Imperador dando suporte financeiro e institucional aos mosteiros.

Começam a surgir uma série de mosteiros, muito mais monges começam a entrar na Ordem e uma coisa que todos aqueles que dirigem centros de algum tipo sabem é que, com toda a expansão, vem coisas boas e coisas más. Quando falamos: “Isto está crescendo”, não quer dizer que é uma coisa boa porque toda expansão leva a problemas, a dificuldades. Com mais gente numa certa instituição, começam a haver mais diferenças, mais problemas potenciais. Quando temos um mosteiro que cresce muito ou vários mosteiros que crescem porque têm dinheiro em abundância ou porque o Imperador quer ajudar, também começam a entrar pessoas que desejam ter uma vida fácil; não vão para ter uma vida ascética e árdua de meditação e estudo. De forma que chega um momento que o próprio Asoka convoca um Concílio para expulsar esses monges que estavam propondo diferentes ideias e comportamentos dentro do monasticismo. E esse é chamado de Terceiro Concílio.

Nessa época, quando Asoka ascende ao trono, já existiam duas ou três diferentes escolas, grandes ramificações, cujo aparecimento é complexo e variavelmente atribuído a diferentes ocasiões, entre elas, um Segundo Concílio, ocorrido algumas décadas após a morte do Buddha. As grandes ramificações da época de Asoka eram os Sthaviravādas, que era considerado o ramo principal, os Mahāsaṇghikas e os Pudgalavādas. Essas eram as três grandes escolas da época. Acredita-se que nesse Concílio de Asoka, os Pudgalavādas foram considerados possuidores de doutrinas errôneas, mas nem por causa disso deixaram de existir.

Depois desse concílio, começam a surgir ainda mais escolas. Esse período começa a ser conhecido como o período das dezoito escolas, pois supostamente existiam dezoito tipos de diferentes linhagens. Outra coisa importante que acontecerá com Asoka é que, com a sua intenção em expandir o dharma, ele começa a criar grupos de missionários com a intenção de realmente espalhar o dharma para várias regiões extremas da Índia. Grupos missionários vão para o sul, para o norte, para o leste e para o oeste. E é interessante que mesmo na literatura grega temos indicações de que missionários do tempo de Asoka chegaram à Grécia. Há menções nos textos gregos antigos de filósofos andarilhos que se vestiam de laranja e eram carecas. Essas missões atingem, por exemplo, a Pérsia (no atual Irã), que foi muito influenciada pelo Buddhismo. Ainda hoje quando se visita os museus do Irã e do Iraque que não foram destruídos pelas guerras modernas, encontram-se estátuas buddhistas. Algumas mesquitas foram erigidas em cima de mosteiros buddhistas. Portanto, o Buddhismo atingiu o Afeganistão, Paquistão, até chegar ao Irã (antiga Pérsia) e alcançar o Egito e a Grécia.

Os missionários de Asoka que foram para o sul acabaram chegando a uma ilha chamada Sri Lanka, lá no extremo sul da Índia. E no Sri Lanka, o ramo Sthaviravāda – que foi o principal vencedor desse Terceiro Concílio – assume, em língua pāli, o nome equivalente ao seu original em sânscrito: Theravāda. Durante muito tempo o Theravāda permanece na Índia e na região do Sri Lanka, onde também passa por modificações e, depois de séculos, começa a se expandir para a Tailândia, Birmânia, Laos, Camboja, ou seja, todo o sudeste asiático.

Quando falamos hoje em dia que o Theravāda é a escola mais antiga é porque daquele grupo de dezoito escolas essa é a única que permanece viva. Todas as outras continuaram ainda durante algum tempo, mesmo séculos, mas depois se extinguiram. E a escola Theravāda é a única que se preservou nos países acima mencionados e existe até hoje. É a única escola do período antigo.

As pessoas geralmente escutam que o Buddhismo tem várias escolas. Esse é um assunto complexo: por volta do ano 100 a.C começa a surgir na Índia um movimento espiritual e cultural bastante equivalente ao período europeu da Renascença. A Renascença foi um período pós Idade Média e que possuía um modo particular de ser; um período extremamente criativo. Foi um período de florescimento das artes, da intelectualidade, um período de exploração da ciência. Mas isso não significa que tal período fosse melhor ou pior que o anterior. Temos muito preconceito para com a Idade Média, por causa de alguns livros que lemos que a consideraram um período negro. Embora esse pré-conceito já tenha sido um tanto superado no mundo acadêmico atual, essa ideia ainda persiste na mente de muitos, mas isso não é bem assim. A Idade Média foi um período bastante forte, poderoso, mas de uma cultura muito religiosa, e justamente por isso, numa certa época da modernidade secular e agnóstica, foi considerado ‘negro’. O que acontece no período da Renascença é que ocorre um reflorescimento inspirado pela cultura grega onde se começa a repensar a arte, a cultura, a música, a arquitetura.

Na Índia, aproximadamente na época de Cristo, começa a haver um momento – não só no Buddhismo, mas como um todo – equivalente ou similar à Renascença, de grande reflorescimento das artes, arquitetura, etc. E isso atinge também o Buddhismo. Esse movimento começa a renovar o Buddhismo em termos de reescrever os seus conceitos numa linguagem diferente. Dentro de nosso símile, uma reescrita do medievalismo com sabor renascentista. E então o que acontece? Uma das coisas que começa a surgir um tanto misteriosamente, por volta do ano 100 a.C, é que uma nova literatura começa a aparecer no cenário do Buddhismo, com alguma tradição oral e também com tradição fortemente escrita. Começam a surgir textos que vão ser chamados também de sūtras e a forma deles é semelhante aos sūtras antigos. Esses textos parecem registrar o que ocorreu na época do Buddha, e o Buddha também, como nos sūtras antigos, aparece como personagem, mas agora o conteúdo e a impressão geral desses novos sūtras é bem diferente quando comparados de perto aos sūtras antigos.

Mas nosso objetivo aqui é falar sobre história, não sobre doutrina. Não nos interessa no momento analisar o conteúdo dessa nova literatura. O fato é que existe uma nova literatura que surge nesse período. E é uma literatura que vai tentar se legitimar de várias formas. Uma das formas foi afirmar que tais sūtras foram preservados escondidos, e que só 300 ou 400 anos depois seus guardiões misteriosos resolveram se manifestar e colocá-los à luz numa linguagem mais atual. Várias outras explicações foram dadas no decorrer da história para justificar como apareceu uma literatura nova, desejando se inserir ela mesma como também parte do cânone.

Na época alguns buddhistas da sangha monástica tomaram esses sūtras e teriam dito: “Realmente isto aqui é compatível com os ensinamentos do Buddha. Apesar de parecer meio novo e ter uma linguagem diferente, isto é compatível”. E, então, esses monges assumiram tais ensinamentos e as práticas que essa nova literatura propunha. Mas existiram monges em várias comunidades que teriam dito: “Não, isto aqui é uma coisa nova e não faz parte das recitações, da tradição oral que recebemos e não vamos aceitar esta nova literatura como sendo canônica. Ela é um comentário, pode ser correto ou pode ser errôneo, mas é apenas um comentário. Nós não aceitamos que isso possa entrar no cânone e que seja aceito na tradição como sendo palavra do Buddha”. E, então, o que ocorre? O que ocorre é que num mesmo mosteiro alguns monges vão adotar essa nova literatura e outros não, mas as regras monásticas de convivência continuam as mesmas e as práticas básicas continuam as mesmas. Só que certo grupo dentro de um mesmo mosteiro começa a estudar também outro tipo de literatura e fazer algumas práticas especializadas.

Essa nova literatura e esse novo movimento que comparamos à Renascença, será conhecido mais tarde sob o nome de Mahāyāna. Durante alguns séculos continuará existindo a prática e a vivência conjunta dos monges que seguiam o cânone antigo e os novos ensinamentos. Mas as escolas buddhistas que surgiriam no futuro aparecerão dentro do ambiente Mahāyāna. Elas não surgem como divisões, não há brigas entre os grupos. Os monges continuam convivendo no mesmo local, mas alguns possuem certas práticas especiais; é o mesmo Vinaya, a mesma regra monástica, as mesmas práticas, as mesmas doutrinas básicas. Com o tempo, décadas e séculos, finalmente começam a existir mosteiros que assumem como um todo o cânone antigo e outros mosteiros que assumes de vez a nova perspectiva mahāyāna.

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Adendo a esta seção:

Devido aos limites de espaço para aqui apresentarmos em mais detalhes o desenvolvimento da história buddhista, gostaríamos de terminar este pequeno artigo introdutório com um resumo básico das principais escolas buddhistas atualmente reconhecidas como derivadas do movimento tradicional do Buddha. São elas:

– A escola Theravada, em suas diversas ramificações regionais, e composta de várias linhagens.
– Os ramos Mahāyāna, cujas escolas principais são:
– As escolas Dhyāna (meditativas): Ch’an chinês (original), Zen japonês, Thien vietnamita, Son coreano;
– As escolas Terra Pura da China e Japão (Jodo e Jodo Shin no Japão);
– A escola Tien T’ai;
– As linhagens Vajrayana (Buddhismo Tibetano e Shingon);
– A escola do Lótus

Autor: Upāsaka Dhanapāla (Ricardo Sasaki)
Organização de Tam Huyen Van (Cláudio Miklos),
baseada nos apontamentos da conferência
oferecida pelo prof. Ricardo Sasaki em Florianópolis, abril de 2009.

.: Em abril de 2009, Petrúcio Chalegre (rev. Genshô), Cláudio Miklos (rev. Komyô) e Ricardo Sasaki (Dhanapāla) dirigiram um workshop de estudos buddhistas a convite do Centro de Yoga Montanha Encantada, no litoral de Santa Catarina. Este artigo é a transcrição de uma das dezenas palestras que foram dadas durante aqueles dias.