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[1] As coisas deste mundo são meras convenções de nossa própria criação. Tendo estabelecido-as nos perdemos nelas, e recusamo-nos a deixá-las, dando origem ao apego às ideias e opiniões pessoais. Esse apego nunca termina, é saṁsāra, fluindo sem parar. Não tem fim. Agora, se nós conhecermos a realidade convencional, então conheceremos a Libertação. Se claramente conhecermos a Libertação, então conheceremos a convenção. Isso é conhecer o Dhamma. Aqui existe a conclusão.
Peguem as pessoas, por exemplo. Na realidade, as pessoas não têm nomes, nós nascemos despidos para o mundo. Se temos nomes, eles surgem apenas através da convenção. Eu contemplo isso e vejo que não saber a verdade sobre esta convenção pode ser realmente prejudicial. É simplesmente algo que usamos por conveniência. Sem ela não poderíamos nos comunicar, não haveria nada a dizer, nenhuma linguagem.
Eu tenho visto os ocidentais quando eles se sentam juntos em meditação no Ocidente. Quando eles se levantam depois de sentar, homens e mulheres juntos, às vezes eles vão e se tocam uns aos outros na cabeça! [2] Quando eu vi isso eu pensei: “Ehh, se nos apegarmos à convenção ela dará origem a impurezas imediatamente ali”. Se nós pudermos deixar passar a convenção, desistir das nossas opiniões, estaremos em paz.
Como os generais e coronéis, homens de posição e patente, que vêm me ver. Quando eles vêm, dizem: “Oh, por favor, toque minha cabeça” [3]. Se pedem dessa forma, não há nada de errado, eles estão contentes em ter a cabeça tocada. Mas se você toca suas cabeças no meio da rua, é uma história diferente! Isso é por causa do apego. Então, eu sinto que o desapego é realmente o caminho para a paz. Tocar uma cabeça é contra nossos costumes, mas na realidade não é nada. Quando eles concordam em que a toquemos, não há nada de errado com isso, é o mesmo que tocar um repolho ou uma batata.
Aceitar, abrir mão, desapegar – esse é o caminho para a leveza. Onde quer que estejam se agarrando, algo está nascendo neste local. Há perigo aí. Buddha ensinou sobre as convenções e ensinou a nos desfazermos da convenção da forma correta e, assim, alcançar a Libertação.
Isto é liberdade, não se apegar a convenções. Todas as coisas neste mundo têm uma realidade convencional. Tendo as convenções estabelecidas, não devemos ser enganados por elas, porque se perder nelas realmente leva ao sofrimento. Este ponto, que estabelece regras e convenções, é de extrema importância. Aquele que pode superá-las está além do sofrimento.
No entanto, eles são uma característica do nosso mundo. Tome o Sr. Boonmah, por exemplo. Ele costumava ser apenas um na multidão, mas agora ele foi nomeado como Comissionário do Distrito. É apenas uma convenção, mas é uma convenção que devemos respeitar. É parte do mundo das pessoas. Se você pensar: “Ah, antes éramos amigos, nós costumávamos trabalhar juntos na alfaiataria”, então vocês vão e lhe afagam a cabeça em público, ele vai ficar com raiva. Isso não é certo, ele vai se ressentir. Assim, devemos seguir as convenções a fim de evitar dar origem a ressentimentos. É útil entender a convenção, viver no mundo trata-se disso apenas. Saber a hora e o lugar certos, conhecer a pessoa.
Por que é errado ir contra as convenções? É errado por causa das pessoas! Vocês devem ser inteligentes, conhecer tanto a convenção quando a Libertação. Saber o momento certo para cada um. Se nós soubermos como utilizar as regras e convenções confortavelmente, então seremos habilidosos.
Mas se nós tentarmos nos comportar de acordo com o nível mais alto da realidade na situação errada, isso é errado. Onde está o erro? É errado em relação às impurezas das pessoas, aqui está o erro! Todas as pessoas possuem impurezas. Em uma situação nós nos comportamos de uma maneira, em outra situação devemos nos comportar de maneira diferente. Nós devemos saber os prós e os contras porque vivemos no meio de convenções. Os problemas acontecem porque as pessoas se apegam a elas. Se supomos que algo é, então é. Está lá porque nós supomos que esteja lá. Mas se você olhar de perto, no sentido absoluto as coisas não existem realmente.
Como falo muitas vezes, antes éramos leigos e agora somos monges. Vivíamos dentro da convenção ‘do leigo’ e agora vivemos dentro da convenção ‘do monge’. Somos monges por convenção, não monges devido à libertação. No começo estabelecemos convenções como essas, mas se uma pessoa simplesmente quiser, isso não significará que ela superará as impurezas da mente. Se tomarmos uma mão cheia de areia e aceitarmos chamá-la de sal, isso será sal? Isso será o sal, mas só no nome, não na verdade. Você não pode usá-lo para cozinhar. Ele é só inserido naquele acordo, pois não há realmente nenhum sal lá, só areia. Ele se torna sal só pela nossa suposição dele ser assim.
Esta palavra ‘Libertação’ é somente uma convenção, mas ela está além de apenas convenções. Tendo conseguido a liberdade, tendo realizado a Libertação, ainda temos de usar a convenção para nos referirmos a ela como Libertação. Se não tivermos convenção não podemos nos comunicar, portanto a convenção realmente tem o seu uso.
Por exemplo, as pessoas têm nomes diferentes, mas elas continuam sendo pessoas. Se não tivermos nomes para nos diferenciar e quisermos chamar alguém que está em uma multidão, dizendo: “Ei, Pessoa! Pessoa!”, isso seria inútil. Não saberíamos dizer quem iria responder porque são todos ‘pessoa’. Mas se você chamar: “Ei, João!”, então o João virá, e os outros não responderão. Os nomes cumprem somente essa necessidade. Pelos nomes podemos nos comunicar, eles fornecem a base para o comportamento social.
Então, vocês devem conhecer ambos, convenção e libertação. As convenções têm um uso, mas na realidade não há ali nada de fato. Até as pessoas são inexistentes. Elas são apenas grupos de elementos, nascidas de condições causais, crescendo dependentes de condições, existindo por um tempo, e depois desaparecendo de modo natural. Ninguém pode se opor ou controlar isto. Mas sem convenções não teríamos nada a dizer, não teríamos nomes, nem prática, nem trabalho. As regras e as convenções são estabelecidas para nos fornecer uma linguagem, para tornar as coisas convenientes, e é tudo.
Tomem o dinheiro, por exemplo. Nos tempos antigos não havia moedas nem notas, não tinham valor. As pessoas costumavam trocar mercadorias, mas era difícil guardar as coisas, por isso criaram o dinheiro, usando moedas e notas. Talvez, no futuro, venhamos a ter um novo rei que decrete que não temos de usar dinheiro em papel, mas sim cera, derretendo-a e pressionando-a em pedaços. Dizemos que isto é dinheiro e usamo-lo em todo o país. Esqueça a cera, eles podem mesmo decidir fazer do esterco de galinha a moeda local – nada mais pode ser dinheiro, só o esterco de galinha! Então as pessoas lutariam e matariam por causa de esterco de galinha!
Isto é o que é. Vocês poderiam usar muitos exemplos para ilustrar a convenção. O que nós usamos como dinheiro é simplesmente uma convenção que criamos, tem a sua utilização nessa convenção. Tendo sido decretado ser dinheiro, torna-se dinheiro. Mas, na realidade, o que é o dinheiro? Ninguém pode dizer. Quando há um acordo popular sobre algo, então uma convenção surge para satisfazer a necessidade. O mundo é assim.
Isso é convenção, mas é realmente difícil fazer com que as pessoas comuns entendam a Libertação. Nosso dinheiro, nossa casa, nossa família, nossas crianças e parentes são simplesmente convenções que inventamos, mas, realmente, vistos à luz do Dhamma, não pertencem a nós. Talvez ao ouvir isso, nós não nos sintamos bem, mas a realidade é assim. Essas coisas têm valor apenas por meio das convenções estabelecidas. Se estabelecermos que isso não tem valor, então não tem. Se estabelecermos que isso tem valor, então tem. É assim que as coisas são, nós trazemos as convenções para o mundo para preencher uma necessidade.
Mesmo o corpo não é realmente nosso, nós somente supomos que ele é. É somente uma pressuposição de nossa parte. Se vocês tentarem encontrar um eu permanente real, substancial no interior dele, não conseguirão. Há somente elementos que nascem, continuam por um tempo e então morrem. Tudo é dessa forma. Não há substância real e verdadeira no corpo, mas é apropriado que o usemos. É como uma xícara. Em algum momento, ela vai quebrar, mas enquanto ela está aí vocês devem usá-la e cuidar bem dela. É um instrumento para seu uso. Se quebrar, há problemas; assim, mesmo se ela deve quebrar, vocês têm de tentar preservá-la ao máximo.
E assim também com os quatro apoios [4] que o Buddha ensinava repetidamente a contemplar. Eles são apoios que o monge depende para continuar sua prática. Tanto quanto viverem devem depender deles, mas devem entendê-los. Não se apeguem a eles, fazendo surgir o desejo sedento em suas mentes.
Convenção e libertação estão continuamente relacionadas entre si. Mesmo que usemos uma convenção, não confie nela como sendo a verdade. Se você se apegar a ela, o sofrimento surgirá. O conceito de certo e errado é um bom exemplo. Algumas pessoas veem errado como sendo o certo e o certo como sendo errado, mas, afinal, quem realmente sabe o que é certo e o que é errado? Nós não sabemos. Pessoas diferentes estabelecem convenções diferentes sobre o que é certo e o que é errado, mas Buddha tomou o sofrimento como sua linha-mestra. Se você quiser discutir sobre isso, isso não terá fim. Um diz “certo”, outro diz “errado”. Um diz “errado”, outro diz “certo”. Na verdade, nós realmente não sabemos nada sobre o que é certo e o que é errado. Mas em um nível útil e prático, podemos dizer que o certo é não prejudicar a si mesmo nem aos outros. Desta forma, traçamos um objetivo construtivo para nós.
Então, depois de tudo, ambas as regras e convenções e libertação são simplesmente dhammas. Uma é superior que a outra, mas elas andam de mãos dadas. Não há como garantirmos que coisa alguma é definitivamente assim ou assada, então Buddha disse para apenas deixá-las ser. Deixá-las ser como incertas. Por mais que você goste ou não goste, você deve entendê-las como incertas.
Independentemente de tempo e lugar, toda prática do Dhamma alcança a sua realização no lugar onde não há nada. É o local de entrega, do vazio, de abandonar a carga. Este é o fim. Não é como a pessoa que diz: “Por que a bandeira está tremulando ao vento? Eu digo que é por causa do vento”. Outra pessoa diz que é por causa da bandeira. Outra retruca que é por causa do vento. Isso não tem fim! O mesmo que a velha charada: “O que veio primeiro, a galinha ou o ovo?” Não há como chegar a uma conclusão, isto é apenas a natureza
Todas essas coisas que nós vemos são apenas convenções que nós próprios estabelecemos. Se você compreender essas coisas com sabedoria, então você compreenderá impermanência, sofrimento e não-eu. Essa é a perspectiva que leva à iluminação.
Vocês sabem, treinar e ensinar pessoas com nível variado e entendimento é realmente difícil. Algumas pessoas têm certas ideias, você diz alguma coisa a elas e elas não acreditam em você. Você diz a verdade para elas e elas dizem que não é a verdade. “Eu estou certo, você está errado”… Não há fim para isso.
Se vocês não soltarem, haverá sofrimento. Eu falei para vocês antes sobre os quatro homens que foram para a floresta. Eles escutaram uma galinha cacarejando: “Co-có-ri-có!” Um deles admirou-se: “É um galo ou uma galinha?” Três deles disseram juntos: “É uma galinha”, mas o outro não concordou, insistindo que era um galo. “Como poderia uma galinha cacarejar assim”? ele perguntou. Eles replicaram: “Bem, ela tem uma boca, não tem?” Eles discutiram e discutiram até às lágrimas, realmente irritados, mas, no final, estavam todos errados. Se você diz galinha ou galo, são apenas nomes. Nós estabelecemos essas convenções dizendo que um galo é desse jeito, uma galinha daquele outro jeito,um galo cacareja desse jeito, uma galinha cacareja de outro jeito, e assim nos tornamos grudados no mundo. Lembrem-se disso! Na verdade, se você apenas diz que, na realidade, não há nenhuma galinha ou nenhum galo, então, é o fim disso.
No campo da verdade convencional, um lado está certo e o outro errado, mas nunca haverá uma concordância completa. Discutir até às lágrimas não traz nenhum proveito.
O Buddha nos ensinou a não agarrarmos. Como praticar o desapego? Nós praticamos simplesmente ao desistirmos do apego, mas este não-apego é muito difícil de entender. É necessária uma sabedoria aguçada para investigar e penetrar nisto, para realmente atingir o não-apego.
Quando pensam sobre isso, se as pessoas estão felizes ou tristes, contentes ou descontentes, isso não depende que elas tenham muito ou pouco – isso depende da sabedoria. Toda aflição pode ser transcendida através da sabedoria, enxergando a verdade das coisas.
Por isso o Buddha nos incitou a investigar e a contemplar. Esta ‘contemplação’ significa simplesmente tentar resolver os problemas corretamente. Esta é a nossa prática. Assim como nascimento, envelhecimento, doença e morte – elas são ocorrências as mais comuns e naturais. O Buddha nos ensinou a contemplar nascimento, envelhecimento, doença e morte, mas algumas pessoas ainda não entendem isso. “O que há para ser contemplado?”, elas dizem. Elas nasceram, mas não conhecem o nascimento; elas morrerão, mas não sabem nada da morte.
A pessoa que repetidamente investiga essas coisas verá. Tendo visto, gradualmente resolverá seus problemas. Até mesmo se ela ainda tiver apego, se tiver sabedoria e conseguir ver nascimento, envelhecimento, doença e morte como acontecimentos naturais da vida, então será capaz de se livrar do sofrimento. Nós estudamos o Dhamma simplesmente para isto: curar o sofrimento.
Não há mesmo muito mais além como base do Buddhismo, existe apenas nascimento e morte do sofrimento, e isto o Buddha chamou de a verdade. Nascimento é sofrimento, envelhecimento é sofrimento, doença é sofrimento e morte é sofrimento. As pessoas não veem esse sofrimento como a verdade. Se soubermos a verdade, então, sabemos sobre o sofrimento.
Este orgulho nas opiniões pessoais, estes argumentos, não têm fim. De modo a descansar nossas mentes, encontrar a paz, deveríamos contemplar nosso passado, o presente, e as coisas que estão guardadas para nós. Como nascimento, envelhecimento, doença e morte. O que podemos fazer para evitar sermos afligidos por essas coisas? Embora possam ter ainda um pouco de preocupação, se investigarmos até conhecermos de acordo com a verdade, todo sofrimento reduzirá, porque não mais nos apegaremos a elas.
Notas
[1] Uma palestra informal dada no dialeto no nordeste thailandês, transcrita a partir de uma fita não identificada
[2] Tocar a cabeça de uma pessoa na Thailândia é usualmente considerado um insulto.
[3] É considerado auspicioso na Thailândia ter a cabeça tocada por um monge altamente estimado.
[4] Os quatro apoios – mantos, alimento, moradia e medicamentos.
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
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Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.
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