Esta é a primeira parte do excelente artigo de Santikaro, “O Jardim da Libertação”, onde conta algumas de suas vivências no mosteiro de Tan Ajahn Buddhadasa, durante os dezenove anos em que lá viveu como monge. Vida contemplativa, contato íntimo com a natureza e paz espiritual, num relato direto da vida em um mosteiro na Tailândia.

O JARDIM DA LIBERTAÇÃO – Parte 1

~ Ajahn Santikaro ~

Este artigo foi escrito em 1988 para o jornal católico Monastic Studies. Desde então, Ajahn Buddhadasa morreu e outros têm dirigido o monastério que ele fundou em 1932. Há algumas direções novas e, de alguma forma, o estilo é diferente, embora ele ainda seja um bom lugar para onde muitos vêm para aprender e praticar o Dhamma. Mais próximo ao que está em voga no buddhismo tailandês em comparação ao passado e com menos atenção ao legado reformista de Ajahn Buddhadasa, os ideais descritos abaixo, no entanto, ainda são válidos e continuam a motivar aqueles que buscam a libertação por meio do desapego ao “eu” e “meu”.

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Estou escrevendo de Suan Mokkh, um wat na floresta localizado próximo à saliência da parte mais alta da península malaia, que é o coração do sul da Tailândia.(1) O Golfo da Tailândia não está muito longe. Dos penhascos de arenito vermelho de Nang E Hill atrás do wat, pode-se avistar o oceano e suas ilhas, que tanto atraem turistas, para além do pântano, campos de arroz e bosques de coqueiros. Quando o vento sopra nesta direção, a brisa do oceano nos refresca; algumas vezes, ele traz pesadas nuvens de chuva sobre nós. A Asia Highway passa em nossa porta, em direção norte para Bangkok e sul para Cingapura. As casas se espalham ao longo dela formando uma vila sem planejamento que cresceu mais depois do wat. Ao redor há pequenos seringais, a atividade econômica dominante nesta área. Suan Mokkh foi trazido para cá mais ou menos em 1940, depois que sua primeira localização tornou-se grande demais. Dois quilômetros após atravessar a rodovia, separados por dois montes de pedra calcaria, 40 acres de bosques de coqueiros estão sendo transformados em um centro internacional de retiros. O terreno principal, menos a terra dada para uma escola e um acampamento de escoteiros, cobre 120 acres.

Um wat é a residência dos bhikkhus, que são homens que deixaram suas casas para se dedicar à vida religiosa de acordo com os ensinamentos e treinamento do Senhor Buddha.(2) Nosso wat, no centro do Golden Buddha Hill é oficialmente conhecido como “Wat Tarn Nam Lai” em homenagem ao “córrego que flui”, que desce da Nang E Hill e já estava aqui quando Suan Mokkh chegou. O espaço físico também é chamado de Suan Mokkh e é assim que a maioria das pessoas o conhece.

Apropriadamente, ele se refere mais ao local ou estado mental que realizou a meta espiritual. O nome completo é Suan Mokkhabalarama, que significa “Jardim do Poder da Libertação”, que indica o cerne da investigação e prática espiritual: libertação da ignorância, egoísmo e miséria. Em 1932, Buddhadasa Bhikkhu fundou Suan Mokkh em um terreno mais ou menos a oito quilômetros daqui, com a ajuda de seu irmão mais novo e alguns de seus amigos.(3) Ele continuou como líder da comunidade até os 85 anos de idade. Embora muito da importância e singularidade de Suan Mokkh tenha a ver com os talentos, inspiração e controvérsia de seu fundador, este artigo focará mais a comunidade e o próprio local. Minha percepção do Buddhismo e de Suan Mokkh está longe de ser completa. Estou apenas começando a sondar as coisas que tento descrever aqui. Moro aqui há apenas três anos e meio e não tenho experiência de seus anos anteriores. Além disso, sou um farang (estrangeiro de descendência europeia. N.T. Atualmente, como resultado do fluxo de visitantes de várias partes do mundo, os tailandeses chamam de qualquer estrangeiro.*). Apesar de eu ter chegado aqui depois de quatro anos servindo no Peace Corps (Corpo de Paz) americano, o que me ajudou muito a compreender a língua e a cultura tailandesa bem como me adaptar ao clima subtropical e à comida apimentada, um farang nunca se integra completamente aos contextos tailandeses. Minhas perspectivas e avaliações provavelmente são diferentes das dos meus colegas tailandeses no Dhamma, especialmente das gerações passadas.

O MONASTÉRIO E A NATUREZA

O Buddha ensinou o Dhamma e não sobre deuses ou um Deus. Ele não descreveu nada de supremo, de verdade absoluta, a natureza fundamental de tudo ou o quê quer que chamemos isso em termos pessoal e antropomórfico. Dhamma é uma antiga palavra indiana ainda de grande importância e vitalidade. Seus significados são muitos e valiosos. Para começar, Suan Mokkh enfatiza quatro significados primários:

1. Natureza (toda a realidade e todas as coisas);

2. Lei natural (a lei de condicionalidade, tudo acontece dependendo de causas e condições);

3. Responsabilidade de acordo com a lei natural (a responsabilidade dos seres humanos a cada passo, estágio e momento de vida);

4. Frutos advindos dessa responsabilidade (com prática de acordo com a lei natural).

Se desejarmos, podemos dizer também que o Dhamma é o “Deus buddhista”, um deus impessoal, sem corpo nem mente, é a Verdade, é a Lei. O Buddha simplesmente descobre o Dhamma, nada pode ser criado ou afetá-lo. Por meio de um entendimento completo do Dhamma, o Buddha atingiu a realização, que é o potencial mais alto da humanidade, o fruto do dever perfeitamente cumprido, isto é, sem egoísmo, o fim de toda miséria e sofrimento. Ele honrou e adorou apenas esse Dhamma. Aqueles que seguem o caminho do Buddha devem fazer o melhor que podem para penetrar no coração do Dhamma por meio de sua própria experiência. Uma boa maneira de começar está em se viver próximo à natureza.

Rigorosamente falando, tudo é natural e parte da natureza. De alguma forma, porém, o aspecto natural do asfalto, concreto, poliéster e ar condicionado não despertam o coração da mesma forma que as árvores, cupins, nuvens de chuva e lama conseguem. Se podemos, tentamos viver em um ambiente que nos leve para perto de coisas naturais, onde o homem não pode dominar deixando a marca de seus desígnios e desejos, onde forças naturais trabalham sem empecilhos, onde leis naturais se revelam naturalmente ao observador quieto e paciente.

Suan Mokkh é o primeiro wat na floresta no moderno sul da Tailândia. Em todos os lugares há árvores e videiras que não foram plantadas; bonitas, frescas, surpreendentes. Elas estavam aqui primeiro, então o wat com suas estruturas se amoldou no meio delas e ao seu redor. É um privilégio viver entre árvores, pedras, riachos, ratos, langures e gibões, pássaros cantando sem serem vistos e de repente passam em um movimento rápido e colorido, cobras inofensivas e venenosas, inúmeros insetos (um gafanhoto de oito centímetros estatela na máquina de escrever e pula para longe). No passado, quando tigres e leopardos estavam famintos, eles costumavam aparecer para comer um cachorro. O privilégio torna-se comovente quando leio como as florestas do mundo estão morrendo por causa de veneno, saque e guerra, ou me lembro do som dos motosserras logo depois da cerca do wat no primeiro ano que cheguei aqui.

Estou digitando em uma cabana atrás do wat, uma das quase 40, separados por 20 a 30 metros de distância. Digito principalmente à noite, à luz de um lampião de querosene. Vestígios da chuva vespertina pingam das folhas das árvores, várias cigarras cantam com seus sons estridentes, cupins migram (eles imitam os trabalhadores das grandes cidades que viajam de casa para o trabalho ou vice-versa?), a lua um pouco opaca aparece. Levantando os olhos do teclado h á escuridão, o contorno das árvores, sombras, a casa das pessoas. Regularmente, desço desta varanda (a cabana está 1,30 metros acima do chão) para cuidar do fogo e preparar um chá ou andar de pés descalços no solo arenoso vermelho espalhado ao redor da cabana, prestando atenção à minha respiração como uma forma de meditação andando. Outras vezes, quando está claro, ando ao redor, paro, inclino para observar brotos de videira, samambaias, cogumelos, musgos, camaleões, atoleiros e a geopolítica de vários tipos de formigas. Eventos, transformações, padrões, ciclos manifestam gentilmente ao coração que procura estar em paz com a natureza. Na sociedade humana vivemos em um mundo complexo de línguas, ideias, crenças e cultura, mas esse mundo mais simples, sem egoísmo, é para ser vivido também. Aqui há fontes constantes para reflexão e contemplação sobre a vida, seu significado e propósito, os jeitos de viver, paz. Eu valho esta árvore de 23 metros? Ouvirei seu Dhamma? O que esse casal de tordos ensina de seu ninho construído na varanda? Quem é o antepassado da lagarta aquecendo-se regiamente no sol?

Para viver em paz com outras pessoas, devemos aprender a morar no silêncio natural. Porque apenas por meio da compreensão do silêncio podemos viver nos complexos mundos da linguagem dos relacionamentos humanos sem nos perdermos, continuando a ser sãos, inteiros, saudáveis e generosos.

Com as árvores conseguimos estabelecer um diálogo muito mais livre, no qual tudo é aberto, sem jogos de faz de conta, e cada expressão do Dhamma, inclusive nós, pode ser o que deve ser e fazer naquele momento. As árvores nos ensinam a olhar um para o outro sem medo, desejo, inveja, conflito.

Os bosques e essas cabaninhas são lugares ideais para meditação. No tempo do Buddha, os bhikkhus eram andarilhos que sossegavam por apenas três meses na estação das chuvas. Geralmente, eles ficavam no interior e nos bosques mais afastados das vilas e cidades. Ser andarilho é mais difícil agora; a “civilização” toma todo o espaço, por isso nos juntamos em comunidades monásticas. Ainda assim, sempre devemos olhar para dentro dos nossos corações e aprender o Dhamma lá, a verdade de nossas vidas e responsabilidades. Em Suan Mokkh adotamos um sistema de meditação que o Senhor Buddha ensinou e praticou tanto antes quanto depois de sua iluminação. Ele é chamado Vigilância com a Respiração (anapanasati).(5) A respiração é natural, calmante e vital, com muitas lições para revelar os segredos da vida. Não há necessidade de palavras e teorias, apenas aprenda da própria vida dentro de nós mesmos.

Qualquer monastério grande deve ter certo número de construções comuns, especialmente os centros que, como Suan Mokkh, são dedicados ao ensinamento de um grande número de visitantes leigos e religiosos. Essas construções têm sido feitas de acordo com a necessidade, de uma forma o mais funcional e econômica possível. Embora algumas sejam um pouco excêntricas, elas se encaixam na floresta, cada uma dando espaço à outra, mas na medida do possível, não se constrói nenhuma estrutura, aproveitando os presentes da natureza. O melhor exemplo disso é nosso “templo” (uposatha), uma área consagrada necessária em qualquer wat habitado. Em Bangkok, os templos são construções ricas, vistosas, reluzentes. Em Suan Mokkh, ele é um morro com pedras espalhadas, com árvores para pilares e tendo o céu como teto. Uma camada de areia foi colocada recentemente, assim como a solitária imagem de Buddha, feita para o 50º aniversário. Ela é banhada pela chuva, refrescada pelo vento e decorada por folhas que caem sem parar. Lagartas vêm e vão livremente.

A sala de leitura principal de Suan Mokkh é uma ladeira que vai do portão até a base do Golden Buddha Hill, com o templo no topo. Houve retirada, coleta e empilhamento de pedras para criar um terraço, rodeado por um longo assento curvado para os monges e que funciona como um “palco”. À medida que o auditório se espalha ladeira abaixo, pedregulhos, bancos e areia pura proporcionam espaço para que milhares possam se sentar, embora audiências geralmente variem de algumas dúzias a algumas centenas de pessoas. As árvores proporcionam sombra, fundo harmônico, chuvas de folhas, postes para luzes e fios elétricos e parquinho de diversões para pássaros, macacos, esquilos e cigarras que, muitas vezes, competem com o sistema sonoro. Por todo o wat espalham-se clareiras, círculos de pedregulhos agrupados e esconderijos onde podemos conversar, ler, descansar, meditar e tentar entender a lei da natureza e nossa responsabilidade dentro dela.

O PROFESSOR E O DHAMMA

Os visitantes geralmente encontram Ajahn Buddhadasa sentado em um banco em frente à sua residência, cercado por plantas, em vasos e silvestres, e laguinhos com lótus. Os hóspedes são convidados para se sentarem em outro banco e, se desejarem, a se engajar em uma discussão do Dhamma. Galinhas, gatos e cachorros vagam ao redor, sem serem mais donos do lugar que qualquer outra pessoa. Ajahn Buddhadasa tem consciência do contraste com aqueles wats e residências religiosas que enfatizam mais a cerimônia, o esplendor material e o conforto físico do que a simplicidade, a pobreza e a mensagem dos grandes professores em todas as tradições. Algumas vezes ele goza dos especialistas do governo, das Nações Unidas e das chamadas organizações de caridade que se encontram em hotéis chiques e salas com ar condicionado para discutir os problemas dos pobres. Somente as chuvas fortes fazem com que suas discussões aconteçam sob um teto, mas nem assim o fazem ficar entre quatro paredes.

A apreciação pela natureza é uma das formas de Suan Mokkh homenagear todos os Buddhas (Aqueles que Sabem, os Despertos). O homem que ficou conhecido como “Senhor Buddha” nasceu ao ar livre, em um bosque, no chão. Todos os acontecimentos mais importantes de sua vida aconteceram em circunstâncias similares: o Grande Despertar sob a Árvore Bodhi, o primeiro sermão no Parque das Gazelas em Isipatana e seu parinibbana(6) quando da desagregação de seu corpo. Muitas horas de meditação, incontáveis milhas andando pelo interior da Índia e 45 anos de incansável ensinamento em sua maioria aconteceram ao ar livre, sob as árvores, na terra (talvez com uma pilha de folhas ou grama coberta por um simples pano para se sentar). O Buddha não foi o único nessa proximidade com a natureza. Cristo, Mohammed, Lao Tzu e a maioria “Daqueles que Sabem” gastaram a maioria do tempo no “deserto” ou em “lugares selvagens”. E o que dizer dos seus discípulos vivendo neste mundo dos derivados de petróleo, aço e bolachas de silicone? O conselho do Buddha é o mesmo: “Bhikkhus, essas raízes de árvores, esses lugares quietos, vocês devem praticar diligentemente. Não sejam descuidados, não vivam como alguém que venha a ter arrependimentos mais tarde.”(7)

TEMOS DE AJUDAR A NÓS MESMOS

Buddhadasa Bhikkhu tinha seis estações das chuvas quando voltou de Bangkok para fundar Suan Mokkh.(8) Até então, ele tinha sido aprovado e subsequentemente aprendido os estudos básicos recomendados, e tinha começado os estudos formais de pāli para status e progresso na hierarquia eclesiástica. Embora estivesse insatisfeito com a atmosfera mundana e as pompas desses estudos por seu conservadorismo e falta de liberdade de pensamento, ele acabou ganhando um entendimento sólido do ensinamento de Buddha que foi suficiente para continuar de forma independente. A decadência, o movimento, a sujeira e o barulho de Bangkok, mesmo há 60 anos, o desgastou, fazendo com que ele procurasse um lugar apropriado para colocar os ensinamentos em prática. Ele mudou-se para um wat abandonado em um bosque perto da cidade onde nasceu e começou sua exploração de forma séria.

Quando bhikkhus mais jovens e noviços ouviram falar de Suan Mokkh e vieram para ficar, ele exigiu que eles também tivessem conhecimento advindo dos estudos, comprometimento e maturidade para serem independentes. Treinamento básico podia ser encontrado em qualquer lugar; Suan Mokkh propunha uma prática mais profunda.

A análise buddhista do dilema humano é o de que nós nos fazemos sofrer e provocamos sofrimento nos outros por causa de nossa ignorância. A mente naturalmente pura é enganada e seduzida pela experiência sensual. As coisas são tomadas como permanentes, satisfatórias, bonitas, que podem ser possuídas e, mais profundamente, consideradas como self.(9) Observando nossas vidas e o mundo dessa forma, pervertemos as experiências básicas de ver, ouvir, cheirar, degustar, tocar e conhecer (incluindo todos os processos mentais como pensar, sentir, lembrar), juntamente com os sentimentos (agradável, desagradável e nem agradável nem desagradável), que são consequência dessas experiências, transformando-os em desejo, cobiça, ódio, ilusão, preocupação, medo e todas as formas de egoísmo. Essa forma iludida de pensar e agir é miséria, totalmente enraizada em nossa cegueira e incompreensão. A solução, por fim, está em remover essa ignorância, e se ela está dentro de nossos corações-mentes, como outra pessoa poderia retirá-la por nós? É infantilidade depender do externo para ajudar; devemos curar a nós mesmos.

Considerando isso, Buddhadasa Bhikkhu partiu em busca de sua própria cura e nunca se iludiu de que poderia curar os outros. Ele queria simplesmente estudar, praticar e penetrar no coração do Dhamma do Buddha e nunca teve intenções de se tornar um professor. Aqueles que compartilhavam a mesma meta eram bem-vindos para usar este jardim para seus estudos e experiências espirituais, mas apenas como amigos e iguais. Embora ele tenha acabado se tornando um irmão mais velho por causa de seu conhecimento e sua experiência, ele não dominava os outros ou lhes dizia o que fazer. Isso podia ser usado como desculpa para se esquivarem da própria responsabilidade e tornarem-se dependentes. Mesmo quando o papel de professor tornou-se necessário, como consequência do crescimento e reconhecimento de Suan Mokkh, ele sempre exigiu que as pessoas pensassem e investigassem por elas mesmas ao invés de simplesmente memorizar e acreditar nos ensinamentos. Quando e onde podia, ele estava sempre pronto e aberto para orientar como um amigo, mas sem ilusões de fazer mais que isso. O próprio Buddha disse: “Lutar é de sua responsabilidade; os Tathāgatas (Despertos) apenas indicam o caminho.”(10)

Enfatizo esse ponto porque muitos monastérios exigem obediência rigorosa, sejam buddhistas ou não. Enquanto a obediência ajuda a evitar o egoísmo e o orgulho, e enquanto a obediência para com assuntos mundanos faz com que sejam simples e efetivamente cumpridos, não há autoridade para se obedecer nos assuntos espirituais além do próprio Dhamma. A pessoa deve ouvir à Verdade em si mesma e obedecê-la de boa vontade. Em Suan Mokkh a pessoa sente que deve começar imediatamente a fazer isso. Se isso lhe for traduzido por outra pessoa hoje, quando é que irá aprender a ouvir e viver diretamente?

Ao invés de uma pessoa tentar transformar a outra deve-se permitir ao Dhamma-Natureza-Lei que aja, molde e transforme. Aqui, mesmo o egoísta e o imaturo encontram espaço para crescer em direção ao altruísmo. Os mais instruídos e experientes devem ser capazes de observar e encorajar com bondade, compaixão e equanimidade. Se coloca-se importância demasiada para se ajustar a alguma forma externa, o coração nunca se ajustará ao Dhamma. Mais uma vez, isso está alinhado com o exemplo de Buddha. Ao invés de se colocar como professor ou mensageiro divino ou deus, ele se colocava simplesmente como um kalyana-mitta (amigo bom, nobre).

Isso não significa que não se deva fazer nada para ajudar o outro. O Caminho do Meio evita o extremo da indiferença, descuido e insensibilidade, da mesma forma que o faz com relação à autoridade e dominação. Os dois extremos são formas de irresponsabilidade ou responsabilidade tendo impulsos egoístas em primeiro lugar. A verdadeira responsabilidade encontra-se no meio, no Dhamma. Assim, antes de qualquer coisa o guia espiritual é alguém que já trilhou o caminho do Dhamma o suficiente para indicar esse caminho para outros. O conhecimento e a experiência adquiridos da vivência espiritual direta podem ser expressos e explicados de várias formas para ajudar outros a descobrirem como eles também podem viver essa vida. E a presença de um ser verdadeiramente altruísta ou mesmo sem eu mostra aos iniciantes que isso pode ser feito; proporciona um exemplo tangível dos ensinamentos para aqueles que ainda não o encontraram profundamente neles mesmos. Até agora, Suan Mokkh tem sido abençoado com um amigo espiritual que ensina de forma intensa e desafiante corroborada por um exemplo impecável.

Não se impõe independência às pessoas, uma vez que poucas estão preparadas para isso. Espera-se que qualquer pessoa que venha para uma estada mais longa já tenha completado os estudos básicos. Aqui, ela tem muitas oportunidades de experimentar, estudar e ocupar a mente em desenvolvimento de formas úteis. Dependendo das habilidades, propensões e necessidades pessoais a pessoa pode elaborar um programa diário de atividades, como recitação diária das escrituras, meditação, estudo das escrituras, tradução, ensinar visitantes e crianças na escola, ajudar nas cerimônias tradicionais, serviço comunitário, construção civil, pintura e escultura, transcrição de fitas cassetes, publicações, cuidado com hóspedes, palestras e aulas, discussões, trabalho físico, reparos mecânicos e elétricos. Não há expectativa com relação a um padrão. Todos são livres para oferecer seu conhecimento e habilidades em benefício do wat e praticar o Dhamma, podendo mudar, adaptar e experimentar de acordo com a necessidade. Em contrapartida, Ajahn Buddhadasa dá palestras com frequência e fica disponível para conselhos que mantenham todos conectados aos princípios fundamentais do Dhamma, aplicados por meio das várias atividades que a pessoa empreende se for vigilante e sábia o suficiente.

RECUPERANDO O BUDDHISMO PURO

Não é necessária uma leitura muito atenta dos discursos do Buddha (ou das palavras de Cristo registradas no Novo Testamento) para comprovar que hoje em dia a religião está muito diferente da época em que o Mestre viveu. Alguns podem dizer que a Religião não começa até a morte do Grande Professor e que a partir disso tudo consiste apenas de um movimento descendente. Ajahn Buddhadasa, no entanto, acredita que o espírito original pode ser redescoberto e recapturado. Para isso acontecer, recomenda que se recrie as condições originais onde for possível, e em outros lugares que se adapte nossa modernidade para recordar e refletir sobre como o Grande Professor vivia e ensinava. Assim, muitos aspectos de Suan Mokkh tentam recuperar o espírito e a sensação do “Buddhismo Puro”. (11) Exemplos importantes foram apresentados acima.

Estranhamente, geralmente veem-se como pouco ortodoxas e heréticas as tentativas de retornar ao jeito que as coisas eram feitas no passado. As pessoas têm a tendência de querer manter o status quo com o qual se sentem confortáveis, e não os ensinamentos originais, como base para comparação. Tornam-se tão acostumadas aos próprios hábitos, crenças, opiniões e tradições que nunca param para refletir. “Só existe o meu caminho?” “Isso foi sempre assim?” “Como o Buddha fazia as coisas?”

Assim, muitas pessoas ficaram chocadas com o fato de Suan Mokkh não ter tido, por muitos anos, imagens públicas de Buddha e consideraram isso como sinal de desrespeito. A intenção, porém, era de respeito profundo e compreensão. Originalmente, os buddhistas tinham sabedoria para entender que o Buddha verdadeiro jamais poderia ser retratado por um meio ou forma físicos. Na arte buddhista antiga, como nas stupas em Amaravati, Sanchi e Barhut, não há tentativas de representar o Buddha em um corpo humano. Ao invés disso, há Árvores Bodhi, Rodas do Dhamma e espaços vazios simbolizando a iluminação, o Dhammakaya de Buddha (Corpo-Verdade) e a vacuidade (sunyata, vazio de self e alma, eu e meu) percebida e exemplificada por meio da perfeita falta de um self. A partir da chegada dos imigrantes gregos à Índia, com seus talentos na arte de modelar e materialismo religioso, o Buddha foi transformado em uma imagem. Enquanto útil para incutir a fé nas crianças, essas imagens são fontes de muita confusão que pode não ser superada nunca. Por isso, desde o começo Suan Mokkh luta para incutir uma compreensão mais profunda do Estado de Buddha.

Suan Mokkh tenta curar a fragmentação artificial e nociva da vida buddhista em peças e práticas desencontradas. A prática espiritual é vida, um todo orgânico; dissecá-la significa desfigurá-la e até mesmo matá-la. Ainda assim, há muito tempo os monges distinguiram entre o campo de estudo de um estudioso e os monastérios urbanos, e o campo prático de meditadores e residentes da floresta, seja como andarilhos ou em pequenos monastérios. Essa distinção não existia no tempo de Buddha, embora discípulos diferentes mostrassem inclinações variadas com relação à solidão e a vida em comunidade, aprendizado e desenvolvimento mental. Mais tarde, com a institucionalização, crescimento dos monastérios e a formação de universidades, parece que os bhikkhus escolhiam um campo ou outro, ao invés de integrar estudo e prática de uma forma pessoalmente relevante. A tradição comentarial que tornou-se dominante séculos depois do Buddha e que hoje existe sob o nome de “Buddhismo Theravada”, sacralizou essa distinção. Um bhikkhu deve iniciar seus estudos em um monastério na cidade por um tempo e depois sair para meditar, ou fazer o oposto, ou nunca mudar. Mas misturar os dois aspectos de aprendizado na mesma pessoa ao mesmo tempo no mesmo lugar parece não ter acontecido muito, especialmente na Tailândia.

Quando Buddhadasa Bikkhu iniciou sua prática séria e solitária, logo descobriu que lhe faltava entendimento suficiente para praticar profundamente, por isso continuou seus estudos. Ele percebeu que estudo e prática devem guiar, dar apoio e corrigir um ao outro. As escrituras pāli estão cheias de informações práticas sobre todos os aspectos da meditação e da vida espiritual. O estudante bem informado e reflexivo pode encontrar nelas todos os conselhos que necessita. Enquanto isso, a prática diária faz com que ele seja capaz de distinguir entre o que é verdadeiramente relevante para suas necessidades e o que é impróprio, acadêmico e supersticioso. O que resta é uma abordagem simples, direta e unificada.

Suan Mokkh diminuiu o número, a extensão e a elaboração das cerimônias tradicionais. Não se consideram os rituais eficazes o suficiente, em termos de desenvolvimento espiritual, para garantir muito da energia e atenção do bhikkhu. Eles não são de todo abandonados, porém, quando contêm suficiente significado e sensibilidade para como os sentimentos daqueles que dependem deles. Há dúvidas que os bhikkhus no tempo de Buddha fizeram qualquer coisa mais do que simples observações nos dias de lua cheia e nova.(12)

Os tailandeses, como todas as culturas que adotam uma religião adicionaram por conta própria seus feriados sazonais, crenças folclóricas e costumes, alguns dos quais não têm nada a ver com o Buddha e sua mensagem, e outros nos quais o significado original foi esquecido. No primeiro caso, Suan Mokkh não aceita participar. Não se tolera superstições grosseiras, embora elas sempre tentem entrar sorrateiramente. No segundo caso, simplificam-se os aspectos cerimoniais e destacam-se o significado e o valor espirituais. Seguem-se os costumes tailandeses, claro, mas de forma que possam servir de sustentação ao entendimento do Dhamma ao invés de ser uma mera gratificação emocional. Essa abordagem não é apenas corajosa e ousada (em qualquer época e cultura(13)), ela requer muito trabalho árduo. Não é algo simples explicar o significado mais profundo dos feriados e das tradições para “crentes” mais focados em sentimentos afetuosos e diversão. Essas explicações devem ser repetidas ano após ano, não apenas para os moradores das vilas locais, mas também para professores, soldados, governadores, acadêmicos, monges e estudiosos estrangeiros.

Esses são apenas alguns exemplos superficiais das tentativas de Suan Mokkh para resgatar o Buddhismo Puro. O aspecto mais importante disso envolve a adoção de um “olhar novo” para os ensinamentos básicos e essenciais, especialmente aqueles negligenciados pelos tradicionalistas. Isso provocou a maior controvérsia.

(Continua na parte 2)

Notas

1- Publicado originalmente no Monastic Studies, número 18, Natal 1988, The Benedictine Priory of Montreal, Quebec. Primeira edição eletrônica com generosa permissão.

2- Em pāli, bhikkhu significa “pedinte” e foi um termo genérico para mendicantes na Índia no tempo de Buddha. Significa também “aquele que vê o terror e o perigo” da ordinária existência mundana com seu constante nascimento e morte do ego. Muitas vezes, é traduzido por “monge”, embora originalmente estivesse mais para frade andarilho do que para monge enclausurado. O feminino, “bhikkhuni”, não existe mais no sudoeste asiático, embora exista um movimento para restabelecer a linhagem.

3- Buddhadasa significa “Servo do Buddha”. Ele escolheu esse nome um pouco antes de começar Suan Mokkh e o prefere acima de títulos e honras que lhe deram mais tarde. Por respeito, normalmente o chamamos de “Ajahn Buddhadasa”. Ajahn, em tailandês, significa “professor, mestre”. Seu irmão, que escolheu o nome “Dhammadasa”, ainda conduz a Dhammadana Foundation (Fundação Dhammadana) que dá apoio a Suan Mokkh e lida com seus assuntos comerciais. Para mais informações sobre a vida e o trabalho de Ajahn Buddhadasa veja The Life and Work of Buddhadasa Bhikkhu, um vídeo documentário produzido pela Foundation for Children, Bangkok, 1987, bem como um número expressivo de traduções feitas por este e outros autores.

4- Dhamma é a ortografia em pāli; Dharma, em sânscrito. Sua definição e uso sofrem variações nas diferentes tradições, escolas e seitas.

5- Para detalhes veja, de Bhikkhu Buddhadasa, Mindfulness With Breathing: Unveiling the Secrets of Life, Bangkok, 1988. Uma nova edição foi publicada nos Estados Unidos pela Wisdom Publications, Boston, 1996.

6- É difícil traduzir essa palavra porque não se pode dizer nada sobre um ser iluminado quando o corpo morre. Suan Mokkh entende essa palavra como “frescor perfeito, profundo”.

7- Samyutta-nikaya, IV, 145 e muitas outras passagens nos Discursos.

8- Mede-se a antiguidade dos bhikkhus considerando-se a quantidade de retiros de “residências nas estações de chuva” (vassa), de três meses de duração, que eles tenham feito. Tradicionalmente, depois de cinco chuvas considera-se o bhikkhu experiente o suficiente para viver por sua conta longe do professor.

9- Pāli, atta; sânscrito, atman; latim, ego; self, alma. O Buddha ensinou que “sabbe dhamma anatta”, isto é, todas as coisas são vazias de self. Ele não fez distinção entre self verdadeiro ou falso ou entre self e alma eterna. Vida, experiência e fenômenos existem, mas não há lugar onde se possa encontrar qualquer coisa chamada de self, não há substância eterna ou permanente e essência independente que se possa considerar como “eu”, “meu” ou “eu mesmo”.

10- Dhammapada 276.

11- Por “Budismo Puro” queremos dizer o ensinamento e prática antes da desintegração em diferentes seitas e escolas, com suas polêmicas e dogmas.

12- Uposatha, uma prática indiana antiga, foi adaptada pelo Buddha em uma reunião de exortação com relação ao ensinamento e treinamento (patimokkha) e, mais tarde, para recitação da crescente disciplina de treinamento (vinaya-patimokkha).

13- Imagine tirar dos americanos os monstruosos eventos esportivos com sua cobertura televisa.


Traduzido por Amandina Morbeck
© 2005 Edições Nalanda


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Ajahn Santikaro nasceu em Chicago, EUA. Após formar-se em retórica na faculdade, viajou para a Thailândia como parte do Peace Corps trabalhando como professor de inglês. Lá, encontrou o Buddhismo e assumiu os votos de monge Theravada em 1985. Por muitos anos serviu como tradutor e líder de retiro do Wat Suan Mokkh para o famoso monge thailandês, Ajahn Buddhadasa, cuja obra inspirou toda uma geração de indivíduos socialmente engajados, tanto na Thailândia quanto ao redor do mundo. Foi, por anos, abade do Suan Atammayatarama, um anexo de Suan Mokkh dedicado ao treinamento de monges estrangeiros. Santikaro tem traduzido a obra de Buddhadasa para o inglês desde então. Ele é o fundador do Thinking Sangha, uma comunidade de pensadores buddhistas socialmente engajados, ligados com ensinamentos sobre a paz e a ética para o mundo contemporâneo. De volta aos EUA em 2001, fundou o Liberation Park, em Oak Park, Illinois, uma comunidade para o estudo e a prática do Dhamma, na trSantikaroilha dos ensinamentos de Ajahn Buddhadasa. Santikaro tem um interesse particular no diálogo Cristianismo-Buddhismo e conduziu retiros para religiosos católicos na Thailândia e Filipinas. Por muitos anos foi um amigo especial da World Community for Christian Meditation (WCCM). Participou das peregrinações Way of Peace lideradas pelo Padre Laurence Freeman e pelo Dalai Lama em Bodhgaya; Florença, Itália; e Belfast, Irlanda; e contribuiu com um artigo para o 25o. aniversário do Boletim da WCCM (“Meditando com as Irmãs Filipinas”.) Em outubro de 2000 ele foi um dos palestrantes da John Main Conference em Belfast.

Santikaro é um amigo de longa data da Comunidade Nalanda e de seu diretor, tendo estado no Brasil em 2003, 2006, 2008, 2009, 2010 e 2014.

3 COMMENTS

  1. é uma viagem conhecer Suan e Ajhan Budhadassa pelas mãos de Santikaro…estou esperando pela parte 2.
    Vou ter algumas perguntas a mais p fazer a ele qdo estiver em Curutiba.

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