As Quatro Nobres Verdades

~ Ven. Ajahn Chah ~

[1] Hoje, fui convidado pelo abade para lhes ensinar, assim lhes peço que se sentem tranquilamente e acalmem sua mente. Por causa da barreira da língua, devemos usar um intérprete, por isso, se não prestarem a devida atenção vocês podem não entender.

Minha estadia aqui tem sido muito prazerosa. Tanto o Mestre quanto vocês, seus seguidores, têm sido generosos, amigáveis e sorridentes, o que combina com os praticantes do verdadeiro Dhamma. Sua propriedade também é muito inspiradora, mas grande demais! Admiro sua dedicação em reformá-la para estabelecer um lugar para a prática do Dhamma.

Sendo professor há muitos anos, eu já passei pela minha parte de dificuldades. Atualmente, existem no total cerca de quarenta monastérios [2] oriundos do meu mosteiro Wat Nong Pah Pong, mas, mesmo assim, eu tenho seguidores que são difíceis de ensinar. Alguns sabem, mas não se preocupam com a prática, alguns não sabem e não tentam descobrir. Eu não sei o que fazer com eles. Por que os seres humanos têm mentes como estas? Ser ignorante não é bom, mas mesmo quando eu lhes digo, eles ainda não escutam. Eu não sei o que mais eu posso fazer. As pessoas são cheias de dúvidas na sua prática, elas estão sempre duvidando. Todos querem ir para o Nibbāna, mas não querem trilhar o caminho. É desconcertante. Quando digo a eles para meditar eles ficam com medo, ou se não têm medo, então ficam apenas sonolentos. Sobretudo, eles gostam de fazer as coisas que eu não ensino. Quando eu conheci o Venerável Abade aqui eu perguntei a ele como seus seguidores eram. Ele disse que eles eram iguais. Essa é a dor de ser um professor.

O ensinamento que apresentarei hoje é uma forma de resolver os problemas no momento presente, nesta vida presente. Algumas pessoas dizem que têm tanto trabalho para fazer que elas não têm tempo para praticar o Dhamma. “O que podemos fazer?”, perguntam elas. Eu lhes pergunto: “Vocês não respiram enquanto estão trabalhando?” – “Sim, claro que respiramos!” – “Então como é que vocês têm tempo para respirar quando estão tão ocupados?” Elas não sabem o que responder. “Se você simplesmente tiver sati enquanto trabalha, você terá muito tempo para praticar”.

Praticar meditação é como respirar. Enquanto trabalhamos respiramos, enquanto dormimos respiramos, enquanto sentados respiramos… Por que é que temos tempo para respirar? Porque vemos a importância da respiração, encontramos sempre tempo para respirar. Do mesmo modo, se virmos a importância da prática da meditação, vamos encontrar o tempo para a prática.

Algum de vocês já sofreu?… Vocês já foram felizes? Aqui está a verdade, é aqui onde vocês devem praticar o Dhamma. Quem é o que é feliz? A mente é feliz. Quem sofre? A mente sofre. Onde quer que essas coisas cheguem, é aí onde elas terminam. Vocês já tiveram a experiência da felicidade? Vocês já experimentaram o sofrimento?… Esse é o nosso problema. Se conhecermos o sofrimento [3], a causa do sofrimento, o fim do sofrimento e o caminho que nos conduz ao fim do sofrimento, poderemos resolver o problema.

Há dois tipos de sofrimento: ordinário e extraordinário. O ordinário é o sofrimento que é a natureza inerente das condições: ficar de pé é sofrimento, sentar é sofrimento, deitar é sofrimento. Esse é o sofrimento que é inerente a todo fenômeno condicionado. Mesmo o Buddha experimentou tais coisas, ele experimentou conforto e dor, mas ele os reconheceu como condições da natureza. Ele sabia como superar esses sentimentos naturais, ordinários, de conforto e dor, por meio do entendimento da sua natureza verdadeira. Porque ele entendia esse “sofrimento natural”, aqueles sentimentos não o incomodavam.

O tipo importante de sofrimento é o segundo, o sofrimento que se arrasta a partir do exterior, o “sofrimento extraordinário”. Se estivermos doentes, poderemos precisar receber uma aplicação de injeção do médico. Quando a agulha perfura a pele, há um pouco de dor, que é apenas natural. Quando a agulha é retirada a dor desaparece. Isto se parece com o tipo de sofrimento comum, não é nenhum problema, todo mundo experimenta. O sofrimento extraordinário é o sofrimento que surge do que chamamos de upādāna, o agarrar-se às coisas. Isto é como tomar uma injeção com uma seringa cheia de veneno. Isto já não é um tipo comum de dor, é a dor que termina em morte. Isto é semelhante ao sofrimento que surge a partir do agarrar.

Noção errônea, não saber sobre a natureza impermanente de todas as coisas condicionadas, é outro tipo de problema. As coisas condicionadas são o reino do samsāra [4]. Não querer que as coisas mudem – se pensarmos assim, iremos sofrer. Quando pensamos que o corpo somos nós mesmos ou pertence a nós, ficamos com medo quando o vemos mudar. Considere a respiração: uma vez que entra, deve sair, depois de ter saído ela deve entrar novamente. Essa é a sua natureza, é assim que conseguimos viver. As coisas não funcionam dessa maneira. É assim que as condições são, mas não percebemos isso.

Suponha que nós percamos algo. Se pensarmos que o objeto era realmente nosso, iremos pensar bastante sobre isso. Se não pudermos vê-lo como uma coisa condicionada, passageira de acordo com as leis da natureza, iremos experimentar sofrimento. Mas, se você inspirar, você pode viver? Coisas condicionadas devem mudar naturalmente dessa forma. Ver isso é ver o Dhamma, ver aniccaṁ, mudança. Vivemos dependentes dessa mudança. Quando sabemos como as coisas são, então podemos deixá-las passar.

A prática do Dhamma consiste em desenvolver um entendimento do modo como são as coisas de forma que o sofrimento não surja. Se pensarmos erroneamente estaremos em conflito com o mundo, em conflito com o Dhamma e com a verdade. Suponhamos que vocês estejam doentes e precisam ir a um hospital. A maioria das pessoas pensa: “Por favor, não me deixe morrer, eu quero melhorar”. Esse é um pensamento incorreto, e levará ao sofrimento. Vocês deveriam pensar consigo mesmos: “Se eu melhorar, melhoro, se eu morrer, morro”. Esse é o pensamento correto porque, em última instância, não se pode controlar as condições. Se pensarem assim, se vocês morrerem ou se recuperarem, não vão errar, não terão que se preocupar. Querendo melhorar a todo custo e temos medo do pensamento de morrer… essa é a mente que não compreende as condições. Vocês deveriam pensar: “Se eu melhorar está bom, se eu não melhorar está bom”. Desse modo não vamos errar, não teremos que ter medo ou chorar, porque nos sintonizamos com o modo como as coisas são.

O Buddha viu claramente. Seu ensinamento é sempre relevante, nunca antiquado. Ele nunca muda. Ainda nos dias de hoje, ele é da maneira como é. Ao tomar este ensinamento para nosso coração, podemos ganhar a recompensa da paz e do bem-estar.

Nos ensinamentos, há o reflexo do “não-eu”: “Isto não sou eu, isto não pertence a mim”. Mas as pessoas não gostam de ouvir esse tipo de ensino, porque elas estão apegadas à ideia do “eu”. Essa é a causa de sofrimento. Vocês devem tomar nota disso.

Hoje, uma mulher perguntou sobre como lidar com a raiva. Eu disse a ela que na próxima vez que ela ficar com raiva, comece a dar corda em seu despertador e coloque-o à sua frente. Então, se dar duas horas para a raiva ir embora. Se fosse realmente sua raiva, ela provavelmente poderia dizer-lhe para ir embora assim: “Em duas horas tenha desaparecido!” Mas não é realmente nossa para comandar. Às vezes, em duas horas ela ainda não passou, outras vezes em uma hora já se foi. Segurar a raiva como fosse pessoal causará sofrimento. Se ela realmente pertencesse a nós, teria de nos obedecer. Se não nos obedece isso significa que é apenas uma ilusão. Não caia nessa. Se a mente está feliz ou triste, não caia nessa. Se a mente ama ou odeia, não caia nessa, é tudo um engano.

Algum de vocês já esteve com raiva? Quando vocês estão com raiva, a sensação é boa ou ruim? Se a sensação é ruim, então por que vocês não jogam fora esse sentimento, por que se preocupar em mantê-lo? Como podem dizer que são sábios e inteligentes quando se apegam a essas coisas? Desde o dia em que nasceram, quantas vezes a mente lhes enganou através da raiva? Tem dias em que a mente pode até provocar uma discussão na família inteira, ou fazer vocês chorarem a noite toda. E, ainda assim, continuamos a ficar com raiva, ainda agarramos as coisas e sofremos. Se vocês não veem o sofrimento continuarão a sofrer indefinidamente, sem oportunidade para o descanso. O mundo do saṁsāra é assim. Se conhecermos o modo como ele é, nós podemos resolver o problema.

Os ensinamentos do Buddha atestam que não há melhor meio para superar o sofrimento do que ver que “isso não é o meu eu”, “isso não é meu”. Esse é o melhor método. Mas nós não costumamos prestar atenção a isso. Quando o sofrimento surge, simplesmente choramos sem aprender com ele. Por que é assim? Devemos dar uma boa olhada nessas coisas para desenvolver o ‘Buddho’, ‘aquele que sabe’.

Tomem nota, alguns de vocês podem não estar cientes de que isto é o ensino do Dhamma. Vou lhes dar um pouco do Dhamma que está fora das escrituras. A maioria das pessoas lê as escrituras, mas não vê o Dhamma. Hoje vou lhes passar um ensinamento que está fora das escrituras. Algumas pessoas podem se perder ou não compreendê-lo.

Imaginem que duas pessoas estejam andando juntas e vejam um pato e uma galinha. Uma delas diz “por que aquela galinha não é como o pato, por que o pato não é como a galinha?” Essa pessoa quer que a galinha seja um pato e que o pato seja uma galinha. Mesmo que essa pessoa deseje que o pato seja uma galinha e a galinha seja um pato pelo resto de sua vida, isso não acontecerá, porque uma galinha é uma galinha e um pato é um pato. Pelo tempo em que a pessoa desejar isso, ela vai sofrer. A outra pessoa pode ver que uma galinha é uma galinha e um pato é um pato, e que isso é tudo que existe nisso. Não tem problema. Ela vê de modo correto. Se vocês quiserem que o pato seja uma galinha e que a galinha seja um pato, vocês vão sofrer bastante.

Da mesma forma, a lei de aniccaṁ afirma que todas as coisas são impermanentes. Se você quiser que as coisas sejam permanentes você sofrerá. Toda vez que a impermanência aparecer, você vai se decepcionar. Aquele que vê que as coisas são naturalmente impermanentes estará à vontade, não haverá conflito. Aquele que quer que as coisas sejam permanentes terá conflito, talvez até mesmo perdendo o sono por isso. Isso é ser ignorante a respeito de aniccaṁ, a impermanência, o ensinamento do Buddha.

Se você quer conhecer o Dhamma, onde deve procurar? Você deve procurar dentro do corpo e da mente. Você não vai encontrá-lo nas prateleiras de uma livraria. Para realmente ver o Dhamma você deve olhar dentro de seu corpo e mente. Há apenas essas duas coisas. A mente não é visível para o olho físico, ela deve ser vista com o olho da mente. Antes que o Dhamma possa ser percebido você deve saber onde procurar. O Dhamma que está no corpo deve ser visto no corpo. E com que enxergamos nosso corpo? Nós enxergamos com a mente. Você não vai encontrar o Dhamma procurando em outro lugar, porque tanto a felicidade como o sofrimento aparecem bem aqui. Ou você já viu a felicidade surgir nas árvores? Ou nos rios ou no clima? Felicidade e sofrimento são sensações que surgem em nossos corpos e mentes.

Por isso o Buddha nos diz para conhecer o Dhamma aqui e agora. O Dhamma está aqui mesmo, devemos olhar exatamente aqui. O Mestre pode instruí-lo a ver o Dhamma nos livros, mas se você pensar que lá é onde o Dhamma realmente está você nunca o verá. Tendo lido nos livros você deve refletir naqueles ensinos interiormente. Então você consegue entender o Dhamma. Onde o verdadeiro Dhamma existe? Ele existe exatamente aqui neste nosso corpo e mente. Isto é a essência da prática da contemplação.

Quando fazemos isso, a sabedoria surge em nossas mentes. Quando há sabedoria em nossas mentes, então, não importa para onde olhamos, há Dhamma, veremos aniccaṁ, dukkhaṁ e anattā em todos os momentos. Aniccaṁ significa efêmero. Dukkhaṁ – se nos apegamos às coisas que são efêmeras, devemos sofrer, porque elas não são nós ou nossas (anattā). Mas não vemos isso, sempre as vemos como sendo nós mesmos e nos pertencendo.

Isso significa que vocês não veem a verdade das convenções.  Vocês deveriam entender as convenções. Por exemplo, todos nós sentados aqui temos nomes. Nossos nomes nasceram conosco ou eles foram designados a nós posteriormente? Entenderam? Isso é uma convenção. As convenções são úteis? Claro que são. Por exemplo, suponha a existência de quatro homens: A, B, C e D. Todos eles necessitam de seus nomes individuais para convenientemente se comunicarem e trabalharem juntos. Se queremos falar com o Sr. A, podemos chamar Sr. A e ele virá, não os outros. Essa é a conveniência das convenções. Mas quando olhamos profundamente a questão, veremos que na realidade não há ninguém. Veremos a transcendência. Existe somente a terra, a água, o ar e o fogo, os quatro elementos. Isso é tudo o que existe neste nosso corpo.

Mas não vemos isso dessa maneira em virtude do forte apego de attavādupādāna [5]. Se olharmos claramente veremos que não há muito a que possamos chamar de pessoa. A parte sólida é o elemento terra, a parte fluida é o elemento água, a parte que fornece o calor é chamada de elemento fogo. Quando separamos as coisas em elementos, vemos que apenas temos terra, água, vento e fogo. Onde está a pessoa a ser encontrada? Não existe nenhuma.

É por isso que o Buddha ensinou que não há prática mais elevada que ver que “isto não sou eu e não me pertence”. São simples convenções. Se entendermos claramente dessa maneira estaremos em paz. Se entendermos, no momento presente, a verdade da impermanência, que as coisas não são eu ou nos pertencem, então, quando elas se desintegrarem estaremos em paz com isso, porque, em todo o caso, não pertencem a ninguém. São meros elementos de terra, água, vento e fogo.

É difícil para as pessoas verem isso, mas mesmo assim não está além de nossa capacidade. Se conseguirmos ver isso, encontraremos contentamento, não teremos tanta raiva, ganância ou ilusão. O Dhamma sempre estará em nosso coração. Não haverá necessidade de ciúmes e de ódio porque todos são simplesmente terra, água, vento e fogo. Não há nada além disso. Quando aceitarmos essa afirmação, veremos a verdade do ensinamento de Buddha.

Se pudéssemos ver a verdade do ensinamento de Buddha, não precisaríamos ter tantos professores! Não seria necessário ouvir os ensinamentos todos os dias. Quando os compreendemos, simplesmente fazemos o que é esperado de nós. Mas o que dificulta o ensino às pessoas é o fato de não aceitarem o ensinamento e questionarem os professores e o ensinamento. Na frente do professor elas se comportam um pouco melhor, mas por trás, transformam-se em ladras! É realmente difícil ensinar. Os tailandeses são assim, por isso precisam de tantos professores.

Tenham cuidado, se não tiverem cuidado, não verão o Dhamma. Vocês devem ser cautelosos, tomando o ensinamento e considerando-o bem. Esta flor é bonita? … Você vê a feiura dentro desta flor? … Por quantos dias ela será bonita? … O que ela será daqui em diante? … Por que ela muda desta forma? … Em três ou quatro dias você terá que pegá-la e atirá-la fora, certo? Ela perde toda a sua beleza. As pessoas são ligadas à beleza, ligadas à bondade. Se algo é bom elas simplesmente se apaixonam por completo. O Buddha nos diz para olhar para as coisas bonitas apenas como coisas bonitas, nós não devemos ficar ligados a elas. Se há um sentimento agradável, nós não devemos cair nessa. A bondade não é uma coisa certa, a beleza não é uma coisa certa. Nada é certo. Não há nada neste mundo que seja uma certeza. Esta é a verdade. As coisas que não são verdade são as coisas que mudam, como a beleza. A única verdade que ela tem é na constância de sua mudança. Se acreditarmos que as coisas são belas, quando a beleza desvanece nossa mente perderá essa beleza também. Quando as coisas não mais são boas nossa mente perde a bondade também. Quando elas são destruídas ou danificadas sofremos porque nos agarramos a elas como sendo nossas. O Buddha nos diz para ver que essas coisas são simples construções da natureza. Beleza aparece e em não muitos dias desvanece. Para ver isso é preciso ter sabedoria.

Portanto, devemos ver a impermanência. Se pensamos que algo é bonito devemos dizer a nós mesmos que não é, se pensamos que algo é feio, devemos dizer a nós mesmos que não é. Tente ver as coisas dessa forma, reflita constantemente dessa forma. Veremos a verdade nas coisas falsas, veremos a certeza dentro das coisas que são incertas.

Hoje estou explicando a maneira de compreender o sofrimento, o que causa o sofrimento, a cessação do sofrimento e o caminho que conduz à cessação do sofrimento. Quando você conhecer o sofrimento você deve jogá-lo fora. Sabendo a causa do sofrimento, você deve jogá-la fora. Pratique para ver a cessação do sofrimento. Veja aniccam, dukkham e anattā e o sofrimento cessará.

Quando cessa o sofrimento, para onde vamos? Para o que estamos praticando? Praticamos para soltar, não para ganhar algo. Havia uma mulher nesta tarde que me disse que estava sofrendo. Perguntei-lhe o que ela queria ser, e ela me disse que queria se iluminar. Eu disse: “Tanto quanto quiser se iluminar, nunca se tornará iluminada. Não queira nada”.

Quando conhecemos a verdade do sofrimento, jogamos for a o sofrimento. Quando conhecemos a causa do sofrimento, então, não criamos tais causas, mas, ao contrário, praticamos para levar o sofrimento à sua cessação. A prática que leva à cessação do sofrimento é ver que “isto não é um eu”, “isto não sou eu ou eles”. Ao ver dessa forma, isso possibilita a cessação do sofrimento. É como atingir nosso destino e parar. Isso é cessação. Isso é se aproximar do Nibbāna. Falando de outro modo, seguir adiante é sofrimento, recuar é sofrimento e parar é sofrimento. Não vá para frente, não recue e não pare… resta alguma coisa? Corpo e mente cessam aqui. Isso é cessação do sofrimento. Difícil de entender, não? Se diligente e consistentemente estudamos este ensinamento, transcenderemos as coisas e atingiremos o entendimento, haverá cessação. Esse é o ensinamento derradeiro do Buddha, é o ponto final. O ensinamento do Buddha termina no ponto da total soltura.

Hoje eu ofereço este ensinamento a vocês todos e também ao Venerável Mestre. Se há algo errado nele, eu peço seu perdão. Mas não julguem apressadamente se é certo ou errado, apenas ouçam-no inicialmente. Se eu desse a vocês uma fruta e dissesse que é deliciosa, vocês prestariam atenção em minhas palavras, mas não acreditariam em mim sem atenção, pois vocês não a teriam experimentado. É assim com o ensinamento que eu dou a vocês hoje. Se quiserem saber se a “fruta” é doce ou azeda, vocês têm de cortar um pedaço e experimentar. Então vocês conhecerão sua doçura ou azedume. Assim, poderão acreditar em mim, pois viram por si mesmos. Dessa forma, por favor, não joguem esta “fruta” fora, guardem-na e experimentem-na, conheçam seu sabor por si mesmos.

O Buddha não teve um professor, você sabe. Um asceta lhe perguntou quem era seu professor, e o Buddha respondeu que ele não tinha um. O asceta apenas saiu balançando a cabeça. O Buddha estava sendo muito honesto. Ele estava falando com alguém que não podia conhecer ou aceitar a verdade. É por isso que eu digo a vocês para não acreditarem em mim. O Buddha disse que simplesmente acreditar nos outros é tolice, porque não há um claro conhecimento interior. É por isso que o Buddha disse: “Eu não tenho nenhum professor”. Esta é a verdade. Mas devem interpretar da maneira certa. Se não entenderem corretamente não respeitarão seu professor. Não vá dizer: “Eu não tenho nenhum professor”. Vocês precisam confiar em seu professor para lhes dizer o que é certo e errado, e então devem praticar em conformidade.

Hoje é um dia feliz para todos nós. Eu tive a chance de me encontrar com todos vocês e com o Venerável Mestre. Vocês não imaginariam que poderíamos nos encontrar assim porque vivemos tão distantes. Acho que deve haver alguma razão especial para termos sido capazes de nos encontrarmos desta forma. O Buddha ensinou que tudo o que nasce deve ter uma causa. Não se esqueçam disso. Deve haver alguma causa. Talvez em uma existência anterior fossemos irmãos e irmãs na mesma família. É possível. Outro professor não veio, mas eu vim. Por que isso? Talvez estejamos criando as causas no próprio momento presente. Isso também é possível.

Eu lhes deixo com esse ensinamento. Que vocês sejam diligentes e ardentes na prática. Não há nada melhor que a prática do Dhamma, o Dhamma é o mantenedor do mundo. As pessoas são confusas nos dias de hoje porque elas não conhecem o Dhamma. Se temos o Dhamma conosco, somos contentes. Estou feliz por ter essa oportunidade em lhes ajudar e ao venerável professor no desenvolvimento da prática do Dhamma. Despeço-me com sinceros votos de felicidade. Amanhã partirei, e não sei bem certo para onde. Isso é apenas natural. Quando há o chegar, deve haver o partir, quando há o partir, deve haver o chegar. É assim que o mundo é. Nós não deveríamos ficar excitados ou desapontados com as mudanças do mundo. Existe felicidade e então há sofrimento; há sofrimento e então vem a felicidade; existe ganho e então vem a perda; existe a perda e vem o ganho. Esse é o modo como são as coisas.

Na época do Buddha, haviam discípulos que não gostavam dele, porque o Buddha os incentivava a serem diligentes, a serem atentos. Aqueles que eram preguiçosos tinham medo do Buddha e se ressentiam com ele. Quando ele morreu, um grupo de discípulos chorou e ficou angustiado, pois não teriam mais o Buddha para orientá-los. Esses ainda não eram despertos. Outro grupo de discípulos ficou satisfeito e aliviado, pois não teriam mais o Buddha em suas costas, dizendo-lhes o que fazer. Um terceiro grupo de discípulos permaneceu equânime. Eles refletiram que o que nasce morre como consequência natural. Havia esses três grupos. Com qual grupo você se identifica? Você quer ser um dos satisfeitos ou o quê? O grupo de discípulos que chorou quando o Buddha faleceu ainda não tinha entendido o Dhamma. O segundo grupo são daqueles que se ressentiam com o Buddha. Ele estava sempre lhes proibindo de fazer as coisas que queriam fazer. Eles viviam com medo do desprezo e reprimendas do Buddha, então, quando ele faleceu, eles ficaram aliviados.

Nos dias de hoje as coisas não são muito diferentes. É possível que o professor aqui tenha alguns seguidores que estão ressentidos com ele. Eles podem não mostrar isso exteriormente, mas isso está lá na mente. É normal que as pessoas que ainda têm impurezas se sintam assim. Mesmo o Buddha tinha pessoas que o odiavam. Eu mesmo tenho seguidores que se ressentem de mim também. Eu digo a eles para desistirem das más ações, mas eles estimam suas más ações. Que todos vocês que são inteligentes se tornem firmes na prática do Dhamma.

Notas:

[1] Esta palestra foi dada no Manjushri Institute em Cumbria, Grã Bretanha, em 1977.

[2] No ano de 1992 (na edição deste livro), havia cerca de cem mosteiros filiais, grandes e pequenos, do Wat Nong Pah Pong.

[3] Dukkha: “Sofrimento” é uma tradução bem inadequada, mas é a mais comumente encontrada. Dukkha literalmente significa “intolerável”, “insustentável”, “difícil de aguentar”, e pode também significar “imperfeito”, “insatisfatório” ou “incapaz de prover perfeita felicidade”.

[4] Samsāra: o mundo de ilusão

[5] Attavādupādāna: uma das quatro bases do apego: Kāmupādāna, apego a objetos dos sentidos; sīlabbatupādāna: apego a ritos e rituais; ditthupādāna: apego a opiniões, e attavādupādāna, apego à ideia de eu.

[6] Logo após sua iluminação, o Buddha andava em direção a Benares quando foi abordado por um asceta errante, que disse: “Suas feições são claras, amigo, seu porte sereno… quem é seu professor?” O Buddha respondeu que não havia ninguém neste mundo que poderia ser chamado de seu professor, pois ele era completamente autoiluminado. O asceta não conseguiu entender sua resposta e foi embora, murmurando: “Bem, bom para você, amigo, bom para você”.


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright
© 2013 Edições Nalanda


Nota: Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.


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