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O ganhador deste ano do Prêmio Sri Burapha, Phra Paisal Visalo, compartilha, em seu discurso de recebimento, a respeito de sua visão sobre o objetivo último de escrever.

O Prêmio Sri Burapha é considerado um louvor altamente prestigiado pelos escritores tailandeses. Mas devo confessar que nunca esperava dar um discurso de aceitação deste prêmio. Ainda que tenha escrito livros pelos últimos 30 anos, nunca chamei a mim mesmo de escritor. Eu sou, no máximo, somente um amador que não pode ser comparado com todos os mestres que ganharam este mesmo prêmio nas últimas duas décadas. Meus escritos não pertencem aos círculos literários ou jornalísticos que foram exemplificados por Sri Burapha, o qual nos deixou com tantos legados. Além do mais, um monge nunca ganhou esse prêmio anteriormente. No final das contas, receber o Prêmio Sri Burapha é algo totalmente além de minha imaginação.

O último vencedor do Prêmio Sri Buraph, Phra Paisal Visalo: ‘A escrita é uma forma de prática espiritual. De certa forma, escrever é afirmar a existência de si mesmo. Mas também poderia ser um modo de desenvolver-se  de ao mesmo tempo, desenvolver-se’.

Sri Burapha ou Kularb Saipradit, foi um dos maiores escritores e jornalistas da Tailândia. Ele era um verdadeiro “cavalheiro”, cheio de idealismo e um modelo de virtude. Assim, eu me sinto muito honrado de ser presenteado com um prêmio com seu nome.

Não há dúvidas de quão respeitado o prêmio Sri Burapha é entre os escritores tailandeses. Mas deve ser notado que embora o prêmio tenha trazido uma grande honra ao escritor, ao longo da sua vida ele nunca recebeu qualquer prêmio, quer no campo literário quer no jornalístico. E apesar da sua devoção ao país, foi preso duas vezes e considerado persona non grata aos olhos do sistema, o que o levou ao exílio até ao fim dos seus dias.

Sri Burapha permaneceu à frente da luta contra a ditadura e poder injusto. Nenhuma dificuldade poderia ter feito com que desistisse de levar adiante sua missão. Isso porque seu coração era seguro, forte e corajoso. Igualmente importante foi a sua capacidade de permanecer imperturbável pelos fascínios do mundo – seja riqueza, fama ou glória – e, assim, ele pode enfrentar a intimidação de quem estava no poder, não permitindo que fosse usado pelos capitalistas. Assim, ele pode viver como um homem verdadeiramente livre.

Tal força mental e dedicação não resultaram somente de sua crença no idealismo ou de qualquer ideologia política. Foi também um resultado da contínua prática da mente, em particular na contemplação meditativa, até que ele compreendeu o quanto é verdade que a felicidade e a liberdade estão no coração. Então, quando Sri Burapha foi para a cadeia, ele não estremeceu, pois sabia que sua mente permaneceu virtualmente livre e ninguém poderia ter tirado isso dele.

O idealismo de Sri Burapha não era apenas centrado em mudanças sociais rumo à democracia, igualdade e justiça. Ele valorizava a transformação interna – rumo à bondade e à liberdade. Assim, enquanto ele reivindicava uma sociedade justa e democrática, ele também cuidava de melhorar sua própria mente. E a qualidade de tal mente, que foi bem polida, era a base sólida para sua cruzada social.

Da esquerda: Saipradit Kularb com Buddhadasa Bhikkhu e um amigo.

Como escritor e jornalista, ele produziu inúmeras obras que clamavam por uma mudança política e econômica que trouxesse igualdade e justiça para o povo. Não há dúvida sobre quão poderosos foram esses escritos durante seu tempo. A Tailândia mudou muito sociopoliticamente e, portanto, ainda que tais obras possam parecer ultrapassadas hoje em dia, ainda há partes da sua vida e legados que são tão valiosos agora como sempre foram, especialmente sua defesa por uma consciência interna e moralidade que sustentem uma boa sociedade e, consequentemente, uma boa vida.

Muitos dos escritos de Sri Burapha, e sua própria existência, girava ao redor da noção de consciência moral e de uma inabalável crença na verdade, justiça, igualdade, sacrifício e respeito pelos outros seres humanos. Outra virtude repetidamente sublinhada era a libertação da mente da ganância, raiva e ignorância – a fonte da verdadeira paz.

Tais valores são universais, transcendendo tempo e lugar. Independentemente de como o país progride ou muda, esses valores não devem ser abandonados. Mesmo quando um país clama por um governo democraticamente eleito e que exerça uma política democrática, logo que as pessoas faltem à honestidade e tolerância ou tentem explorar outros, não poderá haver paz. E as divisões e o caos vão surgir mais cedo ou mais tarde, conduzindo a uma crise que minará a própria democracia.

A felicidade de qualquer sociedade não apenas depende de um sistema político e econômico progressivo, mas também da qualidade de seu povo. É verdade que a qualidade das pessoas é, em parte, ligada ao seu contexto, mas também é entrelaçada com valores e cultura coletivos detidos pela própria sociedade. Se os valores ou cultura predominantes daquela sociedade estão voltados para promover o egoísmo, a exploração ou divisões, então a qualidade das pessoas vai proporcionalmente diminuir, enfraquecendo toda a sociedade e levando a uma crise total.

O verdadeiro “Gentleman” da literatura e jornalismo tailandês, Sri Burapha ou Kurlab Saipradit (31 de Março 1905 a 16 de Junho de 1974)

Hoje em dia a sociedade tailandesa está profundamente mergulhada em duas grandes tendências culturais, o que nós chamaremos a cultura da ganância e a cultura do ódio. A cultura da ganância tem encorajado a profusão do materialismo – e a crença de que quanto mais cedermos à aquisição material e ao consumismo, mais felizes seremos. Em tal cultura, as pessoas têm desejos sem fim e exploram-se uns aos outros, o que por sua vez leva a grandes diferenças sociais, injustiça galopante, corrupção, crime e problemas ambientais.

Ao mesmo tempo, a cultura do ódio encoraja o sentimento de inimizade entre as pessoas, baseado apenas nas diferenças de crenças, de religião, de ideologia, de etnia e de nível social. O medo e a paranoia têm feito as pessoas olharem umas às outras como inimigos. Atualmente, a semente da separação espalhou-se ao ponto de as pessoas olharem aquelas que vestem cores diferentes como más. Elas têm ideias pré-concebidas de que somente os maus, os impatrióticos e os ingratos à instituição vestiriam essa ou aquela cor ou concordariam com determinado conjunto de crenças políticas com aquele código de cor. Cada lado fica ocupado demais rotulando o outro para ver como os demais também são humanos. Assim, ambos os lados estão prontos para esmagar um ao outro sem hesitação.

Se a cultura da ganância é centrada em noções de consumo, luxúria e glória, a cultura do ódio, consequentemente, prospera naquelas de raiva, ódio e medo, todas as quais foram corroendo o espírito da sociedade tailandesa e de seu povo a um nível sem precedentes. Assim, é necessário trabalhar em conjunto para nutrir o espírito das pessoas para que elas possam resistir ao poder dessas duas vertentes culturais. É possível promover bons valores que poderão servir como uma guia para as pessoas conduzirem suas vidas.

Mas também devemos incentivar as pessoas a perceber a verdadeira felicidade da mente, que é uma forma muito mais refinada e virtuosa de felicidade do que a material. Aqueles que se mantêm capazes de perceber isso não são seduzidos pelas tentações da ganância e estarão dispostos a ajudar outras pessoas. Pois eles estão cientes de que fazer os outros felizes vai criar felicidade para si mesmos. Também os ajudam a se tornarem menos ligados à noção de “eu” e “meu” e a ter um coração leve, tranquilo.

Em paralelo a isso deve haver um esforço para desenvolver uma consciência da própria raiva, ódio e medo. Eles serão capazes de ver como apego a qualquer ideologia pode fazer as pessoas terem uma mente estreita e cheia de preconceitos, que por sua vez os fazem sentir miseráveis e pode até causar estragos na vida dos outros. Mas, com vigilância mental, é difícil para a raiva, ódio e medo assumir o controle da mente. Podemos, então, ver nos outros a humanidade, sofrimento, e até mesmo a bondade, e podemos perdoar e sentir amor e compaixão para com eles. No final, eles também são companheiros humanos que amam a felicidade e abominam o sofrimento tal como somos. Mesmo quando os conflitos persistem, seja devido a diferenças de opinião ou interesses, devemos tentar resolvê-los pacificamente e não recorrer à violência.

Estou bem ciente de que uma sociedade pacífica requer esforços concentrados para tornar igualdade, justiça e democracia uma realidade. Mas a mudança social não é apenas com relação aos aspectos políticos e econômicos, mas também sobre a dimensão espiritual. Na verdade, os dois lados não podem ser separados. O espírito das pessoas não pode crescer em um ambiente ruim. Da mesma forma, bons sistemas políticos e econômicos não podem prosperar quando as pessoas não estão bem espiritualmente. Mas, muitas vezes, o laço simbiótico entre os dois tem sido negligenciado. Assim, o impulso atual para a mudança social ignora a dimensão espiritual, enquanto que aqueles que prestam atenção à espiritualidade tendem a ignorar a sociedade e se ocupar apenas com os seus interesses pessoais. O que eu venho tentando fazer é reunir as duas dimensões.

Naturalmente, como monge, não há nada melhor do que tentar conscientizar as pessoas e desenvolver nelas a dimensão espiritual no sentido de conduzirem as suas vidas e a sociedade para um lugar melhor. Por outras palavras, encorajar as pessoas a verem o seu próprio potencial para compreenderem a liberdade da mente assim como a bondade e a humanidade nos outros, tentando, dessa forma, construir pacificamente e juntos uma sociedade melhor. Depois de considerar as minhas capacidades, escolhi escrever como um meio para concretizar tais objetivos. Acredito que esta missão é de suprema importância, especialmente numa altura em que as pessoas inventam palavras para magoar, difamar e/ ou recarregar a energia do ódio, como acontece hoje em dia. O que a sociedade tailandesa necessita é de palavras que levem as pessoas à compaixão em relação aos outros, à compreensão do sofrimento de cada um e à crença no espírito do amor em vez da energia da raiva e do ódio.

Meu caminho até a escrita começou muito antes de minha entrada na vida monástica. Há trinta e oito anos, ainda no segundo grau, eu era como milhares de outros jovens que acordavam e percebiam a magnitude dos problemas que estavam inundando o país naquele tempo. Meu desejo de ver uma Tailândia mais justa, igualitária e democrática me levou a usar a escrita para despertar a consciência social das pessoas e criticar a situação das coisas. O desejo de ver a mudança social para melhor, para o benefício de todos os seres, foi o primeiro empurrão que me levou a escrever continuamente.

Mas escrever é apenas um meio. Eu estou comprometido com outras atividades sociais, estando elas relacionadas a questões de direitos humanos, não violência e movimentos ambientais. Eu me vejo mais como um ativista social do que como um escritor. Embora o ingresso na comunidade monástica tenha, de alguma maneira, levado a uma mudança em meus propósitos, eu ainda não desisti do meu trabalho público e de escritor. Apenas o foco mudou para dar mais importância à dimensão espiritual, a qual tem estado um pouco ausente na maioria dos movimentos sociais.

Sendo um monge que deve praticar a meditação do insight seriamente, eu posso ver como a transformação social e a transformação interna devem andar de mãos dadas. O equilíbrio entre o trabalho interno e externo é necessário se o trabalho pela sociedade é genuinamente para o benefício do público e não para servir o próprio ego. Ao mesmo tempo, a pessoa terá uma paz interior para sustentar a si mesma – o que a manterá afastada dos balanços do mundo, ajudando-a a resistir todas as tentações e a não cair nas constantes armadilhas da raiva, do ódio e do medo.

Tal consciência faz-me ver claramente que o lado social e o lado do autodesenvolvimento não podem estar separados. Isso é semelhante ao que Buddhadasa Bhikkhu falou: “Trabalhar é praticar o dharma”. Ao ver a escrita como uma forma de ação social, eu me tornei consciente de que a escrita é também uma forma de prática espiritual. De certa forma, escrever é afirmar a existência de si mesmo. Mas também pode ser um modo de se desenvolver ao mesmo tempo. Por meio da escrita uma pessoa apresenta as suas ideias e sentimentos à arena pública, para ser compartilhado com outros e consequentemente receber seus comentários. Um bom escritor deve ter a mente aberta e aceitar as críticas, bem como os louvores. Para isso um escritor deve tentar diminuir o seu ego, ou pelo menos estar atento às ondulações em sua mente quando confronta as críticas. Tal é um caminho de prática que diminui o próprio ego.

Buddhadasa certa vez se referiu ao Sri Burapha em sua escrita: “Praticar o dharma é de fato escrever”. Portanto, pode-se reformular a declaração do monge desta forma: “Escrever é praticar o dharma”. Também estou lembrado de uma citação do poeta americano Robert Frost que acredito ser uma boa lição moral: Educação é a capacidade de ouvir quase qualquer coisa sem perder o seu temperamento ou sua autoconfiança. Tal visão da educação se assemelha muito ao Buddhismo, ou seja, uma pessoa verdadeiramente educada deve ser capaz de manter-se calma diante de críticas. Eu tenho que admitir que eu ainda não alcancei completamente esse estágio, porém acredito que esse é o objetivo que devemos tentar alcançar, através da escrita como uma forma de autodesenvolvimento.

Gostaria de expressar meu agradecimento ao Comitê da Fundação Sri Burapha que considerou meus escritos merecedores do prêmio deste ano. Decidi aceitar esta distinção, apesar de vê-la como realmente muito maior do que eu. Gostaria também de aproveitar esta oportunidade para agradecer a Ajahn Sulak Sivaraksa, que desempenhou um importante papel conduzindo-me por este caminho até agora. Foram os livros de Ajahn Sulak que primeiro inspiraram um menino de 15 anos a escrever, mesmo sabendo que haveria poucas pessoas que leriam o que escrevesse. Isto fez com que o menino quisesse seguir seus passos, de forma que passou a produzir mais em sala de aula sem qualquer medo de ser repreendido por seus professores ou pelo diretor da escola. Mais tarde, quando conheci Ajahn Sulak pessoalmente, ele até chegou ao extremo de confiar em mim, na época apenas um estudante do segundo ano da universidade, para dirigir a revista Pacarayasara. Ajahn Sulak constantemente apoiou-me, publicando o que eu escrevia antes e depois de me tornar um monge. Ele é alguém a quem respeito como um professor e um modelo de escritor. É, portanto, uma grande honra para mim receber o prêmio da Sri Burapha, o qual Ajahn Sulak recebeu, bem como todos os outros mestres da literatura tailandesa.

Esta é uma tradução do discurso de Phra Paisal Visalo em 5 de maio de 2010 (Dia Tailandês do Escritor) no Pridi Banomyong Institute.

Phra Paisal Visalo é abade do Wat Pasukato na província de Chaiyaphum na Thailândia. Esteve envolvido com o ativismo estudantil e a proteção de direitos humanos antes de ser ordenado monge em 1983. Foi o cofundador do Sekiyadhamma, uma rede de monges socialmente engajados de todo o país. Além de escrever e editar livros sobre ambientalismo e Buddhismo, ele também dá cursos de não-violência e meditação. Ele foi recentemente agraciado com o Asian Public Intellectual Fellowship da Nippon Foundation (wikipedia).


 

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão do autor

© 2012 Edições Nalanda



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