~ Ajahn Chah ~ 

[1] KĀMOGHA … o rio da sensorialidade: afundado em cores, sons, cheiros, sabores, nas sensações corporais. Afundados porque apenas olhamos para o exterior e não olhamos para dentro. As pessoas não olham para si mesmas, olham apenas para as outras. Podem ver todas as outras, mas não a si mesmas. Não é uma coisa muito difícil de se fazer, mas simplesmente as pessoas não tentam.

Por exemplo, olhar para uma mulher bonita. O que isso faz para você? Assim que você vê o rosto, você vê todo o resto. Você percebe isso? Basta olhar para dentro de sua mente. O que é que você gosta de ver em uma mulher? Assim que os olhos veem apenas um pouco, a mente vê todo o resto. Por que é tão rápido?

É porque estamos submersos na “água”. Estamos afundados, pensamos nisso, fantasiamos sobre isso, estamos agarrados a isso. É como ser um escravo… outra pessoa tem controle sobre nós. Quando nos diz senta, temos de nos sentar; quando nos diz para andar, temos de andar… não podemos desobedecer-lhe porque somos seus escravos. Ser escravizado pelos sentidos é a mesma coisa. Por muito que tentemos, parece que não conseguimos nos afastar disso. E se esperamos que os outros o façam por nós, estaremos realmente em apuros. Temos de o afastar por nós próprios.

Por isso o Buddha nos legou a prática do Dhamma, a transcendência do sofrimento. Tome o Nibbāna [2], por exemplo. O Buddha era completamente desperto, então, por que ele não descreveu o Nibbāna em detalhes? Por que ele só disse que devemos praticar e descobrir por nós mesmos? Por que é assim? Ele não deveria ter explicado como é o Nibbāna?

“O Buddha praticou, desenvolvendo as perfeições ao longo de incontáveis eras, para o bem de todos os seres sencientes. Então, por que ele não mostraria o Nibbāna para que todos pudessem vê-lo e também atingi-lo?” Algumas pessoas pensam assim: “Se o Buddha realmente soubesse, ele nos contaria. Por que ele deveria manter alguma coisa escondida?”

Na realidade, esse tipo de pensamento está errado. Não podemos ver a verdade dessa maneira. Devemos praticar, devemos cultivar, de maneira a ver. O Buddha apenas indicou o caminho para desenvolver a sabedoria, isso é tudo. Ele disse que nós mesmos devemos praticar. Quem quer que pratique alcançará a meta.

Mas o caminho que o Buddha ensinou vai contra nossos hábitos. Ser comedido ou estar em restrição… não gostamos dessas coisas, então dizemos: “Mostre-nos o caminho; mostre-nos o caminho para o Nibbāna para que as pessoas que gostam de facilidades, como nós, possam ir lá também”. É a mesma coisa com a sabedoria. O Buddha não pode lhe mostrar a sabedoria; não é algo que lhe possa ser simplesmente dado. O Buddha pode lhe mostrar o caminho para o desenvolvimento da sabedoria, mas, se você desenvolvemuito ou somente um pouco, isso depende de cada um. O mérito e as virtudes acumuladas das pessoas são naturalmente diferentes.

Apenas olhe o objeto material como esses leões de madeira na entrada. As pessoas chegam e parecem não concordar. Uma pessoa diz: “Oh, que bonitos”, e outra diz: “Que revoltante!”. Um mesmo leão de madeira: belo e feio ao mesmo tempo. Isto é suficiente para saber como as coisas são.

Por isso, algumas vezes a realização do Dhamma é lenta, outras vezes é rápida. O Buddha e seus discípulos eram parecidos no fato de que todos tinham de praticar por si mesmos. Mesmo assim, eles confiavam em seus professores para aconselhá-los e fornecer as técnicas na prática.

Agora, quando ouvimos o Dhamma podemos querer ouvi-lo até que todas as nossas dúvidas sejam esclarecidas, mas elas nunca serão esclarecidas apenas por ouvir. A dúvida não é superada simplesmente por ouvir ou pensar, mas devemos primeiramente limpar a mente. Limpar a mente significa revisar nossa prática. Não importa quanto tempo ouvirmos um professor falando a respeito da verdade, não poderemos conhecer ou ver tal verdade apenas por ouvir. Se o fizermos será apenas por suposição ou conjectura.

No entanto, mesmo que simplesmente ouvir o Dhamma não possa conduzir à realização, ainda assim é algo benéfico. Havia, na época do Buddha, aqueles que realizaram o Dhamma, inclusive a mais alta realização – o estado de arahant – ao ouvir um discurso. Mas essas pessoas já estavam altamente desenvolvidas, suas mentes já entendiam até certo ponto. É como uma bola de futebol. Quando uma bola de futebol é inflada com ar, ela se expande. Agora o ar nessa bola faz pressão para sair, mas não há nenhum buraco para que ele assim o faça. Tão logo uma agulha perfure a bola de futebol o ar sai dela.

É o mesmo aqui. As mentes daqueles discípulos que foram iluminados enquanto ouviam o Dhamma estavam assim. Enquanto não havia um catalisador para causar a reação, esta “pressão” estava dentro deles, como na bola de futebol. A mente ainda não estava livre por causa dessa coisa muito pequena a esconder a verdade. Assim que ouviram o Dhamma isso atingiu o ponto certo, a sabedoria surgiu. Eles imediatamente entenderam, imediatamente desapegaram e compreenderam o verdadeiro Dhamma. Foi assim. Foi fácil. A mente verticalizou a si mesma. Ela mudou, ou virou, de uma perspectiva para outra. Você poderia dizer que estava longe, ou poderia dizer que estava muito próximo.

Isso é algo que devemos fazer para nós mesmos. O Buddha foi somente capaz de dar técnicas sobre como desenvolver a sabedoria, tal como os professores nos dias de hoje. Eles dão palestras sobre o Dhamma, eles falam sobre a verdade, mas eles não podem fazer disso a nossa própria verdade. Há uma “película” obscurecendo-a. Vocês podem dizer que estamos imersos, imersos nas águas. Kāmogha – a “enchente” de sensorialidade. Bhavogha – a “enchente” do tornar-se.

A palavra “tornar-se” (bhava) significa “a esfera do nascimento”. O desejo sensorial nasce por imagens, sons, sabores, cheiros, sentimentos e pensamentos. Identificando-se com essas coisas, a mente se mantém fixa e fica presa à sensorialidade.

Alguns praticantes se entediam, se enchem e ficam cheios de preguiça com a prática. Você não precisa olhar muito longe. Apenas repare como as pessoas não conseguem se concentrar no Dhamma, mas caso sejam repreendidas elas acabam se agarrando a isso indefinidamente. Elas podem ser repreendidas no começo, ou até mesmo no fim do Retiro das Chuvas, mas ainda assim não se esquecem. Elas se lembrarão por toda a sua vida caso isso tenha ido fundo o suficiente.

Mas quando chegamos ao ensinamento do Buddha, dizendo-nos para sermos moderados, contidos, e praticar de maneira diligente… por que as pessoas não guardam essas coisas em seus corações? Por que continuam se esquecendo delas? Não precisam ir muito longe, apenas olhem para nossa prática neste momento. Por exemplo, estabelecer padrões tais como: após as refeições, enquanto lavam suas tigelas, não batam papo! Tudo isso parece estar muito além das pessoas. Embora saibamos que a tagarelice não é particularmente útil e nos deixa em uma relação embaraçosa com a sensorialidade… as pessoas continuam a falar. Muito em breve, elas começam a discordar e, eventualmente, entram em brigas e discussões. Não há nada mais do que isso.

Ora, isso não é nada sutil ou refinado, é bem básico. Ainda assim as pessoas não parecem realmente fazer muito esforço a respeito disso. Elas dizem que querem enxergar o Dhamma, mas elas querem enxergá-lo nos seus próprios termos, elas não querem seguir o caminho da prática. É o mais longe que conseguem ir. Todas essas normas de prática são meios hábeis para penetrar e enxergar o Dhamma, mas as pessoas não praticam de forma adequada.

Dizer “prática real” ou “prática ardente” não significa necessariamente que você tem que gastar um monte de energia – apenas coloque algum esforço na mente, fazendo algum esforço em relação a todos os sentimentos que surgirem, especialmente aqueles que estão mergulhados na sensorialidade. Esses são os nossos inimigos.

Mas as pessoas parecem não conseguir fazer isso. Cada ano, com a aproximação do fim do Retiro das Chuvas, fica cada vez pior. Alguns dos monges atingiram o limite de sua resistência, o “limite de suas forças”. Quanto mais nos aproximamos do fim do Retiro das Chuvas pior eles ficam, eles não têm consistência em suas práticas. Eu falo sobre isso todos os anos e as pessoas ainda não parecem se lembrar. Estabelecemos um determinado padrão e em menos de um ano ele está desmoronando. Quase terminado o Retiro e ela começa – a conversa, a socialização e tudo o mais. Tudo se esfacela. Essa é a tendência.

Aqueles que estão realmente interessados na prática devem considerar por que isso é assim. É porque as pessoas não vêem os resultados adversos dessas coisas. Quando somos aceitos na comunidade dos monges buddhistas vivemos de modo simples. No entanto, alguns largam as vestes para ir para o mundo, onde as balas passam por eles todos os dias – preferem isso assim mesmo. Querem realmente ir. O perigo os rodeia de todos os lados e mesmo assim estão preparados para ir. Por que eles não veem o perigo? Eles estão preparados para morrer pelas armas, mas ninguém quer morrer no desenvolvimento da virtude. Ver isto é o suficiente… Este é o porquê de serem escravos, nada mais. Veja este tanto e você saberá sobre tudo. As pessoas não veem o perigo.

Isso é realmente incrível, não é? Você pensa que as pessoas poderiam compreender isso, mas não podem. Se elas não podem compreender mesmo assim, então não há nenhuma maneira pela qual elas possam escapar. Elas estão determinados a rodopiar pelo samsāra. Assim é como as coisas são. Apenas falando sobre coisas simples como essa podemos começar a entender.

Se você fosse perguntar a elas: “Por que nasceram?”, elas provavelmente teriam muitas dificuldades em responder, porque não conseguiriam ver isso. Elas afundariam no mundo dos sentidos e afundariam no tornar-se (bhava) [3]. Bhava é a esfera de nascimento, nosso lugar de nascimento. Colocando de maneira simples, de onde os seres nascem? Bhava é a condição preliminar para o nascimento. Onde quer que o nascimento aconteça, isso é bhava.

Por exemplo, suponha que temos um pomar de macieiras que particularmente gostamos. Isso é um bhava para nós se não refletirmos com sabedoria. Como assim? Suponha que nosso pomar contenha uma centena ou milhares de macieiras… Não importa realmente que tipo de árvore elas sejam contanto que consideremos que sejam as “nossas” árvores… então iremos “nascer” como “vermes” em cada uma destas árvores. Fixamos um forte olhar em cada uma delas e, apesar de nossos corpos humanos ainda estarem dentro de casa, lançamos nossos “tentáculos” em cada uma dessas árvores.

Agora, quando é que podemos saber que é bhava? É um bhava (esfera da existência) pelo nosso apego à ideia de que essas árvores são nossas, que o pomar é nosso. Se alguém pegar num machado e cortar uma das árvores, o dono desse espaço “morre” com a árvore. Ele fica furioso e vem para colocar as coisas no seu lugar, talvez para lutar ou mesmo para matar. Aquela rixa é o “nascimento”. A “esfera de nascimento” é o pomar de árvores ao qual nos agarramos como se fossem nossas. “Nascemos” bem no ponto onde as consideramos nossas, nascidas de bhava. Mesmo que tivéssemos mil macieiras, se alguém cortasse apenas uma seria como cortar o proprietário.

O que quer que agarremos, nascemos exatamente lá, existimos exatamente lá. Nascemos assim que “sabemos”. Isso é saber através do não saber: sabemos que alguém cortou uma de nossas árvores, mas não sabemos que não são realmente nossas. Isso é chamado de “saber através do não saber”. Somos conectados para nascer naquele bhava.

Vatta, a roda da existência condicionada, opera dessa forma. As pessoas se agarram a bhava, dependem de bhava. Se valorizam bhava, isso é nascimento. E se sofrem pela mesma coisa, isso também é nascimento. Enquanto não conseguirmos nos libertar, ficaremos encalhados no círculo do samsāra, girando ao redor como uma roda. Olhe para isso, contemple isso. No que quer que nos agarremos como sendo nós ou nosso, esse é um lugar para o nascimento.

Deve existir um bhava, uma esfera de nascimento, antes do nascimento acontecer. Entretanto, o Buddha disse, seja o que for que você tenha, não “tenha” isso. Deixe isso acontecer, mas não o torne seu. Vocês devem entender este “ter” e “não ter”, conhecer a verdade, e não se afundar no sofrimento.

O lugar onde você nasceu; você quer voltar e nascer novamente, não é? Todos vocês, monges e noviços, vocês sabem de onde vocês nasceram? Vocês querem voltar, não é? Aqui mesmo, olhem para isso. Todos vocês fiquem prontos. Quanto mais próximos do final do retiro, mais começarão a se preparar para voltar e nascer lá.

Realmente, vocês podem pensar que as pessoas podem apreciar isso, viver na barriga de uma pessoa. Seria isso desconfortável? Apenas observem, apenas ficarem em seus kutis por um dia é suficiente. Fechem todas as portas e janelas e já estarão se sentindo sufocados. E como seria permanecer por nove ou dez meses dentro de uma barriga? Pensem sobre isso.

As pessoas não veem os riscos nas coisas. Pergunte a elas por que estão vivendo, ou por que nascem, e elas não têm ideia. Você ainda quer voltar para lá? Por quê? Deveria ser óbvio, mas você não vê. Por que não pode ver? O que o prende, o que você está segurando? Pense por si mesmo.

É porque existe uma causa para o tornar-se e para o nascimento. Basta dar uma olhada no bebê preservado no salão principal, você já o viu? Ninguém fica alarmado com isso? Não, ninguém está alarmado com isso. Um bebê acomodado na barriga de sua mãe é como aquele bebê preservado. E ainda assim você quer fazer mais dessas coisas, e até quer voltar para se deleitar nisso. Por que você não vê o perigo em tal situação e os benefícios da prática?

Entende? Isso é bhava. A raiz é logo ali, ela gira em torno disso. O Buddha ensinou a contemplar esse ponto. As pessoas pensam sobre isso, mas ainda não vêem. Todas estão se preparando para ir para lá novamente. Elas sabem que não seria muito confortável lá, que colocar seus pescoços numa armadilha é realmente desconfortável, mas elas ainda assim querem acomodar-se lá dentro. Por que elas não entendem isso? É neste ponto que a sabedoria vem nos ajudar, neste ponto devemos contemplar.

Quando eu falo assim as pessoas dizem: “Se fosse esse o caso, então todo o mundo teria de se tornar monge… e então, como seria o mundo capaz de funcionar?” Você nunca terá todo o mundo a tornar-se monge, então não se preocupe. O mundo está aqui por causa de seres iludidos, por isso, este não é um assunto trivial.

Eu me tornei noviço aos nove anos. Comecei a praticar desde então. Mas naquela altura eu não sabia realmente do que se tratava. Descobri quando me tornei um monge. Depois de me tornar um monge passei a ser tão cauteloso. Os prazeres sensoriais a que as pessoas se entregavam não me pareciam assim tão divertidos. Eu via o sofrimento neles. Era como ver uma deliciosa banana, que eu sabia que era muito doce, mas que eu também sabia estar envenenada. Não importava o quão doce ou tentadora era, se eu a comesse, morreria. Eu tecia as minhas considerações desta forma todas as vezes… De cada vez que eu quisesse “comer uma banana” veria o “veneno” mergulhado dentro dela, e assim, eventualmente, eu poderia retirar o meu interesse daquelas coisas. Agora, nesta idade, essas coisas não são de todo tentadoras.

Algumas pessoas não veem o “veneno”; algumas o veem e ainda assim querem arriscar a sorte. “Se sua mão não está ferida, não toque no veneno, pois ele pode respingar na ferida”. Eu considerava arriscar a sorte também. Quando eu já vivia como monge por cinco ou seis anos, eu pensava no Buddha. Ele praticou por cinco ou seis anos e estava pronto, mas eu ainda estava interessado na vida mundana, de modo que eu pensava em voltar para ela. “Talvez eu deva ir e ‘construir o mundo’ por um tempo; eu ganharia alguma experiência e aprendizado. Mesmo o Buddha teve seu filho, Rāhula. Estarei sendo talvez muito rígido?” Eu me sentei e considerei isso por um tempo, até eu entender: “Sim, tudo isso está certo, mas estou com medo de que este ‘Buddha’ não seja como o último”. Uma voz em mim disse: “Estou com medo de que este ‘Buddha’ afunde na lama, e não seja como o outro”. E assim eu resisti a esses pensamentos mundanos. Do meu sexto ou sétimo retiro das chuvas até o vigésimo, eu verdadeiramente tive que travar uma luta. Nos dias de hoje eu pareço ter ficado sem balas. Mas eu estive atirando por um longo tempo. Eu só temo que vocês, jovens monges e noviços, tendo ainda tanta munição, possam querer ir experimentar suas armas. Antes disso, considerem cuidadosamente primeiro.

Falando do desejo sensorial, ele é difícil de resistir. É realmente difícil vê-lo como ele é. Devemos utilizar os meios hábeis. Considere os prazeres sensoriais como comer um pedaço de carne que fica preso entre seus dentes. Antes de terminar a refeição você tem que encontrar um palito para removê-lo. E, quando a carne sai, você sente algum alívio por um tempo – talvez você até pense em não comer mais carne. Mas, quando você a vê novamente, você não pode resistir a ela. Você come um pouco mais e, em seguida, ela fica presa mais uma vez. Quando ela fica presa, você tem de tirá-la novamente, o que dá um pouco de alívio, uma vez mais, até que você coma mais um pouco de carne… Isso é tudo o que existe com relação a isso. Os prazeres sensoriais funcionam do mesmo modo, nada melhor que isso. Quando a carne fica presa em seus dentes, há desconforto, então você pega um palito e a remove, experimentando um pouco de alívio. Não há nada além disso no desejo sensorial…. A pressão se acumula até que você a libere um pouco … Oh! Isso é tudo o que existe com relação a isto. Eu não entendo porque todo o alarido.

Eu não aprendi isso com outras pessoas. Isso tudo me ocorreu durante a prática. Eu me sentava em meditação e refletia sobre como o prazer sensorial é como um ninho de formigas vermelhas [4]. Alguém pega um graveto e cutuca o ninho até que as formigas saiam correndo, subindo pelo graveto até suas faces, mordendo seus olhos e orelhas. E ainda assim as pessoas não percebem os problemas que causam a si mesmas.

Entretanto, isso não está além da nossa capacidade. Nos ensinamentos do Buddha é dito que se nós percebermos o dano causado por algo, não importa o quão bom ou prazeroso possa ser, saberemos que é prejudicial. Mas se ainda não percebemos o dano que algo pode causar nós simplesmente assumimos que aquilo é bom. Se ainda não percebemos o prejuízo que nos causa, não podemos escapar.

Você já percebeu que não importa o quão sujo seja, as pessoas ainda assim apreciam. Esse tipo de “trabalho” não é limpo, mas você nem precisa pagar as pessoas para que o façam, já que elas se voluntariam agradecidamente. Em outros tipos de trabalhos sujos, mesmo que você pague bem, as pessoas se recusam. Contudo, para esse trabalho elas se dispõem alegremente e você nem mesmo precisa pagá-las. É um trabalho sujo. Porque, então, as pessoas apreciam-no? Como é possível dizer que as pessoas são inteligentes quando elas se comportam dessa maneira? Pense sobre isso.

Você já notou os cães no mosteiro aqui? Existem muitos deles. Eles correm pra todo lado, a morder uns aos outros, e alguns deles ficam até mesmo mutilados. Em um mês, eles estarão na mesma. Assim que um dos menores entra no meio os maiores vão todos contra ele, que vem gritando, arrastando sua pata. Quando o grupo corre, ele vai atrás em seguida. Ele é só um pequenino, mas pensa que vai ter a sua oportunidade um dia. Eles mordem sua pata e isso é tudo o que ele ganha pela confusão. Durante toda a estação de acasalamento, ele sequer terá uma chance. Você pode ver isso por si mesmo aqui no mosteiro. Esses cães quando eles correm ao redor uivando em grupos… Eu imagino se eles fossem seres humanos eles estariam cantando! Eles acham que é divertido estarem cantando, mas eles não têm a menor ideia do porquê fazem isso, eles simplesmente seguem cegamente seus instintos.

Pense nisso com cuidado. Se você realmente quer praticar, você deve compreender seus sentimentos. Por exemplo, entre os monges, noviços e laicos, com quem você deveria se socializar? Se você se associa com pessoas que falam muito, elas induzem você a falar muito também. A sua própria quota já é suficiente, a delas é ainda mais… coloque-as juntas e elas explodem! As pessoas gostam de socializar com aqueles que tagarelam muito e falam de coisas fúteis. Elas conseguem sentar e ouvir isso por horas. Quando se trata de ouvir o Dhamma, falando sobre a prática, não há muito para ser ouvido. Por exemplo, quando eu vou dar uma palestra do Dhamma: assim que eu começo… “Namo Tassa Bhagavato” [5]… todas elas já estão com sono. Elas não absorvem nada da palestra. Quando eu chego no “Evam” todos abrem os olhos e acordam. Toda vez que há uma palestra do Dhamma as pessoas caem no sono. Como elas vão conseguir algum benefício assim?

Cultivadores reais do Dhamma vão sair de uma palestra se sentindo inspirados e elevados, eles aprendem algo. A cada seis ou sete dias o professor dá outra palestra, constantemente impulsionando a prática.

Esta é sua chance agora que você está ordenado. Existe apenas esta única chance, então mantenha um olhar atento. Olhe para as coisas e considere qual o caminho que você deve escolher. Você é independente agora. Onde você irá ao sair daqui? Você está numa encruzilhada entre a caminho mundano e do caminho do Dhamma. Qual caminho você vai escolher? Você pode tomar qualquer caminho, este é o momento de decidir. A escolha a fazer é sua. Se você deve ser libertado é esta a questão.

Notas de Rodapé

[1] Dada para a assembleia de monges após a recitação do Patimokkha, em Wat Pah Pong, durante o retiro das chuvas de 1978.

[2] Nibbāna – o estado de libertação de todos os estados condicionados.

[3] A palavra tailandesa para bhava – “pop” – teria sido um termo familiar para o público de Ajahn Chah. É geralmente entendida como “esfera de renascimento”. O uso de Ajahn Chah da palavra aqui, é pouco convencional, enfatizando a aplicação mais prática do termo.

[4] Ambas as formigas vermelhas e seus ovos são utilizados para a alimentação no nordeste da Tailândia, de modo que tais ataques a seus ninhos não eram tão incomuns.

[5] A primeira linha das tradicionais palavras em pāli de homenagem ao Buddha, recitadas antes de dar uma palestra formal de Dhamma. Evam é a tradicional palavra em pāli para terminar uma conversa.


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright
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Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Tailândia.


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