Todos vocês têm acreditado no buddhismo por muitos anos até agora, escutando os ensinamentos buddhistas provenientes de muitas fontes, especialmente de vários monges e professores. Em alguns casos, o Dhamma é exposto em termos muito vagos e gerais, tornando-se difícil saber como colocá-lo em prática na vida diária; em outros, é dado numa linguagem elevada ou num jargão especial, a ponto de as pessoas acharem difícil de entender, especialmente se o ensinamento é dado muito literalmente a partir das escrituras. Por fim, existe um ensinamento do Dhamma de forma mais equilibrada, nem tão geral nem tão esotérica, exatamente para o ouvinte entender e praticar, para se beneficiar pessoalmente do Ensinamento. Hoje, eu gostaria de partilhar com vocês o ensinamento da forma que tenho geralmente utilizado para instruir meus discípulos; ensinamentos que espero possam ser de benefício pessoal a todos vocês que estão me escutando hoje.
Aquele que Deseja Alcançar o Buddha-Dhamma
Quem quiser alcançar o Buddha-Dhamma deve primeiramente ter fé e confiança como base. Deve entender o significado de Buddha-Dhamma da seguinte forma:
BUDDHA: significa o conhecedor da Verdade, que tem pureza, clareza e paz no seu coração.
DHAMMA: é a mente – são as características de pureza, clareza e paz que surgem da moralidade, concentração e sabedoria.
Portanto, quem alcança o Buddha-Dhamma é quem cultiva e desenvolve moralidade, concentração e sabedoria dentro de si.
Trilhando o Caminho do Buddha-Dhamma
Naturalmente, as pessoas que querem alcançar seu lar não são aquelas que meramente se sentam e pensam na viagem. Eles devem imediatamente iniciar o processo de caminhar passo a passo, e seguir na direção correta, para, finalmente, alcançar seu lar. Se elas tomarem o caminho errado, podem eventualmente se encontrar em dificuldades, tais como as de atravessar pântanos ou outros obstáculos que sejam difíceis de contornar. Ou podem entrar em situações perigosas, enveredando por uma direção errada, sendo possível que nunca alcancem seu lar.
Entretanto, aqueles que chegaram em casa podem relaxar e dormir confortavelmente – o lar é um lugar de conforto para o corpo e a mente. Agora, eles realmente alcançaram o lar. Mas, se o viajante somente passou em frente da sua casa, ou somente caminhou em torno dela, ele não receberá nenhum dos benefícios de ter percorrido todo o caminho até o lar.
Da mesma forma, trilhar o caminho para alcançar o Buddha-Dhamma é algo que cada um de nós deve fazer por si mesmo, individualmente, porque ninguém pode fazer isto por nós. E devemos viajar ao longo do caminho correto da moralidade, concentração e sabedoria até encontrarmos as bênçãos da pureza, clareza e tranquilidade da mente, que são os frutos obtidos por trilhar o caminho. Entretanto, se alguém tem somente o conhecimento de livros e escrituras, sermões e suttas, isto é, somente o conhecimento de mapas ou planos para a viagem, mesmo em centenas de vidas nunca conhecerá a pureza, clareza e tranquilidade da mente. Em vez disso, perderá seu tempo, e nunca obterá os benefícios reais da prática. Mestres são aqueles que somente apontam na direção do caminho. Após escutar os mestres, se vamos ou não trilhar o caminho praticando nós mesmos, e portanto colher os frutos da prática, isso depende exclusivamente de cada um de nós.
Outro modo de ver isto é comparar a prática com um vidro de remédio que um médico receita para seu paciente. No vidro, estão escritas instruções detalhadas sobre como tomar o remédio, mas, não importa quantas centenas de vezes o paciente leia as instruções, ele irá morrer se isto for tudo que ele fizer. Ele não obterá nenhum benefício do remédio. E antes de morrer ele pode reclamar severamente que o médico não é bom, que o remédio era ineficaz! Ele pensará que o médico é uma farsa ou que o remédio não era bom, embora tenha somente gasto seu tempo examinando a garrafa e lendo as instruções; não seguiu a recomendação do médico e não tomou o remédio.
Entretanto, se o paciente seguisse as instruções do médico e tomasse o remédio regularmente conforme prescrito, ele se recuperaria. E, se ele estiver muito doente, terá necessariamente que tomar muito remédio; e se estiver somente um pouco doente, somente um pouco de remédio será necessário para curá-lo. O fato de termos que tomar muito remédio frequentemente é resultado da severidade da nossa doença e do que é necessário para equilibrar o corpo. Isto é apenas natural, e você pode ver isto por si mesmo se observar atentamente.
Médicos prescrevem remédios para eliminar doenças do corpo; os ensinamentos do Buddha são prescritos para curar as doenças da mente, para conduzi-la ao seu estado natural saudável. Assim, o Buddha pode ser considerado um médico que prescreve a cura para as doenças da mente; ele é, de fato, o melhor médico do mundo.
Doenças mentais são encontradas em cada um de nós, sem exceção. Quando você vê essas doenças mentais, não faz sentido tomar o Dhamma como apoio, como remédio para curar suas doenças? Pense sobre isto! Não se anda pelo caminho do Buddha-Dhamma com o corpo. Você deve viajar com a mente para alcançar os benefícios. Nós podemos dividir esses caminhantes em três grupos:
Primeiro nível: este é constituído por aqueles que entendem que devem praticar por si mesmos, e sabem como fazer isso. Eles tomam o Buddha, Dhamma e Sangha como seu refúgio e resolvem praticar diligentemente de acordo com os ensinamentos. Estas pessoas descartaram o seguir meramente os costumes e tradições; em vez disso, usam a razão para examinar por si mesmas a natureza do mundo. Este é o grupo dos “fiéis buddhistas”.
Nível médio: este grupo é constituído por aqueles que têm praticado até terem uma fé inquebrantável nos ensinamentos do Buddha, do Dhamma e da Sangha. Eles também penetraram no entendimento da verdadeira natureza de todas as formações compostas. Estas pessoas gradualmente reduziram a fixação e o apego. Eles não se agarram às coisas, e suas mentes alcançaram um profundo entendimento do Dhamma. Dependendo do grau de não-apego e sabedoria, eles são progressivamente conhecidos como “Os que entraram na Correnteza”, “Uma Vez-Retornantes” e “Não-Retornantes”, ou simplesmente, “Os Nobres”.
Nível mais alto: este é o grupo daqueles cuja prática os levou ao corpo, fala e mente do Buddha. Eles estão acima do mundo, livres do mundo, e livres de todo apego e fixação. Eles são conhecidos como “Arahants” ou “Os Libertos”, o mais alto nível dos “Nobres”.
Como Purificar a Própria Moralidade
“Moralidade” é restringir e disciplinar o corpo e a fala, e isto é também conhecido como “virtude”. No nível formal, ela é dividida em classes de preceitos para pessoas laicas e para monges e monjas. Entretanto, para falar em termos gerais, existe uma característica básica – esta é a intenção. Quando somos cuidadosos, atenciosos ou concentrados, nós temos intenção correta. Praticando a auto recordação, concentração e atenção nós geramos uma boa moralidade. É natural que, quando vestimos roupas sujas e nossos corpos estão sujos, nossas mentes também se sintam desconfortáveis e deprimidas. Entretanto, se mantemos nossos corpos limpos, e vestimos roupas limpas, novas, isto tornará nossas mentes claras e alegres. Assim também, quando a moralidade não é mantida, nossas ações do corpo e da fala são sujas, e isto é a causa que torna a mente infeliz, tensa e pesada. Nós estamos afastados da prática correta, e isto impede a entrada da essência do Dhamma em nossas mentes. As ações corporais e a fala saudáveis dependem da mente corretamente treinada, já que a mente organiza o corpo e a fala, portanto, devemos praticar continuamente o treinamento das nossas mentes.
A Prática do Treinamento em Concentração
O treinamento em concentração é a prática para tornar a mente firme e estável. Isto provoca a pacificação da mente. Normalmente, nossas mentes destreinadas são móveis e inquietas, difíceis de controlar e dirigir. A mente segue de forma selvagem as distrações dos sentidos, como a corrente de água em seu leito busca o nível mais baixo. Agricultores e engenheiros, contudo, sabem como controlar a água, e isto é de grande valor para a humanidade. Os homens são inteligentes, eles sabem como represar a água, fazer grandes reservatórios e canais – tudo isso apenas para canalizar a água e torná-la melhor utilizável. Além disso, a água represada se torna uma fonte de energia elétrica, trazendo os benefícios adicionais proporcionados pelo controle do seu fluxo, como a iluminação. Cuida-se para que a água não se movimente de forma descontrolada, eventualmente transformando-se em pequenas poças, e perdendo-se sua utilidade.
Assim, também, a mente que é represada e controlada, treinada constantemente, será de um benefício incomensurável. O próprio Buddha disse: “A mente que foi controlada proporciona a verdadeira felicidade; portanto, treinem bem suas mentes para os maiores benefícios”. Da mesma forma, os animais que vemos em torno de nós – elefantes, cavalos, bois, búfalos, etc. – devem ser treinados antes para que possam ser úteis para o trabalho; somente depois disso sua força irá nos beneficiar.
Da mesma forma, a mente que foi treinada trará muitas vezes mais bênçãos do que uma mente não-treinada. O Buddha e seus Nobres Discípulos começaram todos da mesma forma que nós – com mentes não-treinadas; mas agora vejam como eles se tornaram objeto de reverência para todos nós, e vejam quanto benefício podemos obter através do seu ensinamento. Na verdade, vejam quanto benefício esses homens trouxeram para todo o mundo através do treinamento das suas mentes, até alcançarem a libertação final. A mente controlada e disciplinada é mais bem equipada para nos ajudar em todas as profissões, em todas as situações. A mente disciplinada manterá a vida equilibrada, tornará o trabalho mais fácil, e fará a razão crescer e governar nossas ações. Finalmente, nossa felicidade aumenta à medida que seguimos o correto treinamento da mente.
O treinamento da mente pode ser feito de muitos modos, com muitos métodos diferentes. O método mais utilizado, e que pode ser praticado por todos os tipos de pessoas, é conhecido como “consciência da respiração”. É o desenvolvimento da consciência na inspiração e na expiração. Neste monastério, nós concentramos nossa atenção na ponta do nariz, e desenvolvemos a atenção na entrada e saída da respiração com o mantra “BUD-DHO”. Enquanto fazemos a meditação andando, tanto quanto durante a meditação sentada, mantemos constante vigilância às inspirações e expirações tais como são sentidas na ponta do nariz, marcando cada uma delas com a nota mental BUD-DHO. Se o meditante quiser usar outra palavra, ou simplesmente estar consciente do ar se movendo para dentro e para fora, também está correto. Ajuste a prática para combinar com você. O fator essencial da meditação é que a consciência da respiração seja mantida no momento presente, de forma que se esteja consciente da inspiração e da expiração no momento em que ocorrem. Esta prática de meditação deve ser feita tão continuamente quanto possível, para que possa gerar frutos. Não medite por pouco tempo num dia, para, então, em uma ou duas semanas, ou até em um mês, meditar novamente. Isto não trará resultados.
O Buddha disse para praticarmos sempre, para praticarmos diligentemente, isto é, para sermos o mais constantes que pudermos na prática do treinamento mental. Para praticar meditação devemos também encontrar um local sossegado e agradável, livre de distrações. Em jardins, ou à sombra de árvores no nosso quintal, ou onde possamos ficar sozinhos, são lugares convenientes. Se formos monges ou monjas, devemos encontrar uma cabana conveniente, uma floresta tranquila ou uma caverna. As montanhas oferecem lugares excepcionalmente convenientes para a prática. Em qualquer caso, onde quer que estejamos, devemos fazer um esforço para estarmos continuamente atentos à inspiração e à expiração. Se a atenção se afasta para outras coisas, tente empurrá-la de volta para o objeto de concentração. Tente afastar todos os outros pensamentos e preocupações. Não pense em nada – apenas observe a respiração. Se estivermos conscientes dos pensamentos, tão logo eles surjam, e os afastarmos diligentemente, retornando ao objeto da meditação, a mente se tornará mais e mais quieta. Quando a mente estiver pacificada e concentrada, libere-a da respiração como objeto de concentração. Agora, comece a examinar o corpo e a mente como parte dos cinco agregados: a forma material, sensações, percepções, formações mentais e consciência. Examine estes cinco agregados conforme eles vêm e vão. Você verá claramente que eles são impermanentes, que esta impermanência os torna insatisfatórios e indesejáveis, e que eles vêm e vão por si mesmos – não há um “eu” dirigindo as coisas. Somente se encontra a natureza se movendo de acordo com causa e efeito. Todas as coisas do mundo se incluem nas características de instabilidade, de insatisfatoriedade e de não ter um ego ou alma permanente. Vendo a totalidade da existência por esta luz, o apego e a fixação aos agregados se reduzirão gradualmente. Isto é porque vemos as características verdadeiras do mundo. Chamamos a isto de “despertar da sabedoria”.
O Despertar Da Sabedoria
Sabedoria é ver a verdade das várias manifestações do corpo e da mente. Quando utilizamos nossa mente controlada, treinada e concentrada para examinar os cinco agregados, vemos claramente que ambos, corpo e mente, são impermanentes, insatisfatórios e sem alma. Vendo todas as coisas compostas com sabedoria, não nos apegamos ou nos agarramos. Seja o que for que nós recebamos, recebemos conscientemente; não ficamos excessivamente felizes. Quando nossas posses terminam ou desaparecem, não ficamos infelizes e não sofremos com sentimentos de dor – porque vemos claramente a natureza impermanente de todas as coisas. Quando deparamos com a doença ou dor de qualquer tipo, temos equanimidade, porque nossas mentes estão bem treinadas. O verdadeiro refúgio é a mente controlada.
Tudo isso é conhecido como a sabedoria que conhece as verdadeiras características das coisas conforme elas surgem. A sabedoria surge da consciência e da concentração. A concentração surge de uma base de moralidade ou virtude. Todas estas coisas, moralidade, concentração e sabedoria, são tão interdependentes que não é realmente possível separá-las. Na prática, isto pode ser visto deste modo: primeiro existe a disciplina da mente para estar atenta à respiração; isto é o surgimento da moralidade. Quando a consciência da respiração é praticada continuamente até a mente se tornar calma, isto é o surgimento da concentração. Então, o exame mostrando a respiração como impermanente, insatisfatória e sem-eu, e o consequente não-apego, é o surgimento da sabedoria. Portanto, a prática da consciência da respiração pode ser considerada um método para o desenvolvimento da moralidade, concentração e sabedoria; elas vêm juntas.
Quando moralidade, concentração e sabedoria estão todas desenvolvidas, chamamos a isto de praticar o “Óctuplo Caminho”, que o Buddha ensinou ser o único modo de se livrar do sofrimento. O Óctuplo Caminho é superior a todos os outros, porque, se corretamente praticado, conduz diretamente ao Nibbāna, à Paz. Podemos dizer que esta prática leva direta e precisamente ao Buddha-Dhamma.
Benefícios da Prática
Quando praticamos a meditação conforme explicado acima, os frutos da prática surgem nos três estágios seguintes:
Primeiro, para aqueles praticantes que estão no nível de “buddhistas pela fé”, surgirá um aumento da fé no Buddha, Dhamma e Sangha. Esta fé se tornará o real apoio interior de cada pessoa. Também entenderão a natureza de causa-e-efeito de todas as coisas; que ações saudáveis geram efeitos saudáveis; e que ações nocivas geram efeitos nocivos. Assim, para tais pessoas haverá aumento de felicidade e paz mental.
Segundo, aqueles que alcançaram a nobre realização de Vencedores-da-Corrente, Uma-Vez-Retornantes ou Não-Retornantes, terão uma fé inabalável no Buddha, Dhamma e Sangha. Eles terão o coração leve e serão puxados para o Nibbāna.
Terceiro, para aqueles Arahants ou Perfeitos, haverá a felicidade livre de todo sofrimento. Estes são os Buddhas, livres do mundo, completos na jornada do Caminho Sagrado.
Todos tivemos a boa sorte de nascer como seres humanos e de escutar os Ensinamentos do Buddha. Esta é uma oportunidade que milhões de outros seres não tiveram. Portanto, não sejam negligentes ou descuidados. Apressem-se e desenvolvam méritos; façam o bem e sigam o caminho da prática no princípio, no meio e nos níveis mais altos. Não deixem o tempo passar sem ser utilizado e sem propósito. Tentem alcançar a verdade dos Ensinamentos do Buddha hoje mesmo. Deixe-me finalizar com um ditado popular do Laos: “Muitas jornadas de alegria e prazer passam; logo será tarde. Embriaguem-se com lágrimas agora, descansem e vejam: logo será muito tarde para terminar a viagem”.
Traduzido por Marcos Aurélio Gonçalves para a Comunidade Buddhista Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright
© 2004 Edições Nalanda
Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.
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