O buddhismo *

Uma palestra de Jorge Luís Borges

(Palestra proferida entre junho e agosto de 1977, dentro de um ciclo de sete palestras no Teatro Coliseo de Buenos Aires: La Divina Comedia, La pesadilla, El libro de las mil y una noches, El buddhismo, ¿Qué es la poesía?, La cábala, y La ceguera. Em 1980 essas palestras foram reunidas e publicadas em livro, cujo título é “Siete Noches”.)

O tema de hoje será o buddhismo. Não vou entrar nessa longa história que começou há dois mil e quinhentos anos em Benares, quando um príncipe do Nepal – Siddhartha ou Gautama – que se tornaria o Buddha, girou a Roda da Lei, proclamou as quatro nobres verdades e o caminho óctuplo. Falarei sobre o essencial dessa religião, a mais difundida do mundo. Os elementos do buddhismo foram preservados desde o século V a.C.: isto é, desde a época de Heráclito, Pitágoras, Zenon, até nossa época, quando o doutor Suzuki os expõe no Japão. Os elementos são os mesmos.

A religião agora está impregnada de mitologia, astronomia, de estranhas crenças, de magia; mas como o assunto é complexo, vou me ater ao que as várias seitas têm em comum. Estas podem corresponder ao hinayāna ou pequeno veículo. Consideremos, antes de tudo, a longevidade do buddhismo.

Essa longevidade pode ser explicada por razões históricas, mas tais razões são fortuitas, ou melhor dizendo, são discutíveis, falíveis. Acho que há duas causas fundamentais. A primeira é a tolerância do buddhismo. Essa estranha tolerância não corresponde, como no caso de outras religiões, a épocas distintas: o buddhismo sempre foi tolerante.

Ele nunca recorreu ao ferro ou ao fogo, e nunca pensou que o ferro ou o fogo fossem persuasivos. Quando Asoka, imperador da Índia, se tornou buddhista, ele não tentou impor sua nova religião a ninguém. Um bom buddhista pode ser luterano, metodista, presbiteriano, calvinista, shintoista, taoista ou católico; pode ser um prosélito do islã ou da religião judaica, com total liberdade. Por outro lado, não é permitido a um cristão, a um judeu, ou a um muçulmano ser buddhista.

A tolerância do buddhismo não é uma fraqueza, mas pertence à sua própria natureza. O buddhismo foi, antes de tudo, o que podemos chamar de yoga. Que palavra é essa, yoga? É a mesma palavra que usamos quando dizemos ‘jugo’ e que tem sua origem no latim yugu.

Um jugo, uma disciplina que o homem impõe a si mesmo. Então, se compreendermos o que o Buddha pregou naquele primeiro sermão no Parque das Gazelas, em Benares, há dois mil e quinhentos anos, teremos compreendido o buddhismo. Só que não se trata de compreender, trata-se de sentir profundamente, sentir de corpo e alma; exceto, também, que o buddhismo não admite a realidade do corpo ou da alma. Tentarei explicar mais adiante.

Além disso, há outro motivo. O buddhismo exige muito de nossa fé. É natural, já que toda religião é um ato de fé. Assim como a pátria é um ato de fé. O que é, já me perguntei muitas vezes, ser argentino? Ser argentino é sentir que somos argentinos.

O que é ser buddhista?

Ser buddhista não é compreender, porque isso pode ser conseguido em poucos minutos, mas sentir as quatro nobres verdades e o caminho óctuplo.

Não entraremos nos meandros do caminho óctuplo, pois esse número obedece ao hábito hindu de dividir e subdividir, mas sim nas quatro nobres verdades.

Há, além disso, a lenda do Buddha. Podemos não acreditar nessa lenda. Tenho um amigo japonês, zen buddhista, com o qual tenho mantido longas e amistosas discussões. Eu lhe dizia que acreditava na verdade histórica do Buddha. Acreditava e acredito que, há dois mil e quinhentos anos, houve um príncipe do Nepal chamado Siddhartha ou Gautama que se tornou o Buddha, ou seja, o Desperto, o Lúcido – diferentemente de nós que estamos adormecidos ou que estamos sonhando esse longo sonho que é a vida. Eu me recordo de uma frase de Joyce: “A história é um pesadelo do qual eu quero acordar.” Pois bem, Siddhartha, na idade de trinta anos, despertou e tornou-se o Buddha.

Com aquele amigo que era buddhista (eu não tenho certeza se sou cristão e tenho certeza de que não sou buddhista) eu discutia e dizia: “Por que não acreditar no príncipe Siddhartha, que nasceu em Kapilavastu quinhentos anos antes da Era Cristã?” Ele me respondia: “Porque isso não tem nenhuma importância, o importante é acreditar na doutrina.”

Acrescentou – eu creio que com mais sagacidade do que verdade – que crer na existência histórica do Buddha ou interessar-se por ela seria algo assim como confundir o estudo da matemática com a biografia de Pitágoras ou Newton. Um dos temas de meditação dos monges dos monastérios da China e Japão é justamente duvidar da existência de Buddha. É um dos questionamentos que se deve fazer para chegar à verdade.

As outras religiões exigem muito da nossa credulidade. Se somos cristãos, devemos crer que uma das três pessoas da Divindade se submeteu a ser homem e foi crucificado na Judeia. Se somos muçulmanos, temos que crer que não há outro deus e que Muhammad é seu apóstolo. Podemos ser bons buddhistas e negar que o Buddha existiu, ou melhor, podemos pensar, devemos pensar que não é importante nossa crença no histórico: o importante é crer na doutrina.

A lenda do Buddha, porém, é tão bela que não podemos deixar de referi-la. Os franceses se dedicaram com especial atenção ao estudo da lenda do Buddha. Seu argumento é o seguinte: a biografia do Buddha é o que aconteceu a um só homem em um breve período de tempo. Pode ter sido de uma ou outra forma particular. Porém, a lenda do Buddha iluminou e continua iluminando milhões de homens. É a lenda que inspira tantas lindas pinturas, esculturas e poemas.

O buddhismo, além de ser uma religião, é uma mitologia, uma cosmologia, um sistema metafísico; ou, melhor dizendo, uma série de sistemas metafísicos que não se entendem e que discutem entre si.

A lenda do Buddha é iluminadora, e a sua crença não se impõe. No Japão há muita insistência na não-historicidade do Buddha, enfatizando a doutrina. A lenda começa no céu. No céu há alguém que, durante séculos e séculos – e podemos dizer literalmente durante um número infinito de séculos – se foi aperfeiçoando até compreender que na próxima encarnação seria o Buddha.

Escolhe o continente em que ele vai nascer. Segundo a cosmogonia buddhista, o mundo é dividido em quatro continentes triangulares e no centro há uma montanha dourada: o Monte Meru. Nascerá naquele que corresponde à Índia. Escolhe o século em que ele nascerá; escolhe a casta, escolhe a mãe. Agora, a parte terrena da lenda. Há uma rainha, Māyā. Māyā significa ilusão. A rainha tem um sonho, que corre o risco de parecer extravagante para nós, mas não é assim para os hindus.

Casada com o rei Suddhodana, ela sonha que um elefante branco de seis presas, que vagava pelas montanhas de ouro, entra em seu lado esquerdo sem lhe causar dor. A rainha acorda; o rei convoca seus astrólogos e eles lhe explicam que a rainha dará à luz um filho que poderá ser o imperador do mundo, ou que poderá ser o Buddha: o Desperto, o Lúcido, o ser destinado a salvar todos os homens. Previsivelmente, o rei escolhe o primeiro destino: ele quer que seu filho seja o imperador do mundo.

Voltemos ao detalhe do elefante branco de seis presas. Oldenberg observa que o elefante indiano é um animal doméstico e cotidiano. A cor branca é sempre um símbolo de inocência. Por que seis presas? Devemos lembrar (em algum momento teremos que voltar à história) que o número seis, que para nós é arbitrário e um tanto incômodo (já que preferimos três ou sete), não o é na Índia, onde se acredita que existem seis dimensões no espaço: acima, abaixo, atrás, à frente, à direita e à esquerda. Um elefante branco de seis presas não é extravagante para os hindus.

O rei convoca os magos e a rainha dá à luz sem dor. Uma figueira verga seus galhos para ajudá-la. O filho nasce em pé e ao nascer dá quatro passos: para o Norte, para o Sul, para o Leste e para o Oeste, e diz com voz de leão: “Eu sou o incomparável; este será meu último nascimento”.

Os hindus acreditam em um número infinito de nascimentos anteriores. O príncipe cresce, torna-se o melhor arqueiro, o melhor cavaleiro, o melhor nadador, o melhor atleta, o melhor calígrafo, debate com todos os eruditos (aqui podemos pensar em Cristo e os sábios). Aos dezesseis anos casa-se.

O pai sabe – disseram-lhe os astrólogos – que o filho corre o risco de ser o Buddha, o homem que salva a todos os outros, se conhecer quatro fatos: velhice, doença, morte e ascetismo. Ele confina o filho num palácio, dá-lhe um harém; não diria o número de mulheres porque corresponde a um óbvio exagero hindu. Mas por que não dizê-lo? Eram oitenta e quatro mil.

O príncipe vive uma vida feliz; ele ignora que haja sofrimento no mundo, pois escondem dele a velhice, a doença e a morte.

No dia predestinado, ele sai em sua carruagem por um dos quatro portões do palácio retangular. Digamos, pelo portão norte. Ele percorre uma distância e vê um ser diferente de todos os que já viu.

Tal ser é curvado, enrugado, não tem cabelo e mal consegue andar, ainda que apoiado em uma bengala. Ele pergunta quem é esse homem, caso seja um homem. O cocheiro responde que é um velho e que todos seremos esse homem se continuarmos vivendo.

O príncipe volta ao palácio perturbado. Ao cabo de seis dias, volta a sair pela porta sul. Vê em uma vala um homem ainda mais estranho, com a brancura da lepra e o rosto deformado. Pergunta quem é esse homem, se é que é um homem. É um doente, responde o cocheiro; todos seremos esse homem se seguirmos vivendo. O príncipe, já muito inquieto, volta ao palácio.

Seis dias mais tarde ele sai novamente e vê um homem que parece adormecido, mas cuja cor não é desta vida. Outros homens carregam este homem. Pergunta quem é ele. O cocheiro lhe diz que é um morto e que todos seremos esse morto se vivermos o suficiente.

O príncipe está desolado. Três horríveis verdades lhe foram reveladas: a verdade da velhice, a verdade da doença, a verdade da morte. Sai uma quarta vez. Vê um homem quase nu, cujo rosto está cheio de serenidade. Pergunta quem é. Dizem-lhe que é um asceta, um homem que renunciou a tudo e obteve a beatitude.

O príncipe resolve abandonar tudo; ele, que levou uma vida tão rica. O buddhismo crê que o ascetismo pode convir, mas depois de se ter provado a vida. Não se crê que alguém deva começar negando nada a si mesmo. Há que se apurar a vida até a última gota, e logo desenganar-se dela, mas não sem conhecê-la.

O príncipe resolve ser o Buddha. Naquele momento lhe trazem uma notícia: sua esposa, Yasodhara, dera à luz um filho. Ele exclama: “Um vínculo foi forjado”. É o filho que o liga à vida. É por isso que lhe dão o nome de ‘Vínculo’. Siddhartha está em seu harém; olha para aquelas mulheres jovens e bonitas e as vê como velhas horríveis, leprosas. Ele vai para o quarto de sua esposa, que está dormindo. Ela está com a criança nos braços. Siddhartha está prestes a beijá-la, mas entende que se a beijar não será capaz de deixá-la, e vai embora.

Procura por mestres. Aqui temos uma parte da biografia que pode não ser lendária. Por que mostrá-lo como um discípulo de mestres que mais tarde ele abandonará? Os mestres lhe ensinam o ascetismo, que ele pratica por muito tempo. No final, ele está deitado no meio do campo, seu corpo está imóvel e os deuses que o veem dos trinta e três céus pensam que ele está morto. Um deles, o mais sábio, diz: “Não, ele não está morto; ele será o Buddha.”

O príncipe acorda, corre para um riacho próximo, pega um pouco de comida e senta-se sob a figueira sagrada: a árvore da Lei, digamos. Segue-se um intervalo mágico, que tem sua correspondência com os Evangelhos: é a luta com o demônio. O demônio se chama Māra. Já vimos essa palavra ‘nightmare’, demônio da noite. O demônio que sente que domina o mundo, mas que agora está em perigo e sai de seu palácio. As cordas de seus instrumentos musicais se romperam, a água secou nas cisternas.

Prepara seus exércitos, monta o elefante que tem não sei quantas milhas de altura, multiplica seus braços, multiplica suas armas e ataca o príncipe. O príncipe está sentado ao entardecer debaixo da árvore do conhecimento, esta árvore que nasceu ao mesmo tempo que ele.

O demônio e suas fileiras de tigres, leões, camelos, elefantes e guerreiros monstruosos lançam-lhe flechas. Quando estas chegam a ele, são flores. Lançam-lhe montanhas de fogo que formam uma cobertura sobre a sua cabeça. O príncipe medita imóvel, com os braços cruzados. Talvez não saiba que o estão atacando. Pensa na vida; está chegando ao Nirvāna, à salvação. Antes do cair do sol o demônio foi derrotado.

Continua numa longa noite de meditação; ao fim dessa noite, Siddhartha já não é Siddhartha. É o Buddha: chegou ao Nirvāna.

Decide pregar a Lei. Levanta-se; já se salvou, quer salvar aos demais. Prega seu primeiro sermão no Parque das Gazelas, de Benares. Depois, outro sermão, o do fogo, no qual diz que tudo está ardendo: almas, corpos, coisas estão em fogo. Mais ou menos naquela data, Heráclito de Éfeso dizia que tudo é fogo.

Sua Lei não é a do ascetismo, já que para o Buddha o ascetismo é um erro. O homem não deve abandonar-se à vida carnal porque a vida carnal é baixa, não nobre, vergonhosa e dolorosa; mas tampouco ao ascetismo, que também não é nobre e é doloroso. Prega uma via do meio – para continuar com a terminologia teológica; já alcançou o Nirvāna e vive quarenta e tantos anos, os quais dedica à pregação. Poderia ter sido imortal, mas escolhe o momento da sua morte, quando já tem muitos discípulos.

Morre na casa de um ferreiro. Seus discípulos o cercam. Estão desesperados. O que farão sem ele? Ele lhes diz que ele não existe, que é um homem como eles, tão irreal e tão mortal quanto eles, mas que lhes deixa sua Lei.

Aqui temos uma grande diferença com Cristo. Creio que Jesus disse a seus discípulos que se dois estiverem reunidos, ele será o terceiro. Em vez disso, o Buddha disse a eles: deixo a vocês a minha Lei. Ou seja, ele colocou a Roda da Lei em movimento em seu primeiro sermão. Então virá a história do buddhismo. São muitos os acontecimentos: o lamaísmo, o buddhismo mágico, o mahāyāna ou grande veículo, ao qual vem depois do hinayāna ou pequeno veículo, o zen buddhismo do Japão. 

Tenho para mim que, se existem dois buddhismos que são semelhantes, que são quase idênticos: são aquele que o Buddha pregou e aquele que hoje se ensina na China e no Japão, o zen buddhismo. O resto são incrustações mitológicas, fábulas. Algumas dessas fábulas são interessantes. Sabe-se que o Buddha podia fazer milagres, mas, como Jesus Cristo, ele não gostava de milagres, não gostava de realizá-los. Parecia-lhe uma ostentação vulgar. 

Há uma história que vou contar: a da tigela de sândalo. Um comerciante, em uma cidade da Índia, fez esculpir um pedaço de sândalo em forma de tigela. Ele a colocou no topo de um amarrado de bambus, uma espécie de poste muito alto e besuntado de óleo. Ele disse que daria a tigela de sândalo a qualquer um que pudesse alcançá-la. Alguns professores heréticos tentaram, mas em vão. Quiseram subornar o comerciante para afirmar que eles a teriam alcançado. O comerciante se recusa e chega um discípulo pouco conhecido do Buddha. Seu nome não é mencionado fora desse episódio. O discípulo se eleva no ar, dá seis voltas ao redor da tigela, apanha a tigela e a entrega ao comerciante. Quando o Buddha ouve a história, expulsa-o da ordem por ter feito algo tão trivial. 

Mas o Buddha também fez milagres. Por exemplo este, um milagre de gentileza. O Buddha tinha que atravessar um deserto ao meio-dia. Os deuses de seus trinta e três céus lhe oferecem um guarda-sol cada um. O Buddha, que não quer ofender a nenhum dos deuses, se multiplica em trinta e três Buddhas de modo que cada deus veja, de cima, um Buddha protegido pelo guarda-sol que lhe ofertou.

Entre os feitos de Buddha há um iluminador: a parábola da flecha. Um homem foi ferido na batalha e não quer que lhe tirem a flecha. Antes, quer saber o nome do arqueiro, a que casta pertence, o material da flecha, em que lugar estava o arqueiro, a que distância da flecha. Enquanto está discutindo essas questões, ele morre. “Em contrapartida – diz o Buddha – eu ensino a arrancar a flecha.” O que é a flecha? É o universo. A flecha é a ideia do eu, de tudo o que levamos arraigado.

O Buddha diz que não devemos perder tempo com questões inúteis. Por exemplo: o universo é finito ou infinito? O Buddha viverá depois do Nirvāna ou não? Tudo isso é inútil, o importante é que arranquemos a flecha. Trata-se de um exorcismo, de uma lei de salvação.

Diz o Buddha: “Assim como o vasto oceano tem um só sabor, o sabor do sal, o sabor da Lei tem o sabor da salvação”. A Lei que ele ensina é vasta como o mar, mas tem um só sabor: o sabor da salvação. Desde então, os seguidores se perderam (ou encontraram talvez muito) em investigações metafísicas.

O objetivo do buddhismo não é esse. Um buddhista pode professar qualquer religião desde que siga essa Lei. O que importa é a salvação e as quatro nobres verdades: o sofrimento, a origem do sofrimento, a cura do sofrimento e os meios para alcançar a cura. No final está o Nirvāna. A ordem das verdades não importa. Foi dito que corresponde a uma antiga tradição médica em que se trata da doença com diagnóstico, tratamento e cura. A cura, neste caso, é o Nirvāna.

Agora chegamos à parte difícil a qual nossas mentes ocidentais tendem a rejeitar. A transmigração, que para nós é antes de tudo um conceito poético. O que transmigra não é a alma, porque o buddhismo nega a existência da alma, mas o karma, que é uma espécie de organismo mental que transmigra infinitas vezes.

No Ocidente, essa ideia está ligada a vários pensadores, principalmente a Pitágoras. Pitágoras reconheceu o escudo com o qual lutou na Guerra de Troia, quando tinha outro nome. No décimo livro da República de Platão está o sonho de Er. O soldado vê as almas que, antes de beber no rio do esquecimento, escolhem seu destino. Agamenon escolhe ser uma águia, Orfeu um cisne, e Ulisses – que já foi chamado Ninguém – escolhe ser o mais modesto e o mais desconhecido dos homens…

Há uma passagem de Empédocles de Agrigento em que ele recorda suas vidas anteriores: “Eu fui donzela, eu fui um galho, eu fui um cervo e fui um mudo peixe que surge do mar.”

César atribui essa doutrina aos druidas. O poeta celta Taliesi diz que não há uma forma no universo que não tenha sido a sua: “Fui um chefe na batalha, fui uma espada na mão, fui uma ponte que atravessa sessenta rios, estive enfeitiçado na espuma da água, fui uma estrela, fui uma luz, fui uma árvore, fui uma palavra em um livro, fui um livro no princípio.”

Há um poema de Rubén Darío, talvez o mais lindo deles, que começa assim: “Eu fui um soldado que dormiu no leito de Cleópatra, a rainha…”

A transmigração foi um grande tema da literatura. Podemos encontrá-la também entre os místicos. Plotino diz que passar de uma vida a outra é como dormir em distintos leitos e em distintos quartos. Creio que todos tivemos alguma vez a sensação de ter vivido um momento parecido em vidas anteriores.

Em um belo poema de Dante Gabriel Rossetti, “Sudden light”, se lê: “I have been here before”, “Eu estive aqui antes”. Dirige-se a uma mulher que possuiu ou que vai possuir, e lhe diz: “Você já foi minha, e já foi minha um número infinito de vezes, e vai continuar sendo minha infinitamente”.

Isto nos leva à doutrina dos ciclos, que está tão perto do buddhismo, e que Santo Agostinho refutou em “A Cidade de Deus”. Porque aos estoicos e aos pitagóricos havia chegado a notícia da doutrina hindu: que o universo consiste em um número infinito de ciclos que são medidos por kalpas. Kalpa transcende a imaginação dos homens. Imaginemos uma parede de ferro. Ela tem dezesseis milhas de altura e a cada seiscentos anos um anjo a esfrega com um pano finíssimo de Benares. Quando o pano tiver desgastado a parede de dezesseis milhas de altura, o primeiro dia de um dos kalpas terá se passado. E os deuses também duram tanto quanto duram os kalpas, e depois morrem.

A história do universo é dividida em ciclos, e nesses ciclos há longos eclipses nos quais não há nada ou nos quais apenas as palavras do Veda permanecem. Essas palavras são arquétipos que servem para criar as coisas.

A divindade Brahma também morre e renasce. Há um momento bastante patético em que Brahma está em seu palácio. Ele renasceu depois de um desses kalpas, depois de um desses eclipses. Percorre os quartos, que estão vazios. Pensa em outros deuses. Os outros deuses surgem ao seu comando; e eles acreditam que Brahma os criou, porque ele estava lá antes.

Vamos nos deter nesta visão da história do universo. No buddhismo não há um Deus; ou pode haver um Deus, mas não é essencial. O essencial é que acreditemos que nosso destino foi predeterminado por nosso karma ou karman. Se nasci em Buenos Aires em 1899, se fiquei cego, se aqui estou proferindo esta conferência, esta noite, diante de vocês, tudo isso resulta de minha vida anterior.

Não há um único fato da minha vida atual que não tenha sido preestabelecido em minha vida anterior. É a isso que se chama karma. O karma, como disse anteriormente, vem a ser uma estrutura mental, uma estrutura mental muito fina.

Estamos tecendo e entrelaçando a cada momento de nossa vida. E é que tecemos não só nossas vontades, nossos atos, nossos sonhos semiacordados, nosso sono, nossa semivigília: perpetuamente estamos tecendo essa coisa. Quando morremos, nasce outro ser que herda nosso karma.

Deussen, discípulo de Schopenhauer, que tanto apreciou o buddhismo, conta que se encontrou na Índia com um mendigo cego e sentiu compaixão por ele. O mendigo lhe disse: “Se nasci cego, isso se deve às culpas cometidas na minha vida anterior, é justo que eu seja cego.”

As pessoas aceitam a dor. Gandhi se opõe à fundação de hospitais dizendo que os hospitais e as obras de beneficência simplesmente atrasam o pagamento de uma dívida, que não se deve ajudar aos outros: se os outros sofrem, devem sofrer, uma vez que é uma culpa pela qual têm que pagar, e se eu lhes ajudo, estou atrasando o pagamento dessa dívida.

O karma é uma lei cruel, mas tem uma curiosa consequência matemática: se minha vida atual está determinada por minha vida anterior, essa vida anterior estava determinada por outra, e essa, por outra, e assim indefinidamente.

Vale dizer: a letra ‘z’ esteve determinada pela ‘y’, a ‘y’ pela ‘x’, a ‘x’ pela ‘v’, a ‘v’ pela ‘u’, desde que esse alfabeto tenha fim, mas não tenha princípio. Os buddhistas e hindus, em geral, acreditam em um infinito atual; acreditam que para chegar a este momento já se passou um tempo infinito e, ao dizer infinito, não quero dizer indefinido, inumerável, quero dizer estritamente infinito.

Dos seis destinos que estão permitidos aos homens (uma pessoa pode ser um demônio, pode ser uma planta, pode ser um animal), o mais difícil é o de ser homem, e devemos aproveitá-lo para nos salvarmos.

O Buddha imagina uma tartaruga no fundo do mar e uma pulseira que flutua. A cada seiscentos anos a tartaruga estica a cabeça, e seria muito difícil que a cabeça se encaixasse na pulseira. Pois bem, disse o Buddha, tão raro como o fato de que aconteça isso com a tartaruga e a pulseira é o fato de que sejamos humanos. Devemos aproveitar ser humanos para chegar ao Nirvāna.

Qual é a causa do sofrimento, a causa da vida, já que negamos o conceito de um Deus, já que não há um deus pessoal que cria o universo? Esse conceito é o que Buddha chama de ‘zen’. A palavra ‘zen’ pode nos parecer estranha, mas vamos compará-la com outras palavras que conhecemos.

Pensamos por exemplo na “vontade” de Schopenhauer. Schopenhauer concebeu “Die Welt als Wille und Vorstellung”, “o mundo como vontade e representação”. Há uma vontade que encarna em cada um de nós e produz essa representação que é o mundo. Isso nós encontramos em outros filósofos com um nome diferente. Bergson fala do elã vital, do ímpeto vital; Bernard Shaw, fala de “the life force”, a “força vital”, que é o mesmo.

Mas há uma diferença: para Bergson e Shaw, o elã vital são forças que devem ser impostas, devemos continuar sonhando o mundo, criando o mundo. Para Schopenhauer, para o sombrio Schopenhauer e para o Buddha, o mundo é um sonho, devemos parar de sonhá-lo e podemos chegar a isso através de longos exercícios. No início temos o sofrimento, que vem a ser o zen. E o zen produz a vida, e a vida é necessariamente miserável; já que o que é viver? Viver é nascer, envelhecer, adoecer, morrer, além de outras mazelas, entre elas uma muito lamentável, e que para o Buddha é uma das mais lamentáveis: não estar com quem amamos.

Temos que renunciar à paixão. O suicídio é inútil porque é um ato passional. O homem que comete suicídio está sempre no mundo dos sonhos. Devemos entender que o mundo é uma aparição, um sonho, que a vida é sonho. Mas devemos sentir isso profundamente, chegar a isso através dos exercícios de meditação.

Nos mosteiros buddhistas um dos exercícios é este: o neófito tem que viver cada momento de sua vida vivendo-o plenamente. Deve pensar: “agora é meio-dia, agora estou atravessando o pátio, agora me encontrarei com o superior”, e ao mesmo tempo deve pensar que o meio-dia, o pátio e o superior são irreais, são tão irreais como ele e seus pensamentos. Porque o buddhismo nega o ‘eu’.

Uma das desilusões principais é a do ‘eu’. O buddhismo concorda assim com Hume, com Schopenhauer e com nosso Macedônio Fernández. Não há um sujeito, o que há é uma série de estados mentais. Se digo “eu penso” estou incorrendo em um erro porque suponho um sujeito constante e, portanto, uma obra desse sujeito, que é o pensamento. Não é assim. 

Teríamos que dizer, aponta Hume, não “eu penso”, mas sim “se pensa”, como se diz “chove”. Ao dizer chove, não pensamos que a chuva exerce uma ação; não, está acontecendo algo. Da mesma forma, como se diz faz calor, faz frio, chove, devemos dizer: se pensa, se sofre, e evitar o sujeito.

Nos monastérios buddhistas os neófitos são submetidos a uma disciplina muito dura. Podem abandonar o monastério no momento que quiserem. Nem sequer – me diz Maria Kodama – são anotados os seus nomes.

O neófito entra no mosteiro e é submetido a um trabalho muito duro. Ele dorme, e depois de um quarto de hora eles o acordam; ele tem que lavar, tem que varrer; se ele adormece, eles o castigam fisicamente. Assim, ele tem que pensar o tempo todo; não nas suas falhas, mas na irrealidade de tudo. Ele tem que fazer um exercício contínuo de irrealidade.

Chegamos agora ao zen buddhismo e Bodhidharma. Bodhidharma foi o primeiro missionário, no século VI. Ele havia se mudado da Índia para a China e lá se encontra com um imperador que promoveu o buddhismo e que enumera para ele os mosteiros e santuários, e o informa sobre o número de neófitos buddhistas. Bodhidharma lhe diz: “Tudo isso pertence ao mundo da ilusão, mosteiros e monges são tão irreais quanto você e eu”. Depois vai meditar e se senta voltado para a parede. A doutrina chega ao Japão e se ramifica em diversas seitas. A mais famosa é o zen. No zen foi descoberto um procedimento para alcançar a iluminação. Só funciona depois de anos de meditação. Chega abruptamente; não se trata de uma série de silogismos.

Deve-se intuir a verdade de repente. O processo é chamado de ‘satori’ e consiste em um evento repentino, que está além da lógica. Nós sempre pensamos em termos de sujeito, objeto, causa, efeito, lógico, ilógico, algo e seu oposto; devemos transcender essas categorias. De acordo com os mestres do Zen, chega-se à verdade por meio de uma intuição brusca, através de uma resposta ilógica. O novato pergunta ao mestre o que é o Buddha. O mestre responde: “O cipreste é o jardim”. Uma resposta completamente ilógica que pode despertar para a verdade. O novato pergunta por que Bodhidharma veio do Oeste. O mestre pode responder: “Três libras de linho.” Essas palavras não contêm um sentido alegórico; são uma resposta absurda com o intuito de despertar, de súbito, a intuição. Pode ser um golpe físico também. O discípulo pode perguntar algo e o mestre pode responder com um golpe.

Há uma história – obviamente deve ser lendária – sobre Bodhidharma. Um discípulo acompanhava Bodhidharma e lhe fazia perguntas, mas Bodhidharma nunca respondia. O discípulo tentava meditar e, depois de um tempo, cortou seu braço esquerdo e se apresentou diante do mestre como uma prova que queria ser seu discípulo. Como prova de sua intenção, ele se mutilou deliberadamente. O mestre, sem se focar no feito, que no fim das contas era uma ação física, uma ação ilusória, disse: “O que você quer?” O discípulo respondeu: “Venho há muito tempo procurando a minha mente e não a encontrei.” O mestre resumiu: “Não a encontrou porque não existe.” Nesse momento o discípulo compreendeu a verdade, compreendeu que não existe o eu, compreendeu que tudo é irreal. Aqui temos, mais ou menos, a essência do buddhismo zen.

É muito difícil explicar uma religião, sobretudo uma religião que alguém não professa. Acredito que o importante não é que vivamos o buddhismo como um jogo de lendas, mas como uma disciplina, uma disciplina que está ao nosso alcance e que não nos exige o ascetismo. Também não nos permite abandonar-nos às liberdades da vida carnal. O que nos pede é meditação, uma meditação que não tem que ser sobre nossas culpas, sobre nossa vida passada.

Uma das temáticas da meditação do buddhismo zen é pensar que nossa vida passada foi ilusória. Se eu fosse um monge buddhista, pensaria nesse momento que comecei a viver agora, que toda a vida anterior de Borges foi um sonho, que toda a história universal foi um sonho. Mediante exercícios de ordem intelectual nos liberaremos do zen. Uma vez que compreendamos que o eu não existe, não pensaremos que o eu pode ser feliz ou que nosso dever é fazê-lo feliz.

Chegaremos a um estado de calma. Isso não quer dizer que o Nirvāna equivale à cessação do pensamento, e uma prova disso estaria na lenda do Buddha. O Buddha, embaixo da figueira sagrada, chega ao Nirvāna, e, no entanto, continua vivendo e pregando a Lei durante muitos anos. 

O que significa atingir o Nirvāna? Simplesmente, que nossas ações não projetam  mais sombras. Enquanto estamos neste mundo, estamos sujeitos ao karma. Cada um de nossos atos entrelaça aquela estrutura mental chamada karma. Mas quando atingimos o Nirvāna, nossas ações já não projetam mais sombras, somos livres. Santo Agostinho dizia que, quando estamos salvos, não temos que pensar no mal ou no bem. Continuamos a fazer o bem, sem pensar nele.

O que é o Nirvāna? Grande parte do interesse que o buddhismo provocou no Ocidente se deve a essa bela palavra. Parece impossível que a palavra Nirvāna não contenha algo precioso. O que é o Nirvāna, literalmente? É extinção, apagamento. Foi conjeturado que quando alguém atinge o Nirvāna, se apaga. Mas quando morre há um grande Nirvāna, e depois a extinção.

Contrariamente, um orientalista austríaco faz a observação de que o Buddha usava a física da sua época, e a ideia de extinção não era nessa época a mesma que agora: porque se pensava que uma chama, ao apagar-se, não desaparecia. Naquela época pensava-se que a chama continuava vivendo, que perdurava em outro estado, e assim Nirvāna não significa obrigatoriamente a extinção. Pode significar que continuamos de outro modo. Um modo inconcebível para nós.

Em geral, as metáforas dos místicos são metáforas nupciais, metáforas de embriaguez, mas as dos buddhistas são diferentes. Quando se fala do Nirvāna não se fala do vinho do Nirvāna, ou da rosa do Nirvāna, ou do abraço do Nirvāna. De fato, é mais comparado com uma ilha. Com uma ilha firme no meio das tormentas. É comparado com uma alta torre; pode ser comparado também com um jardim. É algo que existe por si mesmo, além de nós.

O que eu lhes disse hoje é fragmentário. Teria sido absurdo que eu expusesse uma doutrina à qual me dediquei tantos anos – e da qual entendi pouco, realmente – com intenção de mostrar uma peça de museu. Para mim o buddhismo não é uma peça de museu: é um caminho de salvação. Não para mim; mas para milhões de homens. É a religião mais difundida do mundo, e espero havê-la tratado com todo o respeito ao expô-la esta noite.

© Tradução do original em espanhol pela equipe de tradução do Nalanda, e revisada por Maria Lucia do Couto Diniz para a Comunidade Nalanda.

* Nota do editor: Apresentamos esta palestra como um testemunho histórico da abrangência de interesses deste grande escritor argentino. Jorge Luís Borges proferiu esta palestra em 1977 e de certa forma ela reflete o estado dos estudos buddhistas da época. Devemos manter isso em mente todo o tempo ao ler esse texto a fim de evitar tomá-lo como integralmente uma apresentação fidedigna do buddhismo. Borges se esforça por fazer sentido a partir das variadas e díspares informações, e é significativo que ele reconheça esta situação quando diz: “É muito difícil explicar uma religião, sobretudo uma religião que alguém não professa.” (Ricardo Sasaki)