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~ Sulak Sivaraksa ~

Ao contrário de muçulmanos e cristãos, buddhistas contemporâneos não tem uma visão para a solução dos problemas globais. Isso é, em parte, causado pelo fato de que antes da expansão colonial do Ocidente no século passado, buddhistas estavam divididos em diversas escolas, todas ligadas a culturas nacionais e/ou nações-estado, cada um com suas subdivisões e seitas. A Cristandade Ocidental, por outro lado, especialmente com seus laços ligados à construção de grandes impérios como o Romano e o Britânico, evoluiu de forma que o fardo do homem branco inclui o cuidado com o mundo como uma universalidade ou catolicismo. Embora o Protestantismo fosse dividido da mesma forma que o Buddhismo, ele conseguiu, mesmo com todas as diferenças, trabalhar em assuntos globais, especialmente desde a criação do Conselho Mundial das Igrejas [1].

A difusão do Islamismo cresceu lado a lado do sucesso comercial árabe e do conhecimento científico, especialmente após o colapso da antiga civilização grega. Embora os europeus tenham substituído o império otomano no século XIX, o crescimento do nacionalismo, pan-nacionalismo e o sucesso econômico no Oriente Médio encorajou os muçulmanos a ter uma visão mais global.

Embora antigos reinos buddhistas do sul e do sudeste asiático tenham recuperado suas independências em relação ao Ocidente, eles perderam a essência dhâmmica de suas identidades nacionais. Eles apenas mantiveram as cerimônias de Estado, que geralmente são mais feudais do que buddhistas. Eles aderiram cegamente a costumes antiquados, que são irrelevantes para a sociedade contemporânea.

Apesar do fato de o Sião [2] não ter sido dominado politicamente, ele o foi intelectual, cultural e educacionalmente. Os efeitos desse tipo de colonização são praticamente impossíveis de se reverter.

No leste da Ásia, o Buddhismo perdeu muito da sua real essência para o Confucionismo ou para o Xintoísmo, mesmo antes da chegada da influência ocidental.

O elevado espírito buddhista permanece na Ásia apenas em pequenas áreas restritas ao desenvolvimento individual ou local onde as necessidades humanas são elencadas a frente dos ganhos materiais ou econômicos. Em um nível nacional, muitas pessoas pensam apenas em termos de desenvolvimento econômico. Portanto, o rico torna-se mais rico e o pobre mantém-se assim, ou torna-se mais pobre. Isso é verdade para nações e indivíduos. E, claro, ninguém é feliz. Os sistemas de desenvolvimento social atuais levam a um abuso dos direitos humanos, aumentando a distância entre o rico e o pobre, degradação ambiental e destruição agressiva dos recursos naturais. Infelizmente, parece que os sistemas de desenvolvimento buddhistas ainda não se estabeleceram e, de maneira geral, as respostas das comunidades buddhistas têm sido insuficientes para conter esses elementos negativos.

Antes de tentar lidar com os problemas mencionados, devemos analisar nossas tradições buddhistas para verificar se essa preocupação global com a justiça social já existiu no passado para que possamos adotá-la de maneira significativa no presente e no futuro.

Em minha opinião, é bastante proveitoso examinar a tradição mitológica buddhista em relação aos reinados e ao “monarca universal” que governou para o bem-estar de todos. É bastante interessante também analisar como o mito foi levado em consideração pelos governantes buddhistas de gerações seguintes.

O Aggañña Sutta do Dīgha Nikāya começa apresentando um mundo ideal de existência natural e que dispensa quaisquer esforços. Etéreos, seres de luminosidade própria vivem felizes e não conhecem qualquer discriminação entre polos opostos como macho e fêmea, bem e mal, rico e pobre, governante e governado. A terra em si é feita de uma substância macia e comestível que parece com manteiga e é doce como mel.

Gradualmente, contudo, por causa do kamma restante de um ciclo mundano passado, essa Era Dourada tem seu fim. Durante um longo período de declínio, no mundo e em seus seres, a ganância, o apego, o sexo, o roubo, a violência e o assassinato são introduzidos. Finalmente, uma anarquia completa prevalece e, para que se pudesse colocar um fim a isso, os seres juntam-se para selecionar entre eles um rei para governar e manter a ordem. Esse é o Mahasommata, o Grande Eleito, e, em troca de ter de cumprir com seus deveres monárquicos, os seres concordam em pagá-lo uma porção de sua produção de arroz.

Esse é o mito do primeiro reino. O relato também relaciona a lenda de Cakkravartin [3] ou do Monarca Universal. Uma versão básica aparece no Cakkravati Sihanada Sutta, também do Dīgha Nikāya.

Esse texto, também, começa com a descrição de uma Era Dourada, o ponto inicial do ciclo mundano. Durante esse período, os seres possuíam lindos corpos, expectativa de vida de oito mil anos, e uma existência maravilhosa que dispensava quaisquer esforços. Desta vez, todavia, o Cakkravartin, cujo nome é Dalhanemi, está presente desde o início. Ele faz parte, de fato, da Era Dourada, dado que sua presença é o instrumento que mantém esse estado paradisíaco. Porque ele sabe o que é bom e governa através do Dhamma, pobreza, intenção maldosa, violência e transgressões não existem no seu reino.

Tradicionalmente, o Cakkravartin é retratado com um ser extraordinário. É dito que ele exibia as 32 marcas de um grande homem (Mahapurusa) e que seria dotado das sete joias, ou emblemas de realeza, sendo a mais importante a da Roda (cakka). No sutta, essa Roda magnífica aparece flutuando diante de Dalhanemi no começo de seu reinado, como um sinal de retidão [4]. Então, ela o conduz a uma grande conquista cósmica dos quatro continentes.

Ela o conduz ao leste, ao sul, ao oeste e ao norte, tão longe quanto os grandes oceanos. Por onde a Roda passa, ele não encontra qualquer resistência. O poder do seu Dhamma, simbolizado pela Roda (Dhammacakka), é tal que os reis locais imediatamente se submetem a ele. Finalmente sua Roda o conduz de volta à sua capital no centro do mundo, e lá ela fica, milagrosamente suspensa no ar acima dos palácios reais, como um emblema da realeza. Depois de muitos anos reinando em paz e um firme e próspero império, contudo, a Roda do Dhamma de Dalhanemi começa a afundar. Esse é um sinal de que o fim de seu reinado está próximo, o que está de acordo com a lei buddhista da impermanência (anicca). E, quando a Roda afunda totalmente na terra, o sábio rei confia seu trono para seu filho e aposenta-se desse mundo para viver uma vida ascética na floresta.

É importante notar que a Roda do Dhamma não é automaticamente passada de um Cakkravartin para o próximo. O filho de Dalhanemi precisa, por sua vez, mostrar que é merecedor de sua própria roda chamando-a a se apresentar através de sua própria retidão.  Esse fato estabelece o pano de fundo para o restante do mito, que, como a história do sutta anterior, traça a degradação do mundo e de seus seres.

Depois de uma longa sucessão de descendentes de Dalhanemi, que são perfeitos Cakkravartins, surge um rei que falha em seguir o Dhamma, e para o qual a Roda não aparece. Consequentemente, forma-se uma resistência ao seu reinado. Conflitos surgem, as pessoas falham em prosperar, o Monarca Universal falha em ajudá-los e uma coisa leva a outra, como é dito no Sutta: “Por ele não ter dado aos destituídos, a pobreza cresceu de forma predominante; da pobreza predominante, os roubos aumentaram; da difusão do roubo, a violência cresceu apressadamente; do aumento da violência, a destruição da vida se tornou comum; da frequência dos assassinatos, o período de vida dos seres e sua beleza, ambos, foram desperdiçados”.

O mito então segue traçando o declínio contínuo na qualidade e no período de vida dos seres, até que um estado de anarquia virtual é alcançado. Em relação a isso, o mito de Cakkravartin é bastante similar ao do Grande Eleito (Mahasommata).

Comparando os dois suttas, podem-se tirar diferentes conclusões. No primeiro, o Grande Eleito é chamado apenas quando a necessidade de um rei surge. Ele funciona com um artifício paliativo contra um agravamento da anarquia, mas a Era Dourada não requer e não conhece qualquer necessidade de um rei. No segundo, por outro lado, o governante é uma parte crucial da Era Dourada. Pela sua presença e seu reinar apropriado, ele assegura uma existência pacífica, próspera e idílica a todos, e ele continuará a fazê-lo por quanto tempo ele for honrado o suficiente para merecer a Roda do Dhamma, ou seja, por quanto tempo ele for o verdadeiro Cakkravartin, aquele que move a Roda do Dhamma. Uma conclusão que se pode tirar desses dois mitos é a de que nenhum deles tem fim na Era Dourada, mas cada um continua a descrever, de maneira inequívoca, o que acontece quando um governante não governa à altura do que seria o ideal.

A sugestão então é de que há, na verdade, dois tipos de governantes. O primeiro, um Cakkravartin extremamente maduro, que é justo e governa de acordo com o Dhamma, e como Dalhanemi, assegura a Era Dourada. De fato, há uma passagem do Buddha, no Anguttara Nikaya, que diz que: “O Monarca Universal, o correto e justo rei confia no Dhamma. Respeitando, reverenciando e honrando o Dhamma, com o Dhamma como seu modelo, ele provê para o apropriado bem-estar e proteção de seu povo”. O outro, talvez não tão merecedor do título de Cakkravartin, não é tão correto, falha em governar de acordo com o Dhamma, e é responsável por uma catástrofe cósmica, a degradação do mundo.

Esse dois mitos influenciaram imensamente os monarcas buddhistas no Sul e Sudeste Asiático. Contudo, na história, o imperador Ashoka da Índia antiga talvez tenha sido o único que realmente pode ser chamado de Cakkravartin, se aceitarmos a visão de mundo que prevalece atualmente. Ele foi o Monarca Universal que reinou o mais corretamente possível estendendo seu império sobre quase todo o subcontinente.

Os reis cingaleses, birmaneses e thailandeses não foram, de fato, Cakkravartins, mas todos eles tentaram imitar o Grande Imperador, e tentaram seu melhor, pelo menos em teoria, em ser justos e corretos. Na prática, contudo, é questionável se eles efetivamente “respeitaram, reverenciaram e honraram o Dhamma, usando o Dhamma como seu modelo, como um sinal, soberano, provendo apropriadamente bem-estar e proteção às pessoas”.

 


[1] World Council of Churches

[2] Sião é o nome utilizado por estrangeiros (exônimo) à Thailândia antes de 24 de junho de 1939 e novamente de 8 de setembro de 1945 a 20 de julho de 1949.

[3] Também chamado de aquele que movia a Roda.

[4] A palavra em inglês é “righteousness”, portanto deve ser entendida como relacionada à virtude e justiça.

 


Traduzido por Oscar Rodrigues Simões
para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
© da tradução, 2012 Edições Nalanda


Nota: “Solucionando Problemas Globais
 marca o início do INEB (Rede Internacional de Buddhistas Engajados) e discorre sobre as questões que o Buddhismo deve enfrentar para se tornar relevante em termos sociais globais. Sulak Sivaraksa é um dos principais líderes e articuladores do Buddhismo Engajado. O INEB foi estabelecido em 1989 com líderes buddhistas como o 14. Dalai Lama, o monge vietnamita e ativista pela paz Thich Nhat Hanh e o monge Theravada Maha Ghosananda, como seus patronos. Sulak se considera um aluno de Tan Ajahn Buddhadasa e é um amigo do Centro Nalanda.


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