� Retiros



Retiro vipassana na linhagem de S.N.Goenka
(realizado em outubro de 1994 em Belo Horizonte - MG)

Quando em 1987 participei de um retiro com S.N. Goenka no Dhammadhara Vipassana Meditation Center em Massachusetts, tive a oportunidade de conhecer dois argentinos que tamb�m estavam l� praticando. Nossa amizade cresceu - auxiliada pela proximidade geogr�fica e pelo sentimento de estarmos isolados do "palco" principal onde as atividades do Dhamma ocorriam -, atrav�s de cartas e, mais tarde, emails, o que levou, anos mais tarde, a pensarmos em organizar um retiro vipassana no Brasil.

O primeiro empecilho para isso era o de que a equipe organizadora nos retiros dirigidos por S.N. Goenka devia ser composta por alunos que j� tivessem participado de retiros nessa linhagem. Essa � uma regra que deveria ser seguida. Tanto Eduardo Puig e Daniel Mayer, os dois amigos argentinos, se dispuseram a vir ao Brasil ajudar. Em fevereiro, uma de minhas alunas na �poca, foi � Venezuela, onde estava acontecendo o primeiro retiro de Goenka-ji na Am�rica do Sul. Em breve, encontramos mais duas pessoas que haviam feito retiros no exterior e que agora moravam no Brasil: Renata Lyrio e Ruth Hayward, ambas vivendo no Rio de Janeiro. Finalmente, um casal su��o se disp�s a vir ao Brasil. Estava completada a equipe b�sica que serviria durante o retiro. Mas precis�vamos ainda fazer toda a organiza��o pr�-retiro. Eu, ent�o, com a ajuda dos membros e da infraestrutura do Centro Buddhista Nalanda comecei a tradu��o de todo o material necess�rio, artigos de divulga��o, programa��o, resumos das palestras, bem como a divulgar atrav�s do uso de nossa base de endere�os. Os membros do Nalanda tiveram um papel essencial de suporte a toda a infraestrutura do retiro, o qual realizamos numa casa de retiros de freiras cat�licas.

Vipassana � a tradi��o interior de medita��o da linhagem Theravada do Buddhismo. Baseada principalmente no �n�p�nasati Sutta e Satipatth�na Sutta, os dois principais ensinamentos do Buddha em rela��o � medita��o, Vipassana tem sido transmitida por uma linhagem milenar atrav�s de todos os pa�ses Theravada, principalmente em seus c�rculos mon�sticos mais internos. Literalmente, Vipassana significa "vis�o clara" ou "vis�o profunda", e indica a experi�ncia direta de percep��o das realidades internas. Todo o ensinamento do Buddha indica para este fim: Ver claramente a realidade tal como ela �, e n�o como nossos conceitos e pr�-conceitos nos condicionam a v�-la.

H� v�rias formas de praticar Vipassana, mas todas invariavelmente prov�m dos dois suttas mencionados acima. Atualmente, a linhagem Vipassana � uma das mais crescentes nos EUA e Europa, indicando que o ensinamento intemporal do Buddha, continua t�o importante e �til como antigamente.

No Brasil, a t�cnica vipassana come�ou a ser divulgada primeiramente no Templo Buddhista do Rio de Janeiro liderado pelo Vener�vel Vipassi, e a seguir pelo Centro Buddhista Nalanda de Belo Horizonte. Nos EUA, Europa e �sia, os retiros de Vipassana em geral duram dez dias intensivos de medita��o, mas podem ser praticados de dois dias at� tr�s meses ou mais. Neles, o praticante se compromete a seguir criteriosamente todas as regras de disciplina durante todo o per�odo (lembremos que a pr�tica de s�la - a moralidade ou virtude - � especialmente incentivada em Vipassana) e trabalhar atentamente com a t�cnica de medita��o ensinada. Os retiros s�o mais pr�ticos que te�ricos, onde o praticante tem a oportunidade �nica de vivenciar intensamente a pr�tica e os frutos do treinamento meditativo. Ele � feito somente por aqueles que querem realmente compreender e praticar a medita��o desde dentro.

No Nalanda realiz�vamos at� aquele ano regularmente retiros de dois a tr�s dias, mas at� onde saibamos, nunca no Brasil havia sido realizado um retiro de dez dias na linhagem Vipassana. Foi, ent�o, com grande prazer que no ano de 1994 anunciamos para toda a Sangha buddhista a realiza��o de um retiro entre os dias doze e vinte e tr�s de outubro daquele ano. A linhagem que trouxemos era de origem birmanesa e tem como seu nome m�ximo a figura do grande mestre de medita��o U Ba Khin. U Ba Khin foi um grande mestre reconhecido por muitos, dentro e fora da Birm�nia. Uma particularidade de sua vida foi a de, apesar de completamente dedicado � pr�tica intensa de medita��o, nunca ter-se tornado um monge, exceto por um curto per�odo. Permanecendo leigo, U Ba Khin mostrou exemplarmente que uma vida de Dhamma (skr. Dharma) pode ser vivida integralmente e com os seus frutos, sem que, por isso, se tenha que isolar do mundo. Funcion�rio p�blico do governo birman�s, come�ou a ensinar medita��o para seus pr�prios colegas de servi�o numa sala que separou para este fim. As mudan�as come�aram a ocorrer ao mesmo tempo em que a efici�ncia do departamento aumentava. Aos cinq�enta e cinco anos U Ba Khin foi nomeado para a chefia de quatro departamentos do governo e ficou conhecido por transformar a estrutura corrupta em um exemplo de corre��o, efici�ncia e harmonia, tudo isso aplicando a t�o importante pr�tica da virtude (s�la) aliada aos frutos da concentra��o e do equil�brio da medita��o. Ap�s sua aposentadoria, U Ba Khin passou a se devotar inteiramente ao ensino de Vipassana, sendo reconhecido por eminentes monges e mestres do Buddhismo birman�s.

Um de seus disc�pulos foi S. N. Goenka, um bem sucedido homem de neg�cios de origem indiana, cuja fam�lia havia mudado para a Birm�nia. S. N. Goenka desde a inf�ncia sofria de graves ataques de dores de cabe�a, t�o s�rios que o �nico meio ap�s algum tempo foi trat�-los com inje��es de morfina. Correndo o risco de se tornar viciado na droga, foi recomendado pelos m�dicos a buscar tratamento nas melhores cl�nicas especializadas da Su��a, Inglaterra, EUA, Jap�o e Alemanha, mas todos sem resultado algum. De volta � Birm�nia, seu amigo U Chan Htoon recomendou-o a fazer uma visita a U Ba Khin. O encontro entre os dois causou grande impacto em S. N. Goenka, o qual foi recomendado a fazer um retiro intensivo de dez dias, n�o para curar sua dor, mas para a autopurifica��o. Proveniente de uma r�gida fam�lia hindu, S. N. Goenka hesitou por algum tempo em participar do retiro, por preconceito em rela��o ao Buddhismo. Mas, finalmente, cedeu para aquilo que em suas palavras foram "... os dias mais iluminados de minha vida" e "... o maior ponto de muta��o de minha vida". N�o s� suas dores de cabe�a desapareceram, mas toda a massa de sofrimentos em que estava envolvido, bem como o caminho para a sua recupera��o lhe ficou claro. A solu��o se chamava Dhamma. Desde ent�o S. N. Goenka tornou-se um disc�pulo de Sayagyi U Ba Khin e, mais tarde, de volta � sua terra-m�e, a �ndia, come�ou a ensinar Vipassana. E foi desta linhagem vinda de U Ba Khin atrav�s de Sri S. N. Goenka que foi realizado o primeiro retiro Vipassana no Brasil.

Dito isto, algumas reservas devem ser feitas � maneira como a organiza��o que se formou em torno de S.N. Goenka difere com rela��o ao ensinamento buddhista e talvez com rela��o ao pr�prio ensinamento de U Ba Khin. Estudantes dessa linhagem podem se surpreender com essa afirma��o pois o discurso que � passado � o de que S.N.Goenka transmite ipsis literis aquilo ensinado por seu mestre U Ba Khin. A primeira demonstra��o clara de que isso n�o seja exatamente assim est� na pr�pria forma como seus retiros s�o anunciados: "na linhagem de U Ba Khin, tal como ensinado por S.N. Goenka". E na realidade h� outros professores, igualmente disc�pulos diretos de U Ba Khin (eu mesmo conheci pessoalmente alguns) que ensinam de uma maneira diferente.

S.N. Goenka criou uma imensa organiza��o para veicular seus ensinamentos, com centenas de centros espalhados pelo mundo. Um dos maiores problemas com isso � que todos os seus retiros n�o t�m um professor que os dirige, mas os ensinamentos s�o passados por meio de fitas de v�deo, ao contr�rio de todos os outros retiros de vipassana onde h� um professor de carne-e-osso conduzindo, ministrando os ensinamentos, dirimindo d�vidas e realizando entrevistas. N�o � raro ouvir em todas as partes do mundo o coment�rio de se ter criado aqui uma 'f�rmula' em massa de aplica��o de vipassana, com v�deos substituindo ensinamentos diretos e fitas K7 substituindo os c�nticos e recita��es.

Um outro problema associado a este � que, na vis�o de S.N. Goenka, o Dhamma ensinado pelo Buddha transcende as diferen�as religiosas, o que significa que qualquer um, independente de ter ou n�o uma religi�o, pode praticar vipassana. Isso em si n�o � um problema nem incorreto, e uma das vantagens � que pessoas dos mais variados tipos de background atendem tais retiros. Isso foi particularmente vantajoso na �ndia, onde diferen�as religiosas e de casta causam tanta separa��o e disc�rdia. O problema entretanto est� nas conclus�es tiradas a partir da�. Querendo se distanciar das denomina��es religiosas, a organiza��o tem se fechado cada vez mais em torno de si mesma. Seus diversos centros n�o participam de nenhuma atividade buddhista com outras organiza��es e templos, e mesmo s�o, por alguns de seus membros mais antigos, frontalmente contr�rios ao Buddhismo, tido como um religiosismo que se formou em tornou do puro Dhamma que a organiza��o de S.N. Goenka veicula. Aqueles que desejam progredir na organiza��o s�o ademais proibidos de participarem de outros retiros, mesmo que buddhistas e de vipassana.

Subordinado a isso est� tamb�m o tipo de informa��o que � passada aos alunos e participantes de retiros. A organiza��o � chamada simplesmente de "Medita��o Vipassana", mas nenhuma men��o � feita de que h� v�rios tipos de vipassana, sendo que a t�cnica proposta por S.N. Goenka � apenas uma das existentes. Muitas praticantes passam anos acreditando que s� h� um vipassana e que isso � aquilo ensinado na organiza��o.

Problemas organizacionais � parte, algumas reservas podem ser feitas tamb�m � parte doutrinal, n�o tanto �quilo expresso pelo pr�prio S.N. Goenka, mas o que � bastante evidente em muitos professores-assistentes que s�o os respons�veis por organizar os retiros. Vipassana � visto como uma t�cnica e esta � basicamente a varredura das sensa��es corporais. Vipassana na tradi��o Theravada, no entanto, nunca foi tida como uma 't�cnica', mas como um dos objetivos da medita��o. Confundindo uma com a outra, alunos freq�entemente dizem estar 'praticando vipassana', quando na verdade est�o praticando apenas uma das contempla��es da t�cnica buddhista de Satipatthana. Um outro problema decorrente do isolamento auto-imposto da organiza��o em rela��o ao 'mainstream' buddhista � o de que � freq�ente encontrar praticantes sem nenhum interesse em estudar profundamente os ensinamentos do Buddha, ficando assim limitados aos materiais produzidos pela pr�pria organiza��o.

As palestras de S.N. Goenka durante os retiros e mesmo a t�cnica em si, entretanto seguem bem de perto os ensinamentos e t�cnicas tradicionais do Buddhismo e � uma pena que a sua organiza��o tenha apresentando no decorrer dos anos os problemas costumeiros que se pode esperar de uma expans�o t�o grande.

Confira um coment�rio do Bhikkhu Bodhi sobre o livro b�sico da organiza��o de S.N. Goenka e que abre igualmente temas interessantes.

 

Ricardo Sasaki