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~ Ven. Ottama Sayadaw ~

Conteúdo

Parte 4

Renascimento

O que acontece quando um ser humano morre? Para o olho carnal, as propriedades materiais e mentais se desintegram. Ok. Mas isso é tudo? Em resposta a essa questão, diferentes interpretações sobre o [renascimento] surgem. De acordo com o Ensinamento do Buddha, o potencial do kamma, o impulso do desejo sedento, não desaparece simplesmente com a morte. As escrituras explicam que o fluxo de momentos mentais, impulsionado pelo desejo sedento, continua em uma nova forma, e assim, uma nova vida vem a ser. No sentido último, nossa vida presente é uma série de momentos mentais que rapidamente surgem e desaparecem com base em um único organismo físico. Após a morte, essa série de fluxos mentais continua, encontrando apoio em um novo organismo físico.

O último momento de vida é seguido por renascimento numa nova existência. Um sutta (AN 111,76) ilustra este processo com uma bela imagem: kamma é como o campo nutriente, desejo é como umidade; e consciência é como a semente a qual germinará e se desenvolverá no campo. Deste modo um ser renasce.

Serei eu o que renascerá ou é o ser na próxima existência algum outro? Antes que tentemos responder a esta questão, necessitamos compreender mais claramente a natureza do “mim” em torno do qual a questão anda à volta.

Um Pequeno Exercício

Por favor, comparem o bebê que vocês eram no seu primeiro ano de vida com a pessoa que vocês são agora: É a mesma pessoa ou não? “Certamente que não”, vocês dirão. Tudo bem, agora peguem vocês com a idade de cinco anos e o presente. Aos cinco vocês já podiam falar, mas aquele pequeno menino ou menina era alguém bem diferente, não era? Que tal aos dez anos? Nesta idade alguns de seus traços característicos já poderiam estar aparentes, mas seus interesses e aptidões eram bem infantis. Então vamos considerar os vinte anos. A pessoa que vocês eram aos vinte e a pessoa que vocês são agora: Elas são a mesma pessoa ou não? Está ficando difícil de dizer. Mas vocês provavelmente pensarão que as duas não são a mesma pessoa. Comparem o último mês e agora.

E ontem? E uma hora atrás? Na verdade, quando começaram a ler este ensaio, não eram exatamente o mesmo “eu” que são agora. Momento a momento não somos os mesmos, no entanto, também não somos completamente diferentes. Isto é exatamente o que renascimento significa: o ser da última existência, o ser desta vida e aquele que renascerá no futuro – não são bem o mesmo, mas também não são diferentes.

Os comentadores antigos ilustram o processo de renascimento com o símile de um selo. O selo e sua impressão não são a mesma coisa, mas também não são completamente diferentes. Na verdade, eles são conectados pela relação de causa e efeito. Nada é transferido, mas uma influência causal age. Similarmente, a vida passada não é igual à vida presente, e ainda assim não são completamente distintas, por estarem ligadas pela influência causal.

No Buddhismo uma “pessoa”, o “eu”, só tem realidade relativa, que não pertence à categoria de verdade suprema. A noção de “self” pode às vezes ser tão clara, forte e convincente; mas se virarmos os holofotes da nossa consciência sobre ela, de repente ela dá uns passos para trás, se dispersa e dissolve, e muda de lugar.

O que é esse “Eu”?

No Ensinamento do Buddha, o “Eu”, a ideia de “ego”, a noção de “meu eu” é uma concepção errônea, uma das mais poderosas expressões da ignorância e do desejo. Esses textos descrevem dois níveis diferentes da noção do “eu”. O primeiro é a presunção, que na sua forma mais sutil e aderente é a pura noção de “eu sou” (asmimāna). Os tipos grosseiros de presunção surgem quando comparamos o “eu” ilusório com nossas imagens de outras pessoas. Essa atitude comparativa e competitiva sempre resulta em outros três resultados possíveis: “eu sou melhor”, “eu sou pior” ou “eu sou igual”.

É interessante notar que não só os arrogantes “eu sou melhor”, mas também os autodestrutivos “eu sou pior”, assim como a errada ideia de “eu sou igual”, são tudo modos de presunção. O erro da atitude em “eu sou melhor – pior – igual” não é que eu não seja realmente melhor ou pior ou igual, mas que não há um real, um verdadeiramente existente “eu” que seja melhor ou pior ou igual.

O segundo nível de ilusão de “self” é denominado “crença na personalidade” (sakkāyadiṭṭhi): a visão na qual na mente e no corpo existe um “self” duradouro e essencial, um “eu” único e firme, uma alma interior. Existem inúmeras variantes desta “crença na personalidade”. Algumas pessoas assumem que seu complexo mente-corpo ou alguma parte deste, tal como a consciência, volição, percepção, etc., é o “eu” ou “mim”. Outras pensam de maneira contrária: que o “eu” possui uma mente e um corpo. Para algumas pessoas a mente e o corpo são o assento da alma. O materialista acredita que o “eu” é um produto do complexo mente-corpo. Algumas pessoas imaginam que o seu “self” ou alma são separados do organismo mente-corpo, etc.

Às vezes, as pessoas se identificam predominantemente com o corpo, às vezes, com a mente e as funções mentais. Todas essas crenças giram em torno de ideias erradas: “Isso é meu, este é o meu self”.

A ideia do “self” está fortemente enraizada em nossa mente; somos extremamente apegados a ela. Quando nossa vida está em perigo real, os instintos assumem o controle – a natureza cuida de si mesma. Mas quando nosso “eu” ou “ego” está em perigo, somos arrebatados pelas emoções.

O conceito do “eu” é um grande fardo, um fardo inútil. Libertarmo-nos desta condição não significa ficar pessoal e socialmente incompetente, como algumas pessoas incorretamente assumem. Um arahant é livre de apego a qualquer tipo de imagem própria, de todas as ilusões de um “eu” e, no entanto, é conhecido por ter “uma mente como um diamante”.

Do ponto de vista último, tudo aparenta ser muito diferente daquela forma que estamos habituados a conceber as coisas; toda a realidade é vista como tendo um modo de existência bastante diferente daquela que habitualmente assumimos. Sem uma experiência meditativa pessoal, contudo, poderá ser difícil para nós apreendermos nem que seja uma nuance desta afirmação, para já não falar de compreendê-la na sua totalidade. Quando a vida de uma pessoa é vista com um profundo insight, revela-se como sendo apenas o surgimento e desaparecimento muito rápido de consciência juntamente com os seus objetos. No seu conjunto chamamos nāma-rūpa, “mentalidade-materialidade”, a este processo impessoal e em permanente mudança de formações mentais e materiais. Sei que isto é muito difícil de compreender, mas, por favor, tentem seguir o meu raciocínio. Se olhassem para o vosso próprio dedo através de uma lente de um poderoso microscópio, teriam igual dificuldade em acreditar naquilo que iriam ver!

No último nível de realidade não falamos (nem podemos) falar de maçãs, pessoas, montanhas, sorvetes, AIDS e galáxias. Conceitos mundanos como “ontem”, “o ambiente”, “Paris”, “um problema”, “uma mulher” não têm lugar aqui. A este nível não há “pessoa”, “eu” ou “self”.

Conforme descemos ao nível da realidade convencional, ao nível da verdade relativa, vivenciamos uma sucessão rápida de fenômenos materiais e mentais através do conhecimento de objetos variados, sejam físicos ou mentais. A primeira ideia do “eu” surge com o reconhecimento destes objetos através da percepção. Este é o estágio em que nossa experiência divide-se em duas partes: o “observador” e o “observado”, um sujeito interagindo com um objeto. Este é o berço da dualidade.

Do ponto de vista experiencial o conceito de “eu” tem muitos níveis e intensidades. Para os meus propósitos imediatos deixe-me dividir o espectro de diferentes “eus-ilusão” em dois grupos: o “eu” e o “Eu” (“Meu Eu”). O sentido muito básico de um “sujeito”, mencionado acima, mescla-se em intensidades gradualmente mais “solidificadas” de “Eu” com cada vez mais limites distintos entre “mim” e o “mundo”. Aqui, a ideia de uma personalidade separada e uma identidade pessoal aparecem, com a noção de seus pertences e posses.

Não há nenhum problema com o sentido funcional de “eu”, que é frequentemente usado até mesmo por seres completamente iluminados. No nosso dia a dia, precisamos usar as expressões “eu” e “meu”. Seres plenamente realizados, no entanto, não estão apegados a essas ideias e libertam-se da sensação de “eu” assim que não precisam mais dela. Esta habilidade distingue-os claramente das pessoas comuns.

O sofrimento realmente

Mais acima nesta escala de ilusão do ego está o “eu” e “meu eu” autoreferente, que reflete sobre si mesmo, o senso de self alimentado por competitividade e fervor emocional. Esta forma de ilusão do ego é muito auto-interessada, acompanhada por um forte senso de propriedade e autoria. Por esta razão, também é altamente vulnerável. O senso individualista e autocentrado de “mim” surge frequentemente nas nossas reflexões privadas. Torna-se ainda mais intenso quando a nossa personalidade é exposta e ameaçada, reforçada ou enfraquecida, por causa do sucesso ou fracasso, aplauso ou humilhação, vitória ou derrota.

Este autodenominado “ego” é como uma marca registrada da ignorância e apego cristalizados em nossa vida; é a imediata, sempre pronta, inesgotável fonte de sofrimento de alta qualidade. Entretanto, por favor, lembrem-se que embora este sentido de “self” seja a fonte do sofrimento, ele não é a causa do sofrimento. A causa do sofrimento é o nosso apego à imagem de “eu mesmo”. O “eu” é como um balão que pode ser inflado ou desinflado; ele pode explodir, mas uma nova bolha irá rapidamente substituí-lo.

No Ensinamento do Buddha não abordamos a prática com a ideia de dissolver o “ego” ou o “eu”. Tal atitude poderia realmente fortalecer a ideia errada de si, sugerindo que há um eu que precisa ser dissolvido. O ensinamento não está preocupado com o “eu”, mas aponta, sim, diretamente para o “não-eu”. Na prática da meditação vipassanā aprendemos a ver que aquilo que chamamos de nosso “eu” é apenas o desenrolar de um impessoal fenômeno mental e material. Tal como acontece com outras ideias, a visão sobre o não-eu (anattā) pode ocorrer em intensidades diferentes com o desenvolvimento progressivo da meditação vipassanā. Conforme nossa prática amadurece percebemos com clareza crescente a auto-vacuidade, a natureza desabitada da mente e corpo. O Ensinamento do Buddha não lida com expressões múltiplas de ignorância individualmente, mas foca diretamente no corte das raízes de todos os vários tipos de males. A “crença na personalidade” e a presunção são apenas dois dos dez “grilhões”. Para a libertação integral todos os dez devem ser superados [3].

[3] Os dez grilhões (samyojana): (1) crença na personalidade, (2) dúvida cética, (3) apego a rituais, (4) desejo sedento sensual, (5) má vontade, (6) desejo sedento pela existência celestial, (7) desejo sedento pela existência imaterial, (8) presunção, (9) inquietude, (10) ignorância.

Meditação vipassanā é o mais alto estágio no treinamento do Dhamma e, além disso, é um estágio muito difícil. Algumas pessoas praticam a meditação do insight para reajustar a proporção de felicidade e tristeza em suas vidas. Isso tem o seu valor, mas nós devemos ser cuidadosos para não diluir os Ensinamentos do Buddha em um tipo de terapia. Nós podemos comprar um excelente aparelho de som de alta definição por $10.000,00 apenas para ouvir a previsão do tempo pela manhã, mas este não é o propósito para o qual um instrumento tão sensível foi feito.

Além do benefício extramundano da meditação vipassanā, o Dhamma também oferece formas simplificadas de treino que permitem alcançar benefícios e bênçãos nas nossas vidas correntes, sendo uma prática que pode trazer felicidade para as nossas vidas no momento presente de forma ainda mais direta, por exemplo, mantendo os padrões básicos de conduta ética (os cinco preceitos),  desenvolvendo bondade amorosa e boa vontade, desenvolvendo e oferecendo generosidade, ensinando-nos a mostrar o respeito, oferecendo o serviço altruísta, restringindo os prazeres sensoriais, etc. Estas qualidades não são apenas nutrientes de uma vida próspera, com sentido, mas também requisitos para um treino meditativo avançado.

A maior forma de ilusão do “eu” é o egoísmo cego. Isso também pode assumir diferentes formas. Algumas pessoas, obcecadas por este tipo de insensibilidade, experimentam o seu ambiente como uma paisagem lunar estéril e desolada, habitada seja por aliados ou inimigos. Normalmente, eles percebem as pessoas como objetos úteis ou ameaçadores. A ideia fixa de constante ameaça é combatida com agressão. Outros podem ficar completamente perdidos por desejos sensuais, até mesmo ao ponto da total escravidão.

 


 

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o Autor

© 2011 Edições Nalanda


Nota: Ensinamentos sobre o Kamma” consiste de um ensaio moderno sobre a doutrina do kamma (skr. karma, ação) no Buddhismo, escrito pelo venerável Ashin Ottama Sayadaw. Ashin Ottama é monge buddhista e professor na linhagem de Mahasi Sayadaw, abade do Mosteiro Bodhipala na Suíça e atualmente vivendo na Itália. Esteve em fevereiro de 2012 no Brasil a convite da Comunidade Nalanda.

 


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