~ Ajahn Chah
Pergunta: Um amigo meu foi praticar com um professor zen e lhe perguntou: “Quando Buddha sentava-se sob a árvore Bodhi, o que estava fazendo?”. O mestre respondeu: “Estava praticando zazen!”. Meu amigo disse que não acreditava naquilo, ao que o mestre retrucou: “O que você quer dizer com não acreditar nisso?”. Meu amigo disse: “Fiz a mesma pergunta a Goenka e ele disse que Buddha estava praticando vipassanā! Ou seja, todo mundo fala que Buddha estava fazendo aquilo que fazem”.
Ajahn Chah: Quando Buddha sentava-se ao ar livre, estava sentando-se sob a árvore Bodhi. Não é assim? Quando ele sentava-se sob qualquer outro tipo de árvore, estava sentando-se sob a árvore Bodhi. Não há nada de errado com essas explicações. “Bodhi” significa o próprio Buddha, aquele que sabe. Está tudo bem falar sobre sentar-se sob a árvore Bodhi, mas muitos pássaros fazem a mesma coisa, assim como muitas pessoas. Porém, estão todos distantes de tal conhecimento, de tal verdade. Sim, podemos dizer “sob a árvore Bodhi”.
Macacos brincam na árvore Bodhi. Pessoas sentam-se debaixo da árvore Bodhi. Mas isso não significa que eles tenham um entendimento profundo. Os que têm um entendimento mais profundo sabem que o verdadeiro significado da “árvore Bodhi” é o Dhamma absoluto.
Nesse sentido, sem dúvida devemos tentar nos sentar debaixo da árvore Bodhi. Com isso, temos a possibilidade de sermos Buddha. Mas não precisamos falar sobre essa questão. Quando alguém diz que o Buddha fazia um determinado tipo de prática debaixo da árvore Bodhi e outra pessoa discorda, não precisamos nos envolver na discussão. Precisamos ver a questão do ponto de vista derradeiro, no sentido da percepção da verdade. A maioria das pessoas refere-se à ideia convencional de “árvore Bodhi”, mas, se outra ideia de árvore Bodhi for incluída na conversa, as pessoas podem acabar discutindo e até brigando. Neste caso, qualquer árvore Bodhi deixa de existir.
Isso é falar sobre paramatthadhamma, o nível último da verdade. Então nesse caso, nós podemos também tentar sentar debaixo da árvore Bodhi. Isso é muito bom – pois seremos Buddha. Não é algo para se discutir. Quando alguém diz que o Buddha estava praticando certo tipo de meditação debaixo da árvore Boddhi e alguém diz: “Não, isso não está certo”, nós não precisamos nos envolver. Nosso objetivo é paramatthadhamma, o que significa que estamos em completa consciência. Esta verdade última permeia tudo. Quer o Buddha estivesse sentado debaixo da árvore Bodhi ou fazendo qualquer outra atividade em outras posturas, não importa. Isso é apenas análise individual que as pessoas desenvolveram. Uma pessoa tem uma visão a respeito do assunto, outra pessoa tem outra ideia. Não precisamos nos envolver em discussões a respeito disso.
Onde o Buddha entrou no Nibbāna? Nibbāna significa extinto sem restos, encerrado. Estar encerrado vem da sabedoria, sabedoria do modo como as coisas realmente são. É dessa forma que as coisas são encerradas, e isso é o paramatthadhamma. Há explicações conforme o nível de convenção e libertação. Elas são ambas verdadeiras, mas suas verdades são diferentes. Por exemplo, nós dizemos que você é uma pessoa. Mas o Buddha dirá: “Não é bem assim. Não há isso como uma pessoa”. Então nós temos que resumir as várias formas de falar e explicar sobre convenção e libertação.
Podemos explicar assim: anteriormente você era criança. Agora você cresceu. Você é uma nova pessoa ou a mesma pessoa de antes? Se você é o mesmo que a pessoa idosa, como você se tornou um adulto? Se você é uma pessoa nova, de onde você veio? Mas falar de uma pessoa idosa e uma nova pessoa realmente não chega ao ponto. Esta pergunta ilustra as limitações da linguagem e do entendimento convencionais. Se existe algo chamado ‘grande’, então existe ‘pequeno’. Se há pequeno, há grande. Podemos falar de pequenos e grandes, jovens e velhos, mas realmente não existem tais coisas em sentido absoluto. Você não pode realmente dizer que alguém ou algo é grande. Os sábios não aceitam tais designações como reais, mas quando as pessoas comuns ouvem sobre isso, ‘grande’ não é realmente verdadeiro e ‘pequeno’ não é realmente verdadeiro, elas ficam confusas porque estão ligadas aos conceitos de grande e pequeno.
Você planta uma muda e vê crescer. Depois de um ano, ela tem um metro de altura. Depois de mais um ano, tem dois metros de altura. É a mesma árvore ou outra árvore? Se é a mesma árvore, como ficou maior? Se é uma árvore diferente, como ela cresceu a partir da árvore pequena? Do ponto de vista de alguém que é iluminado para o Dhamma e vê corretamente, não há árvore nova ou velha, nenhuma árvore grande ou pequena. Uma pessoa olha para uma árvore e pensa que é alta. Outra pessoa dirá que não é alta. Mas não há “alta” que realmente exista de forma independente. Você não pode dizer que alguém é grande e alguém é pequeno, alguém é adulto e outra pessoa é jovem. As coisas acabam aqui e os problemas acabam. Não precisamos ficar amarrados em nós sobre essas distinções convencionais e não teremos dúvidas sobre a prática.
Ouvi falar de pessoas que louvam suas divindades sacrificando animais. Elas matam patos, galinhas e vacas, e oferecem isso aos seus deuses, pensando que lhes agradará. Isso é perspectiva errada. Elas acham que estão produzindo méritos, mas é exatamente o oposto: elas estão realmente produzindo muito kamma ruim. Alguém que realmente reflita sobre isso não pensará assim. Mas você notou? Receio que as pessoas na Tailândia estejam se tornando assim. Elas não estão aplicando uma investigação verdadeira.
Pergunta: Isso é vīmamsā?
Ajahn Chah: Isso significa entender causa e resultado.
Pergunta: Então, os ensinamentos falam sobre chanda, satisfação; viriya, esforço; citta (os quatro iddhipāda, ‘bases para a realização’).
Ajahn Chah: Quando há satisfação, é algo que está correto? O esforço é correto? Vīmamsā deve estar presente com esses outros fatores.
Pergunta: citta e vīmamsā são diferentes?
Ajahn Chah: Vīmamsā é investigação. Significa habilidade ou sabedoria. É um fator da mente. Você pode dizer que chanda é mente, viriya é mente, citta é mente, vīmamsā é mente. Todos eles são aspectos da mente, todos podem ser resumidos como ‘mente’, mas aqui são distinguidos com o objetivo de apontar esses diferentes fatores da mente. Se houver satisfação, podemos não saber se está certo ou errado. Se houver esforço, não sabemos se está certo ou errado. O que chamamos de mente é a mente real? Tem que haver vīmamsā para discernir essas coisas. Investigando os outros fatores com discernimento sábio, nossa prática gradualmente se torna correta e podemos entender o Dhamma.
Mas o Dhamma não traz muitos benefícios se não praticarmos meditação. Nós realmente não saberemos do que se trata. Esses fatores estão sempre presentes na mente de verdadeiros praticantes. Então, mesmo que se desviem, eles estarão cientes disso e serão capazes de corrigir. Portanto, seu caminho de prática é contínuo.
As pessoas podem olhar para você e intuir que seu estilo de vida, seu interesse no Dhamma, não faz sentido. Outros podem dizer que se você deseja praticar o Dhamma deve ser ordenado como monge. Ser ordenado não é realmente o ponto crucial. O ponto é como vocês praticam. Como já foi dito, a pessoa deve ser sua própria testemunha. Não tome os outros como testemunha. Isso significa aprender a confiar em si mesmo. Então, não há perda. As pessoas podem pensar que vocês são loucos, mas não importa. Elas não sabem nada sobre o Dhamma.
As palavras de outras pessoas não podem balizar sua prática. E você não pode conhecer o Dhamma por causa do que os outros dizem. Quero dizer, o verdadeiro Dhamma. Os ensinamentos transmitidos por outras pessoas podem lhe mostrar o caminho, mas esse não é um conhecimento real. Quando se conhece o Dhamma, ele é percebido especificamente dentro de si. Assim disse o Buddha: “O Tathāgata é apenas aquele que mostra o caminho”. Quando alguns estão sendo ordenados, eu digo: “Nossa responsabilidade vai apenas até essa parte: os ācariya recitantes entoaram seus cânticos. Eu lhes dei o impulso de saída do lar e os votos de ordenação. Nosso trabalho está feito. Agora o resto é com vocês, exercer a prática corretamente”.
Os ensinamentos podem ser muito profundos, mas quem os ouve pode não entender. Mas não faz mal. Que não se fique perplexo com a profundidade ou falta desta. Apenas pratique de coração inteiro e chegará a um conhecimento real – chegará ao mesmo lugar que eles falam. Não se apoie nas percepções das pessoas comuns. Já leu a história do homem cego e do elefante? É uma boa ilustração.
Suponha que há um elefante e um grupo de pessoas cegas está a tentar descrever o elefante. Um toca a perna e diz que é como um pilar. Outro toca a orelha e diz que é como uma asa. Outro toca a cauda e diz: “Não, não é uma asa, é como uma vassoura”. Outro toca os ombros e diz que é outra coisa diferente.
É exatamente dessa forma. Não existe solução, não termina. Cada pessoa cega toca parte do elefante e tem uma ideia completamente diferente sobre o que ele é. Mas o elefante é o mesmo. É dessa forma na prática. Com um pouco de entendimento ou experiência, você obtém ideias limitadas. Você pode passar de um professor ao outro buscando explanações e instruções, tentando descobrir se eles estão ensinando correta ou incorretamente e como o ensinamento deles se equivalem. Alguns monges estão sempre a viajar com suas tigelas e guarda-chuvas aprendendo a partir de diferentes professores. Eles tentam avaliar e ponderar, de modo que, quando se sentam para meditar, eles constantemente estão confusos sobre o que está correto e o que está incorreto. “Esse professor disse isso, mas aquele professor disse aquilo. Um sujeito ensina desse modo, mas os métodos dos outros são diferentes. Eles não parecem concordar”. Isso pode levar a muita dúvida.
Você pode ouvir que certos professores são realmente bons e, então, você vai receber os ensinamentos de ajahns tailandeses, mestres do Zen e outros. A mim parece que você provavelmente obteve ensinamento suficiente, mas a tendência é sempre querer ouvir mais, para comparar e no fim terminar em dúvida sobre os resultados. Então, sucessivamente cada professor aumenta sua confusão um pouco mais. Existe uma história sobre um andarilho no tempo de Buddha que estava nesse tipo de situação. Ele ia de um professor após o outro, ouvindo suas diferentes explicações e aprendendo seus métodos. Ele tentava aprender meditação, mas estava somente aumentando sua confusão. Suas viagens finalmente o levaram ao professor Gotama, e ele falou de suas dificuldades ao Budhha.
“Fazer o que você tem feito não acabará com a dúvida e a confusão”, disse o Buddha. “Neste momento, deixe o passado para trás; qualquer coisa que você possa ou não ter feito, seja certa ou errada, deixe isso para trás agora”.
“O futuro ainda não chegou. Não especule sobre tudo isso, imaginando como as coisas podem vir a ser. Deixe de lado todas essas ideias perturbadoras – isso é apenas pensar”.
“Abandonando o passado e o futuro, olhe o presente. Então você conhecerá o Dhamma. Você pode conhecer as palavras ditas por vários professores, mas ainda não conhece a sua própria mente. O momento presente é vazio; olhe apenas para o surgimento e cessação de sankhārā (formações). Veja que elas são impermanentes, insatisfatórias e vazias de si. Veja que elas realmente são assim. Então você não se preocupará com o passado ou o futuro. Você entenderá claramente que o passado se foi e o futuro ainda não chegou. Contemplando no presente, perceberá que o presente é o resultado do passado. Os resultados de ações passadas são vistos no presente.
“O futuro ainda não chegou. O que quer que aconteça no futuro surgirá e morrerá no futuro; não há sentido em se preocupar a respeito disso agora, já que ainda não aconteceu. Então, considere o presente. O presente é a causa do futuro. Se você quer um bom futuro, faça o bem no presente, aumentando sua consciência do que você faz no presente. O futuro é o resultado disso. O passado é a causa e o futuro é o resultado do presente”.
“Conhecendo o presente, uma pessoa conhece o passado e o futuro. Então a pessoa abandona o passado e o futuro, sabendo que eles estão reunidos no momento presente”.
Entendendo isso, aquele andarilho decidiu praticar como o Buddha aconselhou, anotando as coisas. Vendo cada vez mais claramente, ele percebeu muitos tipos de conhecimento, vendo a ordem natural das coisas com sua própria sabedoria. Suas dúvidas acabaram. Ele abandonou o passado e o futuro e tudo apareceu no presente. Este era o eko dhammo, o único Dhamma. Então não era mais necessário que ele mendigasse com sua tigela pelas montanhas e pelas florestas em busca de entendimento. Se ele fosse a algum lugar, iria de uma maneira natural, não por desejar algo. Se ficasse parado, seria de um modo natural, não por desejo.
Praticando daquele modo, ele se tornou livre de dúvidas. Não havia nada para adicionar a sua prática, nada para remover. Ele morava em paz, sem ansiedade pelo passado ou pelo futuro. Essa era a forma como Buddha ensinou.
Mas não é apenas uma história sobre alguma coisa que aconteceu tempos atrás. Se nós neste momento praticarmos corretamente, poderemos também obter a realização. Poderemos saber o passado e o futuro porque eles estarão unidos neste ponto, o momento presente. Se olharmos para o passado nós não saberemos. Se olharmos para o futuro nós não saberemos, porque não é onde a verdade está; ela existe aqui, no presente.
Assim o Buddha disse: “Eu sou iluminado por meus próprios esforços, sem nenhum professor”. Você leu essa história? Um andarilho de outra seita perguntou a ele: “Quem é seu professor?” O Buddha respondeu: “Não tenho professor. Atingi a iluminação por mim mesmo”. Mas, aquele andarilho apenas balançou a cabeça e foi embora. Ele pensou que o Buddha estivesse inventando uma história e, portanto, não teve interesse pelo que ele dissera. Ele achava que não era possível alguém atingir algo sem um professor e um guia.
É desse jeito: você estuda com um professor espiritual e ele lhe fala para abandonar a cobiça e a raiva. Ele lhe fala que elas são prejudiciais e que você deve se livrar delas. Então você pode praticar e fazer isso. Mas livrar-se da cobiça e da raiva não ocorre somente porque ele lhe ensinou; você teve de praticar e fazer isso. Por meio da prática você veio a fazer algo por você mesmo. Você vê a cobiça e a raiva em sua mente e as abandona. O professor não se livra delas para você. Ele lhe fala para livrar-se delas, mas isso não ocorre somente porque ele falou. Você faz a prática e chega à realização. Você entende essas coisas por você mesmo.
É como se o Buddha estivesse segurando e trazendo você ao começo do caminho, e ele lhe diz: “Aqui está o caminho – ande nele”. Ele não lhe ajuda a andar. Você faz isso por si mesmo. Quando você anda no caminho e pratica o Dhamma, você encontra o verdadeiro Dhamma, que está além de qualquer coisa que alguém possa lhe explicar. Então, alguém se ilumina por conta própria, entendendo passado, futuro e presente, entendendo causa e resultado. Assim a dúvida chega ao fim.
Falamos sobre desistir e desenvolver, renunciar e cultivar. Mas quando o fruto da prática é realizado, não há nada a acrescentar e nada a remover. O Buddha ensinou que esse é o ponto que queremos chegar, mas as pessoas não querem parar por aí. Suas dúvidas e apegos os mantêm em movimento, confundem e impedem que parem por aí. Portanto, quando uma pessoa chega, mas outras estão em outro lugar, elas não conseguem entender o que ela pode dizer sobre isso. Elas podem ter algum entendimento intelectual das palavras, mas esse não é um entendimento ou conhecimento real da verdade.
Normalmente quando falamos sobre a prática falamos sobre entrar e sair, aumentar o positivo e remover o negativo. Mas o resultado final é que tudo isso chega ao fim. Existe o sekha puggala, a pessoa que precisa se treinar nessas coisas, e o asekha puggala, a pessoa que não mais necessita de treinamento em nada. Isso é falar sobre a mente: quando a mente chega ao seu nível de completa realização, não há mais nada para praticar. Por que isso? Porque essa pessoa não precisa fazer uso de nenhuma dessas convenções de ensino e prática. Diz-se dessa pessoa que é alguém que se livrou das impurezas.
As pessoas sekha têm de treinar nos passos do caminho bem do começo até o nível mais elevado. Quando completam essa etapa, são chamadas de asekha, o que significa que não precisam mais treinar porque tudo acabou. As coisas para serem treinadas se acabaram. As dúvidas se dissiparam. Não há qualidades para serem desenvolvidas. Não há imperfeições para serem removidas. Pessoas assim vivem em paz. A existência de bom ou de ruim não as afetarão. Elas são inabaláveis independentemente do que encontram. É uma conversa sobre a mente vazia. Agora, você ficará realmente confuso.
Você não consegue entender nada disso. “Se minha mente estiver vazia, como eu conseguirei andar?” Justamente porque a mente estará vazia. “Se minha a mente estiver vazia, como eu conseguirei comer? Vou ter vontade de comer se minha mente estiver vazia?” Quando as pessoas não recebem um treinamento adequado, não ajuda muito falar sobre a vaziez. Elas não conseguirão entender.
Quem usa termos como “vazio” ou “vaziez” faz isso para nos dar uma noção que pode nos levar à compreensão da verdade. Por exemplo, sobre esses sankhārās que estamos acumulando e carregando desde o momento do nosso nascimento até o presente momento, o Buddha disse que, na verdade, eles não são quem somos e não nos pertencem. Por que ele disse isso? Não existe outra maneira de formular a verdade. Ele falou nesses termos para pessoas que têm discernimento, para que elas pudessem adquirir sabedoria. Mas é algo que devemos considerar com cuidado.
Alguns ouvirão: “Nada é meu”, e eles vão achar que devem jogar fora tudo o que possuem. Com apenas conhecimento superficial, pessoas passarão a discutir sobre o que isso significa e sobre como isso se aplica. “Este não é meu eu”, não significa que você deveria acabar com sua vida e jogar fora o que possui. Significa que você deve abandonar o apego. Há o nível da realidade convencional, e o nível da realidade última – suposição e libertação. No nível convencional há o Sr. A, Sra. B, Sr. M, Sra. N, e assim por diante. Usamos essas suposições por conveniência, para nos comunicarmos e funcionarmos no mundo. O Buddha nunca ensinou que não devemos usar essas coisas, mas que não devemos nos apegar a elas. Deveríamos nos dar conta de que são vazias.
É difícil falar a respeito.
Nós temos que depender da prática e obter compreensão através da prática. Se você quiser obter conhecimento e compreensão ao estudar e perguntar aos outros você realmente não compreenderá a verdade. É algo que você tem que ver e saber por você mesmo por meio da prática. Volte-se para o seu interior para conhecer a si mesmo. Não esteja sempre voltando-se para o exterior. Mas quando falamos sobre praticar, as pessoas tornam-se argumentativas. Suas mentes estão prontas para discutir, porque elas aprenderam essa ou aquela abordagem para a praticar e têm um apego unilateral àquilo que elas aprenderam. Elas não perceberam a verdade por meio da prática.
Você notou os tailandêses que encontramos no outro dia? Eles fizeram perguntas irrelevantes tais como: “Por que você se alimenta das esmolas e donativos recebidos?”. Eu podia ver que eles estavam longe do Dhamma. Eles tiveram educação moderna e, por isso, não posso lhes contar muito. Entretanto, deixei o monge americano falar com eles. Eles podem estar dispostos a ouvi-lo. Atualmente, os tailandêses não têm muito interesse no Dhamma e não o entendem. Por que eu digo isso? Se as pessoas não estudaram sobre algo, são ignorantes a respeito desse tema. Elas estudaram outras coisas, mas ignoram o Dhamma. Admito que sou ignorante das coisas que elas aprenderam. O monge ocidental estudou o Dhamma, para que ele possa lhes contar algo a respeito disso.
Atualmente, entre os tailandeses, há cada vez menos interesse em estudar, praticar e ser ordenado. Não sei por que, se é porque eles estão ocupados com o trabalho, porque o país está se desenvolvendo materialmente ou qual pode ser motivo. Eu não sei. No passado, quando alguém era ordenado, ficava por pelo menos alguns anos, quatro ou “cinco chuvas”. Agora é uma semana ou duas. Alguns são ordenados pela manhã e desordenados à noite. Essa é a direção que se está seguindo agora. As pessoas dizem coisas como aquele sujeito que me disse: “Se todos fossem ordenados da maneira que você gostaria, por pelo menos algumas chuvas, não haveria progresso no mundo. Famílias não cresceriam. Ninguém estaria construindo coisas”.
Eu disse a ele: “Seu pensamento é o pensamento de uma minhoca. Uma minhoca vive no solo. Alimenta-se da terra. Comendo e comendo, ela começa a se preocupar que ficará sem sujeira para comer. Está cercada de terra, toda a terra está cobrindo sua cabeça, mas teme que fique sem terra”.
Esse é o pensamento de uma minhoca. As pessoas se preocupam com o fato de o mundo não progredir, que ele vai acabar. Essa é a visão de uma minhoca. Elas não são minhocas, mas pensam como elas. Essa é a compreensão errada do reino animal. Eles são realmente ignorantes.
Tem uma história que eu sempre contei sobre uma tartaruga e uma cobra. A floresta estava pegando fogo e elas tentavam fugir. A tartaruga seguia vagarosamente, e então viu a cobra deslizar por ela. Sentiu pena daquela cobra. Por quê? A cobra não tinha pernas, então a tartaruga imaginou que não seria capaz de escapar do fogo. Queria ajudar a cobra. Mas conforme o fogo se espalhava, a cobra fugiu com facilidade, enquanto a tartaruga não conseguiu, mesmo com as quatro patas, e morreu ali.
Essa foi a ignorância da tartaruga. Pensou que, se você tem pernas, pode se mover. Se você não tem pernas, não pode ir a lugar algum. Por isso, estava preocupada com a cobra. Ela pensou que a cobra morreria porque não tinha pernas. Mas a cobra não estava preocupada; sabia que poderia escapar facilmente do perigo.
Essa é uma maneira de conversar com as pessoas com suas ideias confusas. Elas sentirão pena de você se você não for como elas e não tiver suas opiniões e conhecimentos. Então, quem é ignorante? Sou ignorante do meu jeito; há coisas que eu não sei, então sou ignorante por isso.
Conhecer situações diferentes pode ser motivo de tranquilidade. Mas eu não entendia o quão tolo e enganado eu era. Sempre que algo perturbava minha mente, eu tentava me afastar, escapar. O que eu estava fazendo era escapar da paz. Eu estava continuamente fugindo da paz. Eu não queria ver isso ou saber disso; não queria pensar ou experimentar várias coisas. Eu não percebia que isso era impureza. Eu só pensei que precisava me afastar cada vez mais de pessoas e situações, para não encontrar nada perturbador ou ouvir discursos que fossem desagradáveis. Quanto mais longe eu pudesse chegar, melhor.
Depois de muitos anos fui forçado, pela progressão natural dos eventos, a mudar meus caminhos. Tendo sido ordenado já há algum tempo, acabei com mais e mais discípulos, mais pessoas me procurando. Viver e praticar na floresta era algo que atraía as pessoas a vir e prestar respeito. Assim, à medida que o número de seguidores aumentou, fui forçado a começar a enfrentar as coisas. Eu não poderia mais fugir. Meus ouvidos tinham que ouvir sons, meus olhos que ver. E foi então, como ajahn, que comecei a ganhar mais conhecimento. Isso levou a muita sabedoria e muito desapego. Havia muita coisa acontecendo e eu aprendi a não agarrar e segurar, mas a deixar passar. Isso me fez muito mais habilidoso do que antes.
Quando ocorreu algum sofrimento, foi tudo bem; eu não acrescentei isso tentando escapar dele. Anteriormente, na minha meditação, eu apenas desejava tranquilidade. Eu pensava apenas que o ambiente externo seria útil na medida em que pudesse ser uma causa para me ajudar a alcançar a tranquilidade. Eu não sabia que ter uma visão correta é a causa de se atingir a tranquilidade.
Eu costumava dizer que existem dois tipos de tranquilidade. Os sábios a dividiram em: paz por meio da sabedoria e paz por meio de samatha. Na paz por meio de samatha, o olho deveria estar longe do que é visto, o ouvido longe dos sons, o nariz longe dos odores e assim por diante. Então, sem ouvir, sem perceber e assim por diante, pode-se tornar tranquilo. Seria bom esse tipo de tranquilidade em seu caminho. Tem algum valor? Sim, tem, mas não é o supremo. Tem curta duração. Não tem uma base confiável. Quando os sentidos encontram objetos desagradáveis, eles mudam, porque não querem que essas coisas estejam presentes. Portanto, a mente tem que estar sempre lutando com esses objetos, e nenhuma sabedoria nasce, pois a pessoa sente que não está em paz por causa desses fatores externos.
Por outro lado, se você decidir não fugir, mas olhar diretamente para as coisas, você perceberá que a falta de tranquilidade não é devido a objetos ou situações externas, mas só acontece por causa de uma compreensão errada. Frequentemente ensino aos meus discípulos sobre isso. Digo-lhes, quando se dedicam a encontrar tranquilidade na sua meditação podem procurar o lugar mais silencioso e remoto, onde não se encontram com vistas ou sons, onde não há nada acontecendo que o perturbe. Lá, a mente pode se acalmar e ficar calma porque não há nada para provocá-la. Então, quando você experimentar isso, examine-a para ver quanta força isso tem: quando você sair daquele lugar e começar a experimentar o contato sensorial, observe como você fica satisfeito e descontente, feliz e desanimado, e como a mente se torna perturbada. Então você entenderá que esse tipo de tranquilidade não é genuíno.
Tudo quanto ocorre em nosso campo de experiência, simplesmente é o que é. Quando algo nos agrada nós decidimos que aquilo é bom e quando alguma coisa nos desagrada, dizemos que não é bom. Isso são apenas nossas próprias mentes discriminantes dando significado aos objetos externos. Entendendo isso, então temos uma base para investigar essas coisas e compreendê-las como elas na verdade são. Quando há tranquilidade na meditação, não há necessidade de muita reflexão. Essa sensibilidade tem certa qualidade de conhecimento que é originada da mente tranquila. Isto não é pensar; isto é dhammavicaya, o fator de investigação do Dhamma.
Este tipo de tranquilidade não é perturbada pelo contato com a experiência e os sentidos. Mas então surge a pergunta: “Se é tranquilidade, porque ainda há algo acontecendo?” Há algo acontecendo dentro da tranquilidade; não é algo acontecendo na maneira usual, aflitiva, onde atribuímos mais a situação do que realmente é. Quando algo ocorre dentro da tranquilidade a mente o sabe com extrema clareza. Sabedoria nasce aí e a mente contempla cada vez mais claramente. Nós vemos a maneira como as coisas realmente acontecem; quando sabemos a verdade sobre elas então a tranquilidade se torna totalmente inclusiva. Quando os olhos veem formas ou os ouvidos ouvem sons, nós os reconhecemos pelo que são. Nesta última forma de tranquilidade, quando os olhos veem formas, a mente está em paz. Quando os ouvidos ouvem sons, a mente está em paz. A mente não oscila. O que quer que experienciemos, a mente não se abala.
Então, de onde vem esse tipo de tranquilidade? Vem daquele outro tipo de tranquilidade, aquele samatha ignorante. Essa é uma causa que possibilita que isso aconteça. Ensina-se que a sabedoria vem da tranquilidade. Saber vem do não-saber; a mente passa a conhecer a partir desse estado de não=saber, aprendendo a investigar dessa forma. Haverá tranquilidade e sabedoria. Então, onde quer que estejamos, o que quer que façamos, vemos a verdade das coisas. Sabemos que o surgimento e a cessação da experiência na mente é exatamente assim. Então não há mais nada a fazer, nada a corrigir ou resolver. Não há mais especulações. Não há para onde ir, não há escapatória. Só podemos escapar pela sabedoria, conhecendo as coisas como são e transcendendo-as.
No passado, quando estabeleci Wat Pah Pong e as pessoas começaram a visitar-me, alguns discípulos disseram: “Luang Por está sempre socializando com as pessoas. Este não é mais um lugar adequado para ficar”. Mas não era que eu tivesse ido à procura de pessoas; nós estabelecemos um mosteiro e elas vinham prestar homenagem ao nosso modo de vida. Bem, eu não podia negar o que elas estavam dizendo mas, na verdade, estava ganhando muita sabedoria e aprendendo muitas coisas. Mas os discípulos não sabiam disso. Eles só podiam olhar para mim e pensar que a minha prática estava se deteriorando – tantas pessoas chegando, tanta perturbação. Eu não tinha como convencê-los do contrário, mas com o passar do tempo superei os vários obstáculos e finalmente acabei por acreditar que a verdadeira tranquilidade nasce da visão correta. Se não tivermos visão correta, não importa onde estamos, não estaremos em paz e a sabedoria não surgirá.
As pessoas estão tentando praticar aqui no Ocidente, não estou criticando ninguém, mas pelo que posso ver, sīla (moralidade) não está muito bem desenvolvida. Bem, isso é uma convenção. Você pode começar por praticar o samādhi (concentração) primeiro. É estar caminhando e encontrar um longo pedaço de madeira. Uma pessoa pode segurá-lo em uma extremidade. Outra pessoa pode pegar a outra ponta. Mas é a mesma e única peça de madeira e, segurando em qualquer das extremidades, você pode movê-la. Quando existe alguma calma da prática de samādhi, então a mente pode ver as coisas claramente, ganhar sabedoria e perceber o dano em certos tipos de comportamento, e a pessoa terá controle e prudência. Você pode mover o toco por meio de qualquer extremidade, mas o ponto principal é ter determinação firme em sua prática. Se você começar com sīla, essa restrição vai trazer calma. Isso é samādhi e se torna uma causa para a sabedoria. Quando existe sabedoria, isso ajuda a desenvolver samādhi ainda mais. E samādhi continua purificando sīla. Na realidade eles são sinônimos, se desenvolvendo em conexão. No final, o resultado final é que eles são um e o mesmo; eles são inseparáveis.
Não podemos distinguir samādhi e classificá-lo separadamente. Não podemos classificar sabedoria como algo separado. Não podemos distinguir sīla como algo separado. A princípio, os distinguimos. Há o nível de convenção e o nível de libertação. No nível da libertação, não nos apegamos ao bem e ao mal. Usando a convenção, distinguimos aspectos bons e ruins, e diferentes aspectos da prática. Isso é necessário, mas ainda não é de maior importância. Se entendermos o uso da convenção, podemos entender a libertação. Então, podemos entender as maneiras pelas quais termos diferentes são usados para levar as pessoas à mesma coisa.
Então, naqueles dias, eu aprendi a lidar com pessoas, com todos os tipos de situações. Entrando em contato com todas essas coisas, eu tive de fazer minha mente firme. Confiando na sabedoria, eu fui capaz de ver claramente e respeitar sem ser afetado por qualquer coisa que encontrava. Qualquer coisa que os outros podiam estar dizendo, eu não me incomodava porque eu tinha uma convicção firme. Aqueles que vão ser professores precisam dessa convicção firme no que eles estão fazendo, sem ser afetados pelo que as pessoas dizem. Isso pede alguma sabedoria, e qualquer sabedoria que alguém tenha poderá aumentar. Fazemos um balanço de todos os nossos modos antigos à medida que nos são revelados e os mantermos limpos.
Você realmente precisa ter a mente firme. Às vezes não há bem-estar no corpo nem na mente. Isso acontece quando moramos juntos; é algo natural. Às vezes temos que enfrentar doenças, por exemplo. Eu passei por isso com frequência. Como você lidaria com isso? Bem, todo mundo quer viver confortavelmente, ter boa comida e muito descanso. Mas, nem sempre podemos ter isso. Não podemos simplesmente satisfazer nossos desejos. Mas, criamos algum benefício neste mundo por meio dos esforços virtuosos que fazemos. Criamos benefícios para nós mesmos e para outros, para esta vida e para a próxima. Este é o resultado de tornar a mente pacífica.
Vindo aqui para Inglaterra e Estados Unidos é igual. É uma visita curta, mas eu tentarei ajudar o quanto puder e oferecer ensino e orientação. Há ajahns e estudantes aqui, assim eu tentarei ajudá-los. Mesmo que não tenha monges vivendo aqui ainda, isso é muito bom. Essa visita pode preparar as pessoas para ter monges aqui. Se eles vierem muito cedo, será difícil. Pouco a pouco as pessoas podem se tornar familiarizadas com a prática e com os caminhos da bhikkhusangha. Então a sāsana poderá florescer aqui. Assim, por ora, vocês têm de cuidar de sua própria mente e fazer isso direito.
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright
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Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.
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