por Ayya Khema

Quando cantamos juntos, temos que ter ritmo e harmonia. Devemos prestar atenção ao tempo e às outras pessoas ou ficaremos fora de sintonia. O mesmo é verdade quando vivemos juntos. Temos que prestar atenção aos outros, sentir nossa sensação de estar juntos, e criar harmonia. As pessoas precisam disso como fundamento para viver com habilidade.A vida habilidosa geralmente se estraga porque nenhum de nós tem nem harmonia nem atenção ao nosso tempo apropriado. E o que criamos no mundo se torna uma imagem espelhada do que encontramos em nós mesmos. O verdadeiro primeiro passo em criar harmonia acontece dentro de nós mesmos. Isto não requer nenhuma situação especial, mas pode ser feito quer estejamos sentados na sala de meditação, remando um barco, cozinhando o almoço, lendo um livro, ou trabalhando no jardim. Criar um sentimento harmonioso em nós depende de estarmos contentes. De outra forma, haverá desarmonia.

Contentamento não deve ser dependente das condições externas, que nunca são perfeitas. Depois de meses de seca, todo mundo reclama do fato de não haver água para muitas plantas. Agora nós temos o contrário – está muito úmido e o solo está lamacento e escorregadio. Onde podemos encontrar perfeição no mundo? Se estamos procurando por condições externas para nos trazer contentamento, estamos procurando em vão. Temos que encontrar condições internas que conduzem ao contentamento. Uma delas é a independência – não independência financeira, que pode trazer outros perigos, mas independência emocional da aprovação dos outros. Isto exige o conhecimento de que estamos tentando fazer o melhor que podemos, e se alguém desaprova, este é o modo como as coisas são. Nem todo mundo aprovava o Buddha também, mas o Buddha disse: “Eu não discuto com o mundo. O mundo discute comigo.” Ele aceitou o fato de que as pessoas podiam fazer objeção a ele ou à sua doutrina. Ele entendeu totalmente que nem todo mundo pode concordar. Ser independente também inclui não buscar por apoio dos outros. Às vezes, o melhor que podemos fazer pode ser muito bom; às vezes é apenas medíocre. Isto também deve ser aceito. Nós não podemos esperar que todo mundo nos apoie. Se às vezes não podemos fazer tão bem quanto pensávamos que poderíamos, isto também está bem; e não há razão para descontentamento.

A independência emocional requer a existência de um coração amoroso. Se estamos buscando por amor, nós estamos emocionalmente dependentes e geralmente descontentes, porque não temos o que queremos, ou não temos o suficiente. Mesmo se temos o suficiente, nós ainda assim não podemos depender dele para preencher nossas necessidades. Buscar amor é um esforço totalmente insatisfatório e irrealizável. O que realmente funciona, entretanto, é amar os outros, o que traz independência emocional e contentamento. Amar os outros é possível quer o outro corresponda ou não. Amor não tem nada a ver com o outro; é uma qualidade dos nossos próprios corações.

O contentamento depende de se criar um campo de harmonia dentro dos nossos corações – um lindo campo aberto, cheio de flores, contendo amor, independência emocional, e auto-aceitação. Nós não buscamos por amor ou aprovação, mas os damos indistintamente. Isto é simples e funciona. Isto constitui um coração generoso. Normalmente, quando alguém necessita alguma coisa de nós, nosso ego se sente ameaçado, medroso e diminuído. Isto é muito evidente no nível material, quando temos medo de perder nossas posses. Podemos sentir a mesma ameaça quando alguém quer nosso amor. Se damos amor e aprovação, entretanto, não estamos nem ameaçando nem sendo ameaçados. Amar é o único modo de podermos viver em harmonia com nós mesmos.

Às vezes, não nos sentimos bem fisicamente. Isto também não é razão para descontentamento. “É natural adoecer,” o Buddha nos convida a lembrar. Não se fala em se tornar infeliz ou descontente por causa disso. É da natureza do corpo ter alguns problemas. Outras vezes, pode haver desejos na mente. Nós podemos permitir isso, mas não temos que nos envolver com esses desejos. Se sofremos com o dukkha que a mente e o corpo geram, nunca haverá qualquer contentamento. Onde podemos encontrar contentamento? Certamente não em edifícios, na natureza ou em outras pessoas. Há somente um único lugar: dentro de nossos corações. Nesta base reside o entendimento de que o oferecimento de amor e apoio cria um campo de harmonia em torno de nós, que é também nosso campo de treinamento.

É um campo de treinamento para a vida habilidosa porque nos confrontamos com os outros. Nós necessitamos da reflexão do nosso próprio ser nos outros para podermos nos ver claramente. Quando existe desarmonia com outra pessoa, esta é a imagem espelhada de nós mesmos. Não poderá haver desarmonia com os outros se nos sentimos harmoniosos interiormente. A imagem do espelho não mente. Um dos discursos do Buddha descreve três monges que viviam juntos como leite e água. Suas idéias e desejos se misturavam completamente. Havia total harmonia porque nenhum deles procurava seu próprio modo. Pelo menos isto nos dá uma idéia do que é possível; de outro modo, iremos continuar a acreditar que nossa negatividade é justificada.

“Harmonia” tem muitos significados diferentes. Principalmente, é o centro essencial de viver feliz. Às vezes ficamos apegados ao nosso próprio dukkha. Isto é muito comum. Mas, quando vemos a tolice disso, nós podemos parar. Felicidade é verdadeiramente o objetivo de todo ser vivo, não somente dos seres humanos. Nós tentamos meditar para nos tornarmos mais felizes, mas não podemos sentar em meditação por todo o dia. Às vezes, até sentimos que através da meditação surgem ressentimentos enterrados e dolorosos, que particularmente não queremos ver. Podemos sentir que através da meditação surge mais dukkha do que tínhamos antes, mas isto é somente porque nós finalmente o admitimos e o vemos claramente. Isto estimula a compaixão por todas as pessoas, por vermos que ser um humano significa sofrimento. Existem diferentes estágios no desenvolvimento espiritual, e no princípio nós somos como crianças. Quer estejamos no quinto, sexto ou sétimo graus, nós todos somos ainda crianças no processo de crescimento.

Algumas pessoas são capazes de lidar com seu dukkha melhor do que outras. Um modo pouco habilidoso de lidar com ele é tentar fugir dele. Quando corremos, dukkha tem o hábito de acompanhar. Dukkha não vive em um certo lugar ou em uma situação particular, ele vive em nossos próprios corações. Ele monta no mesmo avião, barco, ou carro conosco, e vai aonde formos. Tentar escapar dele fugindo é claramente impossível.

Outro modo inábil que todos temos tentado é culpar alguma outra pessoa, situação ou coisa. Isto significa que nós não aceitamos a responsabilidade por nossas próprias vidas. Um terceiro modo inábil de lidar com dukkha é se tornar deprimido ou infeliz . Esta é a nossa reação mais comum. Então, segue-se a resignação, até que alguma coisa agradável aconteça para nos libertar – um bolo de aniversário, um sorvete, ou um elogio – e nosso humor se levanta.

Estes meios de se lidar com dukkha nos mantém no balanço entre desejo e rejeição. O único meio realmente habilidoso de se lidar com dukkha é olhar para ele como uma experiência de aprendizado e se lembrar que o Buddha ensina dukkha como a primeira das quatro nobres verdades. Obviamente, ele conhece as dificuldades humanas.

A Segunda nobre verdade é a causa de dukkha, que é o desejo: querer alguma coisa que não temos ou querer se livrar de alguma coisa que temos. Não há outras causas de dukkha. Se vemos dukkha dentro e não nos tornamos envolvidos por ele, mas o aceitamos como uma realidade, como parte da vida, podemos também encontrar a causa para ele em nós mesmos. Então, podemos dizer: “Está certo, é assim que ele é.” Se podemos aceitar a primeira e a segunda Nobres Verdades, então podemos assumir que a terceira e a quarta devem ser verdadeiras também. A terceira Nobre Verdade é a realização da cessação de todo dukkha – nibbana, libertação total – e a Quarta é o Nobre Caminho Óctuplo, que leva à completa libertação. As primeiras duas verdades são fáceis de provar – nós podemos experimentá-las muitas vezes cada dia. Tudo que temos que fazer é prestar atenção.

Dukkha surge continuamente, e não cessará até que todo desejo tenha sido eliminado, quando nos tornamos um arahant, totalmente iluminado. Porque deveríamos nos surpreender quando dukkha surge? Seria mais lógico se surpreender quando dukkha não surgir. Se somos surpreendidos quando dukkha surge, isso significa que estamos ainda esperando encontrar total satisfação ou preenchimento no mundo.

Para ter harmonia interior, devemos aceitar dukkha como parte integral do ser humano. Se nós não gostamos e rejeitamos, nossa resistência a tornará pior, e fugir dela se tornará prioridade. Normalmente isto incluirá tentar mudar as pessoas, situações, nosso trabalho, ou qualquer outra coisa que venha à nossa mente. Nós nunca poderemos eliminar dukkha desta forma, mas somente através do abandono do desejo – este é o ensinamento do Buddha. Neste estágio de nossas vidas, podemos tomar estas palavras como orientações para a prática. Já começa a aparecer um vislumbre de esperança quando podemos verificar algumas das coisas que ele disse, e podemos aceitar o restante na confiança de tentar entendê-las.

Quando surge dukkha, podemos perceber que alguma coisa que queremos não está acontecendo. Nós podemos encontrar o desejo e largá-lo, pois não há outro meio de evitar dukkha. Quanto mais abandonamos o desejo, mais harmonia temos. O desejo atrapalha a harmonia. Imagine que estamos cantando juntos e uma pessoa quer ser escutada acima de todas as outras, ou outra quer cantar mais rápido. Toda a harmonia é interrompida.

O contentamento em nossos corações é enraizado na independência emocional, em dar amor e aprovação, ao invés de tentar receber. Nós precisamos entender que todo dukkha baseia-se no desejo, e que devemos portanto largar os desejos. Este é o caminho e o ensinamento. Nós freqüentemente esquecemos estas verdades básicas.Por que nos esquecemos tão facilmente? Nossa afirmação e identificação com o ego é básica, e reduz tudo mais a algo sem importância. Nossas mentes estão preocupadas com “eu” e “meu,” e desde que todo mundo pensa desta forma, o mundo é um lugar desarmônico. Nós podemos encontrar harmonia somente em nossos corações; ela não nos poderá ser dada por nenhuma outra pessoa. O Buddha nos mostrou o caminho através da meditação do amor irradiante (metta), da conduta amorosa, das absorções meditativas (jhana), e da meditação da visão penetrante (vipassana). Estes são todos meios para a libertação e não fins em si mesmos. Nosso objetivo é a compreensão da impermanência (anicca), insatisfatoriedade (dukkha), e não existência de um centro (anatta) – dentro da natureza de constantes mudanças, dentro das dificuldades inerentes à vida, e dentro dos jogos que o ego representa, perturbando a paz e a harmonia. Existem problemas somente quando eu os tenho. Se não há “eu,” como pode haver um problema?

Harmonia é a sensação de estar junto dos outros mas também junto de si mesmo. Tornar-se uma pessoa total traz harmonia. A palavra “(holy) sagrado” tem raízes na palavra “(whole) total, completo.” Nós não precisamos ser sagrados (holy), mas totais (whole) e completos em nós mesmos. Este é o mais difícil e o trabalho de maior valor que podemos executar. Quando soubermos que não há nada nos faltando, não há nada que precisemos encontrar em algum lugar no exterior, o contentamento e a paz começarão a preencher nossos corações.

© Edições Nalanda

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Ayya KhemaAyya Khema
Tornou-se monja buddhista em 1979, no Sri Lanka, e foi uma das mais influentes líderes buddhistas. Ela estabeleceu o Wat Buddha Dhamma, um mosteiro na tradição das florestas perto de Sydney, Australia, em 1978. No Sri Lanka, ela criou o International Buddhist Women’s Center para treinamento de monjas e na Alemanha estabeleceu o Buddha-Haus em 1989.

1 COMMENT

  1. Adorei.Belo texto,uma explicação deliciosa,eu sorri,refleti..parabéns por colocar toda a sua sabedoria assim,tão clara..

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