~ Venerável Khammai Dhammasami ~

Uma Palestra de Dhamma feita pelo Venerável Dhammasami em 13 de abril de 2003 na residência de Thida Win em Los Angeles, EUA

Introdução

Joseph Goldstein afirmou em seu livro “Meditação do Insight” que as várias escolas buddhistas que têm vindo para o Ocidente não parecem conhecer e muito menos entender o que cada uma faz em seus respectivos monastérios e centros. Cada uma tem sua maneira única de fazer as coisas. Se um buddhista birmanês fosse participar de um puja tibetano (ritual), ele ficaria tão confuso quanto um americano que lá fosse. Da mesma forma, os buddhistas do Laos também têm sua tradição e cultura distintas. Quando recitam seus parittas eles acendem velas feitas de cera de abelha. Thailandeses e birmaneses também têm suas próprias tradições. Os birmaneses, por exemplo, dizem awkatha, uma fórmula para pedir perdão antes de observar os Cinco Preceitos. Os thailandeses, no entanto, podem pedir perdão no final e podem dizer isso em pāli. Mas estas diferenças são apenas num nível cultural.

Porém, Joseph Goldstein disse que estava estimulado com o fato de que todas sabem o que as Quatro Nobres Verdades são. As Quatro Nobres Verdades não são apenas o tema central do ensinamento do Buddha, mas também o ensino comum entre todas estas escolas e tradições. Então, isso mostra o quanto é importante para nós entendermos as Quatro Nobres Verdades.  Precisamos entender não apenas o que o Buddha ensinou, mas também do que tratam todas as tradições.

Cultura e Dhamma

Hoje eu quero discutir esta questão, o fato de que as Quatro Nobres Verdades superam cultura e tradição. Em geral, somos capazes de separar o que é cultura do que é Dhamma, mas, por vezes, isso pode apresentar dificuldades. De fato, as Quatro Nobres Verdades, por si só, são o Dhamma, a pura essência do Buddhismo.

Em seu primeiro sermão, o Dhammacakkapavattana Sutta, tudo o que o Buddha falou foi as Quatro Nobres Verdades. E, no final do sermão, ele afirmou que havia exposto o Dhamma, plenamente e de forma completa (svakkhāto dhammo). Então, realmente, o que quer que aconteça nos outros suttas que foram pregados depois, se o Dhammacakkapavattana Sutta sobreviver e as Quatro Nobres Verdades forem ainda ensinadas nas várias escolas do Buddhismo, então a sāsana (ensinamento do Buddha) continuará a existir.

As escrituras religiosas buddhistas foram registradas muito tempo depois de o Buddha ter dado os seus sermões e apesar dos melhores esforços para preservá-los ao longo dos séculos, pode ter havido erros nos registros e cópias; as escrituras buddhistas pāli foram redigidas algumas centenas de anos após o Buddha ter falecido. Isso não é exclusivo do Buddhismo. A Bíblia (novo testamento) foi escrita somente cerca de 200 anos após a morte de Jesus Cristo. O Corão, dividido em 28 capítulos, não foi escrito enquanto o profeta Maomé ainda estava vivo, mas se manteve na memória e transmitido oralmente. As mais antigas escrituras hindus, o Bhagavad Gita, foram escritas somente no século 18. Antes disso, se mantiveram também por memória. E, ainda assim, o registro não foi feito pelos indianos, mas por um professor alemão.

As escrituras religiosas estão aí para você estudar, investigar e formar sua própria opinião. Mas você não deve rejeitar ou aceitá-las de imediato. O Buddha disse a Kondañña, um dos Cinco Amigos: “Ehi bhikkhu”, que significa “Venha bhikkhu e estude o Dhamma”. Ele foi convidado para examiná-lo por si mesmo. No Primeiro Sermão, o Buddha também falou sobre como superar completamente dukkha (sofrimento). Por isso é importante compreender o sutta adequadamente.

Uma birmanesa participante de um retiro de meditação em Birmingham, disse que havia estado em Amaravati, no mosteiro Warwick e noutros mosteiros buddhistas Theravāda ingleses, onde eles sempre ensinam e discutem as Quatro Nobres Verdades, o que a deixou muito satisfeita. Mas, ao mesmo tempo, ela também sentiu que era demasiado elementar. Bem, na Birmânia, devido a este tipo de opinião, alguns monges não se atrevem a dar sermões sobre as Quatro Nobres Verdades porque temem que as pessoas podem não manter os monges num elevado conceito se assim fizerem. Em vez disso optam por dar sermões sobre outros suttas menos conhecidos apenas para impressionar os leigos. E, muito frequentemente, como as pessoas não entendem o que foi dito, elas costumam dizer “sādhu” e voltam para casa sem discutir sobre o que foi pregado.

Aqui no Ocidente, você pode ser perguntado a respeito do que é o Buddhismo ou no que você acredita, quando diz que não acredita em Deus. O daga americano (discípulo buddhista não monge) que veio ontem, estava me contando sobre suas experiências pessoais quando ele foi à Birmânia. Ele disse que fazia o que era pedido por sua namorada birmanesa por polidez, mas ele não entendia o que estava acontecendo. Ele também disse que não queria fingir que entendia.

Então, eu expliquei-lhe que na Birmânia há duas coisas. Uma delas é a cultura e a outra é o dhamma. A maior parte do povo birmanês tem dificuldade em diferenciar essas duas. Eu dei-lhe um exemplo. Quando nos prostramos três vezes, esta é a nossa cultura birmanesa. Mas olhando para isso do ponto de vista do dhamma, estamos fazendo isso para nos livrar de nosso orgulho/arrogância. (nivāto ca, no Maṇgala Sutta, significando que ser humilde é uma bênção.)

Quando as pessoas têm orgulho, elas acabam brigando e discutindo umas com as outras. “Eu te disse”, é dito muitas vezes, porque você quer marcar um ponto contra a outra pessoa. Você também não tem respeito pela outra pessoa. Então, para nos livrar de nosso orgulho/arrogância há o Dhamma. Isso nos é apresentado de uma forma cultural, um modo muito sutil, civilizado e também educativo, prostrando-nos por três vezes. Em geral, ninguém gostaria de prostrar-se, mas, ao fazer isso, está-se enfraquecendo o orgulho. Isso também significa que se aceita o fato de que se tem orgulho. Assim, a prática de prostrar-se três vezes é da cultura birmanesa, mas quando o fazemos conscientemente com o conhecimento de que temos orgulho e que estamos tentando reduzir este orgulho por prostrar-nos, então nós também estamos praticando o Dhamma.

Às vezes, podemos nos prostrar diante de um monge, mas acabamos tendo uma discussão com ele, ou nos prostrar diante de nossos pais, mas acabamos brigando com eles. Isto é porque estamos seguindo só prática cultural, mas esquecendo a sua essência de Dhamma.

Uma socióloga religiosa francesa, Louis du Mont, usou o termo rotinização para descrever isso, porque a prática acaba se tornando uma rotina. Quando acordamos de manhã e, antes de ir para a cama à noite, por hábito, nos prostramos três vezes, é uma rotina. Lembro-me como quando era um jovem noviço, quando tínhamos que fazer nossas recitações em grupo no mosteiro, eu recitava os parittas de memória do começo ao fim, sem um erro. Eu nem sabia quando terminava, porque havia se tornado uma rotina e minha mente não estava nela. Por isso, é muito importante estar consciente do que está em sua mente. Se você perder essa consciência você vai perder o Dhamma e vai ficar só com a cultura. Você só manterá a casca. No entanto, a cultura também é muito importante, porque cada vez que você se prostra e lembra-se que está tentando erradicar o seu orgulho, você desenvolve a atenção, você se torna meditativo e progride na prática do Dhamma.

A Verdade ou Dhamma

As Quatro Nobres Verdades são chamadas verdades porque são válidas para todos. Se algo é verdadeiro apenas para os birmaneses e não para os ocidentais, então não é a verdade. Algo que só é verdade para os americanos, e não para os árabes, não é a verdade. No dia 19 de março, quando eu estava na Universidade de Harvard, um estudante disse: “Senhor, o senhor deu um sermão sobre mettā (amorosidade) e nos ensinou a meditação mettā. O que você sugere que nós façamos com a iminente guerra entre o Iraque e os EUA?” Eu lhe disse que não havia nada que eu pudesse fazer para impedir a guerra. Os estudantes de Harvard são, em sua maioria, contra a guerra, então, eu disse que se cada vez que olhar para a Casa Branca você ficar exasperado, então você vai ter uma guerra em Bagdá, que está fora de você, e outra guerra dentro de você. O mínimo que podemos fazer é parar a guerra em nosso coração.

Quando você encontra uma pessoa de quem não gosta e fica com raiva, essa raiva faz você ficar tenso e infeliz. Quando o presidente Bush ouve o nome de Saddam Hussein, ele se torna infeliz e vice-versa. Mas, se eles esquecerem os nomes e se concentrarem apenas em sua raiva, é possível que a raiva mude para mettā e karunā (compaixão), porque eles compartilham uma experiência comum, raiva. E, por ela, eles podem ser capazes de se relacionar um com o outro. Tornando a experiência impessoal eles poderiam experimentar mettā em vez de dosa (raiva), e pelo menos eles poderiam manter a paz e a harmonia em suas próprias mentes. Quando você está nesse estado de espírito, então você está pronto para ajudar. O que quero dizer é que quando há o medo da derrota há tensão, e isso é comum a ambos os lados. Isto é o que o Buddha quis dizer por dukkha. Este dukkha não tem nacionalidade, gênero ou idade. É comum a todos nós. As pessoas lutam quando se esquecem deste dukkha comum existente em todos nós.

O Significado de Dukkha

Quando eu estava em Ottawa, na minha viagem para visitar um mosteiro de floresta no estilo thailandês, um buddhista de Bangladesh aconselhou-me a não falar sobre dukkha porque, segundo ele: “Só nós (os asiáticos) temos dukkha”. Então eu respondi: “Não, até mesmo o primeiro-ministro canadense tem dukkha”. Ele disse que não acreditava nisso. “O primeiro-ministro tem um ótimo salário. Tem muitos secretários e motoristas. Tem um monte de segurança em torno de si”, o cavalheiro continuou. Eu interrompi: “O fato de que ele precisa de segurança em torno mostra que ele tem medo. Eu não tenho segurança. Não preciso. E quando eu olho para ele eu me sinto muito triste por ele. Ele não pode sair para passeios de manhã como eu faço. Ele não pode ir a uma livraria como eu. Ele não pode fazer as coisas livremente. Este é o seu dukkha”.

O importante a observar aqui é que o daga de Bangladesh era incapaz de ver este dukkha, pois há coisas que tornam dukkha obscuro. Dessas, a principal culpada é a nossa personalização; pensar que só eu tenho dukkha, não o Premiê canadense. Apenas Saddam tem dukkha e não Bush. Em pāli, esta personalização é chamada de “attā”. Quando esse attā obscurece nossa percepção, não vemos dukkha. Mesmo se vemos dukkha, só vemos como “o meu sofrimento”. Às vezes, podemos até considerar este dukkha como sukha (prazer).

O povo birmanês costuma ficar assustado com a palavra dukkha porque sempre a equipara com problemas e dificuldades. Assim, a palavra dukkha soa muito pessimista e fui aconselhado a não falar sobre dukkha com muita freqüência. Mas o Buddha usou a palavra dukkha e falou sobre dukkha por toda a Sua vida. No entanto, eu creio que Ele foi uma das pessoas mais felizes do mundo. Infelicidade não tem nada a ver com falar sobre dukkha.

O que queremos dizer por dukkha? Em termos muito simples, qualquer coisa que tire a felicidade ou a paz é dukkha. Quando você medita e seu joelho começa a doer, você pode começar a sentir raiva ou aflição. Quando isso acontece não há paz, não há felicidade, não há calma, e isso é o que queremos dizer por dukkha. No entanto, dor nem sempre causa sofrimento. Pode haver momentos de meditação em que uma dor surge, mas você não se sente angustiado. O Buddha chamou a dor que surge de dukkha vedanā (sensação física) e seu surgimento não necessariamente leva a sofrimento em nossas mentes. Quando observamos o surgimento de dukkha vedanā conscientemente, não ficamos frustrados, impacientes, tensos, irritados ou desacorçoados. Às vezes você consegue. Em outras palavras, quando a dor física surge sofrimento mental pode ou não ocorrer. Então, como se evita o sofrimento mental? Isto é o que o Buddha tentava ensinar. Se você não consegue o que quer, torna-se infeliz. Mas também há momentos em que você não se sente infeliz, mesmo que você não consiga o que quer. Então, qual é a diferença?

Uma vez, o Buddha foi convidado para passar um vassa (o retiro das chuvas), em Veranja, pelo governador daquela cidade. O Buddha foi lá com sua enorme comitiva da sangha. Infelizmente, o governador esqueceu-se de seu convite e não providenciou alimentos para o Buddha e Seus discípulos. Foi só depois que três meses se passaram que ele se lembrou. Durante este período, o Buddha e seus discípulos tiveram que sair nas rondas de esmola de alimento. Porque não havia muitos devotos do Buddha nessa área, houve poucos doadores e, sendo um lugar onde os comerciantes geralmente montavam acampamento, a comida que foi doada consistia de arroz quebrado e milho que eram usados como ração para cavalos. O Buddha e seus discípulos sobreviveram por três meses inteiros e não condenaram o governador por isso. Nem culparam o seu kamma por suas dificuldades. Isto é muito importante, especialmente porque os birmaneses têm uma tendência a culpar seu kamma por qualquer infortúnio que encontram. O fato de que eles não culparam ninguém, é também importante notar, mostra que não deram morada a qualquer sentimento de raiva. Quando não há raiva, então mettā cresce naturalmente. Quando o governador lembrou e trouxe as doações de alimento o Buddha aceitou e deu um discurso como se nada tivesse acontecido. O Buddha foi capaz de discorrer sobre o Dhamma da mesma forma que foi capaz de manter-se calmo. Esta história é narrada na introdução do Vinaya Piṭaka (regras monásticas). Quando eu a li eu estava estudando o vinaya, e o meu respeito e admiração pelo Buddha cresceram. Mais de 1600 anos atrás, os Aṭṭhakathā Sayadaws (o monges comentadores) profetizaram que, um dia, os monges vão reclamar até quando tiverem comida boa e saudável ofertadas a eles.

Então, o que é dukkha? É comer as ásperas quireras de arroz e milho? Ou é não ter uma refeição do MacDonald, ou reclamar de um prato que precisa de um pouco mais de tomate? Se uma pessoa se queixa assim, isso mostra que está insatisfeita com alguma forma. Isto é dukkha. Este tipo de dukkha é visto em todos e em todos os dias. Este dukkha surge porque nos falta conscientização.

Assim, o prazer também pode ser visto como dukkha. Por que buscamos prazer? Jovens por volta dos 18, 19 anos, têm grandes ambições e expectativas. Quando suas expectativas não são atendidas, eles ficam frustrados e não sabem como lidar com a frustração. Eles só sabem que estão infelizes. Eles começam a procurar prazer só para ficar longe de tal infelicidade. Podem ouvir música muito alta. Tentam resolver seu conflito interno buscando refúgio em algo exterior. Em seguida, podem ir a uma boate e, por causa da mudança no ambiente, a mente se distrai. Mas isso pode funcionar apenas nas primeiras vezes. Logo precisam tentar algo diferente para fugir da infelicidade. Começam a usar álcool, o que os ajuda a esquecer a sua frustração. Isso também funciona apenas por um curto período e pode, gradualmente, levar a beber em excesso. Em seguida percebem que dançar por 10 ou 15 minutos em uma boate não é mais suficiente e eles então precisam dançar por algumas horas para distraí-los de suas frustrações. O que está acontecendo aqui é que a frustração que eles estão enfrentando está dentro deles e o prazer que estão procurando está fora. A busca de um alívio é, em si mesma, dukkha, e o alívio que se tem é de curta duração.  Eventualmente o álcool não é suficiente para proporcionar alívio e eles se voltam para as drogas para obterem uma carga de energia ou um sentimento de prazer. Da mesma forma, as drogas só proporcionam alívio temporário e eles acabam abusando de drogas em busca de prazer. Eles começam fugindo da infelicidade, mas acabam praticamente com a mesma coisa.

O hábito se torna um círculo vicioso com sofrimento mental levando ao sofrimento físico, e o sofrimento físico levando a mais angústia mental. Acaba que não se pode determinar qual é a causa e qual é o efeito. Lembro-me de um poema escrito por um astrólogo birmanês, também poeta, de Pegu, que eu li quando era jovem. Tratava-se de dois atletas correndo em uma pista circular em uma disputa. Um já tinha completado um circuito enquanto o outro ainda estava perto da metade da prova. Se você chegasse como espectador neste ponto não seria capaz de dizer quem estava na liderança. É assim, desta forma, que se é incapaz de dizer como dukkha começou em primeiro lugar.

O Buddha afirmou que a questão de como o mundo foi criado não é relevante para nosso dukkha. Ele apenas evidencia o dukkha que nós temos, que é a questão pertinente no momento. Os sentimentos de decepção, insatisfação, frustração, inveja e ciúme, todos estes são dukkha. Onde quer que vamos, este dukkha nos segue, se vivemos nos EUA, Reino Unido ou Birmânia. Portanto, todos temos dukkha, mas podemos não estar cientes disso. Esta ignorância em si é também dukkha de acordo com o Buddha. Uma vez que você percebe dukkha como dukkha, então ele deixa de ser dukkha e se torna tolerável. Se você é ainda ignorante de dukkha como dukkha, então você engendra dukkha.

A Primeira Nobre Verdade – Dukkha Sacca

Buddha afirmou que a Primeira Nobre Verdade, que dukkha existe neste mundo. Precisamos entender a palavra dukkha corretamente e dentro do nosso contexto do dia-a-dia. Esta é uma afirmação da verdade que há dukkha ou sofrimento. Esta sabedoria é também chamada de saccā ñana ou o conhecimento de que existe dukkha. Ñana significa conhecer e saccā significa coisas como elas realmente são.

Dukkha é como uma planta que cresce de uma semente. Se há uma causa, o efeito irá seguir. Mas, assim como uma semente é produzida pela planta, tanto a causa quanto o efeito nem sempre permanecem como são. Um efeito pode se tornar uma causa e vice-versa. O pai concebe um filho e o filho, por sua vez, torna-se um pai mais tarde para produzir um neto. Causa e efeito se articulam assim. Então, o que é causa ou o que é efeito torna-se relativo àquilo de que se está falando.

Avijjā paccayā saṇkharā, saṇkharā paccayā viññana, em relação a avijjā (ignorância), saṇkharā (volição ou esforço) torna-se o efeito. Mas em relação a viññana (consciência), saṇkharā torna-se a causa. Isto é chamado processo de condicionalidade. Este processo de condicionalidade está em constante movimento, girando sem parar. Dukkha também surge deste modo.

A Segunda Nobre Verdade – Dukkha Samudaya Saccā

A causa de dukkha é chamada samudaya. Assim, a causa é samudaya e o efeito é dukkha. Em seu sermão, o Buddha falou sobre o efeito antes de falar sobre a causa porque a causa é um pouco mais difícil de entender. Para descobrir a causa é preciso procurá-la ou investigá-la. Quando os médicos examinam um paciente eles identificam o sintoma primeiro, ou seja, dor de estômago, ou dor de cabeça. Em seguida, eles procuram a causa por observação e investigação. O Buddha deu Seu sermão exatamente assim. Ele era muito prático. Ele não estava descrevendo como as coisas aconteceram, mas como alcançamos a compreensão das coisas. Se tivéssemos que ver como as coisas aconteceram samudaya viria primeiro. Se a causa da doença puder ser erradicada, então a doença desaparecerá.

A Terceira Nobre Verdade – Dukkha Nirodha Saccā

O fim de um processo é chamado de nirodha e dukkha nirodha saccā significa a verdade da cessação* de dukkha. Vamos ver em breve o que isso significa.

A Quarta Nobre Verdade – Magga Saccā

O caminho para o fim de dukkha, o tratamento, os medicamentos utilizados, é chamado dukkha nirodha gāminī paṭipada. Paṭipada, significa caminho e gāminī significa o que conduz a. Em outras palavras significa o caminho que leva à cessação* de dukkha. Em suma, é chamado magga saccā. No texto pāli, você encontrará a palavra dukkha no início.

As Quatro Nobres Verdades

  1. Dukkha saccā
  2. Dukkha samudaya saccā
  3. Dukkha nirodha saccā
  4. Magga saccā (consistindo de oito componentes)

Se você considerar 1 e 2 como o lado escuro da vida, então 3 e 4 podem ser considerados como a parte luminosa da vida. Se você falar apenas sobre o lado luminoso e não do lado escuro, então não poderá ser uma verdade ou Saccā. Não seria completo apenas falar sobre as causas das coisas ruins e não mencionar nada sobre como superá-las. Neste sermão está tudo lá. É completo. Qual o problema? É dukkha. Como é causado? Há um fim para dukkha e como se conseguir isso? Tudo isso é explicado no sermão.

Toda a prática do Buddhismo está incluído neste sermão, nas Quatro Nobres Verdades. 1 e 2 estão relacionados como causa e efeito, mas 3 e 4 não. Se você pensar bem, você vai entender que praticando o 4, ou trilhando o Caminho, praticando o Caminho Óctuplo, isto conduz à cessação* de dukkha. Assim, o número 4 é meramente um caminho a ser seguido. Para dar um exemplo, há uma estrada de Phoenix para Los Angeles. Mas o caminho não é a causa de Los Angeles. A estrada não produz a cidade. Só leva a ela. Em outras palavras, nibbāna é o estado onde causa e efeito deixa de existir. Enquanto há causa, um efeito a seguirá. A razão porque dukkha e samudaya são conhecidos coletivamente como saṁsāra é porque eles são cíclicos de acordo com a lei de causa e efeito. Se nibbāna tivesse uma causa, então também estaria num ciclo. Se Deus criou o homem, então tem de haver alguém que criou Deus. Caso contrário, a teoria da criação não tem uma lógica crível. É assim. Desta forma, 3 e 4 não estão relacionados como causa e efeito. Se você seguir o caminho, então o ciclo de causa e efeito cessa. Quando a causa de dukkha cessa, então pode-se chamar isso de nibbāna.

Se contemplarmos dukkha que enfrentamos em nossa vida diária, dukkha de raiva, ciúme, inveja, etc., eles estão constantemente lá. Depois, há dukkha de incerteza, ansiedade, tédio, frustração e inquietação. É essa inquietação que nos faz reorganizar nossa mobília. Uma vez que são movidas as coisas parecem diferentes, mas poucos dias depois começam a parecer enjoativas novamente. Aí se muda as coisas de novo. Você nunca está satisfeito*. Você acha que o problema é o grande sofá, então você o muda de lugar. Você não percebe que o problema está dentro de você. Quando mantém os olhos abertos, você só vê os problemas externos. É por isso que o Buddha nos instrui a fechar os olhos quando meditamos, para que o nosso foco mude automaticamente para o que está dentro da nossa mente. O Satipaṭṭhāna Sutta sempre menciona problemas externos e internos (ajjhattaṃ vā bahiddhā vā ajjhatta-bahiddhā vā) no final de todos os catorze capítulos.

Assim, você pode aplicar as Quatro Nobres Verdades à sua inquietação ou raiva. Primeiro, é preciso reconhecer inquietação ou raiva. Em seguida, entender a causa de sua inquietação ou de sua raiva. Então, siga a prática ou o caminho que conduz para a erradicação da inquietação ou da raiva. Eventualmente haverá cessação da inquietação ou da raiva. O Buddha chamou isso de vedanā (sensações mentais) nirodha gāmini paṭipadā. Assim, as Quatro Nobres Verdades podem ser vistas em toda parte.

As Quatro Nobres Verdades e Sati

Usando a meditação da vigilância precisamos explorar as Quatro Nobres Verdades. O que precisamos fazer é observar dukkha por nós mesmos. Consideramos lobha (ganância), dosa (raiva), māna (orgulho), etc, como dukkha. Existe um lugar onde não há dukkha? Devido ao conceito de que deve haver lugar onde não há dukkha, as pessoas procuram por este lugar. Um colega monge certa vez, brincando, disse que todos os dias reza três vezes e faz seu pedido por nibbāna. Mas, até agora, ele não recebeu uma resposta. Bem, como é que alguém pode pedir uma coisa assim ao Buddha?

Então, o que devemos fazer? Devemos fugir de dukkha? Quando as pessoas vão a bares ou boates por se sentirem frustrados, eles estão apenas fugindo de dukkha. Eles começam percebendo o ficar em casa como dukkha. Se você parar de ir à escola porque foi repreendido pelo professor, isso significa que você está fugindo também. Esta é uma resposta muito comum. O Buddha salientou que, desde tempos imemoriais, as pessoas estão fugindo de dukkha, ainda assim, dukkha continua a existir. Em outras palavras, esta resposta não funciona.

O Buddha disse que você tem que encará-lo. Então, quando meditamos, e a raiva surge, devemos vê-la como dukkha e aceitar o fato de que temos raiva. Nós temos que confrontar essa raiva, essa frustração, etc. Precisamos de alguma coragem para fazer isso. Nosso instinto natural é fugir. Nossa raiva, inquietação e frustração nos faz querer nos levantar e sair, abandonar, mesmo a meditação. É um impulso bastante poderoso. A fim de nos tornar capazes de resistir a isto, o Buddha nos exorta a desenvolver a atenção vigilante ou sati. Isto também é chamado bala em pāli, ou seja, energia, força, coragem ou poder.

Então, primeiro, não devemos fugir de dukkha. Quando observamos vedanā ou dor, e ao contrário das expectativas, ela aumenta, sentimos vontade de desistir. Podemos perder nossa coragem. A fim de nos ajudar a enfrentar este dukkha, o Buddha nos dá uma arma, e esta arma é sati (mindfulness/vigilância). Sati é a base para tudo. A palavra fundação em pāli é paṭṭhāna. Então satipaṭṭhāna significa atenção vigilante como uma fundação. Sayadaw U Silananda usa a palavra fundação em seu livro.

Sati é tanto uma base como um fator primordial. Eu acho que eu já mencionei isso em meu livro “Different Aspects of Mindfulness”. Quando vamos para uma batalha, precisamos de uma pessoa para nos liderar. Em thailandês, a palavra patthan significa presidente ou uma pessoa que controla ou supervisiona. Em suma, o caminho buddhista para resolver problemas é enfrentá-los, e para ser capaz de fazer isso você tem que equipar-se com sati. Assim que você tiver sati outras qualidades, como samādhi, começarão a desenvolver-se.

Quando temos uma dor de cabeça, e temos atenção vigilante a isso, vamos tomar as medidas necessárias para nos livrarmos dela. Nós, primeiro, aceitamos o fato de que temos uma dor de cabeça. Se nós não aceitarmos isso não vamos fazer nada a respeito e não vamos melhorar. Se tivermos uma doença, mas não aceitamos, não tomaremos qualquer medicamento para melhorar. A doença vai piorar. Então sati também tem a ver com a aceitação do que está acontecendo. No momento em que estamos tendo uma dor de cabeça a verdade é que a dor de cabeça existe e temos de aceitar isso. Como diz o ditado: “a verdade dói”. Mas não temos escolha. Temos de reconhecer isso. Esta aceitação é um aspecto de sati.

Então, nós continuamente observamos atentamente, e este é outro aspecto de sati. Com a observação contínua obtém-se uma melhor compreensão. Por exemplo, ao observar uma dor em seu joelho você pode esperar que a dor desapareça. Mas isso não acontece. Agora você está despertando para o que está acontecendo. Você se torna consciente de sua opinião e de sua atitude em relação à dor. De fato, a palavra “Buddha” significa despertar. O Buddha, naturalmente, conquistou sabedoria sobre todos os aspectos do universo sem a ajuda de um professor e se tornou desperto, e é por isso que lhe chamam “Samma Sambuddha”. A palavra birmanesa que usamos muitas vezes é “Buddhabatha” ou religião buddhista. Então, se não temos consciência ou despertamos para o que está acontecendo conosco, fica difícil de nos chamar buddhistas. A qualidade mais importante de ser um buddhista é despertar para as coisas como elas são, para a realidade.

Assim, se esperamos que a dor no nosso joelho desapareça, e não estamos cientes dessa nossa expectativa, vamos ficar muito chateados quando isso não acontecer. Tornamo-nos desapontados de termos esperado, por um longo tempo, que ela fosse embora. Também ficamos impacientes para que ela diminua. Expectativa, desapontamento, impaciência, raiva, frustração, todos começam a multiplicar-se. Mas quando temos sati e observamos esse processo, percebemos como todos eles se desenvolvem e progridem, exatamente como um cientista descobrindo o processo e as causas de uma doença. A compreensão vem gradualmente, pouco a pouco. Este é o processo do despertar. Esta é a essência da meditação, de observar, de compreender e de ser despertado. (Qual será a meta final?) Eu não posso antecipar isso. Não há começo nem fim. Há apenas formação e desintegração. Para um yogui, o que é importante saber não é de onde dukkha se origina, mas como surge. Então, quando você observa vedanā (dor) bem de perto e não se distancia dela, você personaliza a dor sem comprendê-la. Você pode começar a comparar-se aos outros: por que eu estou enfrentando isso, enquanto todos os outros meditantes estão sentados tão calmamente? Então, para prevenir-se de fazer isso, enquanto o seu samādhi (concentração) ainda não está bem desenvolvido, você deve apenas reconhecer a dor brevemente e então voltar o seu foco para sua respiração.

Este reconhecimento ou aceitação é o primeiro passo da atenção vigilante. Mais tarde você vai ser capaz de observar vedanā por um período muito mais longo sem dukkha (impaciência, frustração, etc.) surgindo em sua mente. Então, você vai começar a entender a verdadeira natureza. A dor pode surgir e pode diminuir ou desaparecer por si só. O que é da natureza de formação e desintegração. Você vem a realizar isto só pela observação, não por falar sobre isso. Quando você começar a ver este fenômeno de formação e desintegração ao invés da experiência de vedanā (dor), então o seu despertar está completo. Esta realização* ou sabedoria que você então alcança é como uma arma que erradica a raiz de causação*. Claro, agora estamos ainda nos primeiros estágios e como se estivéssemos apenas começando a espanar anos de sujeira e poeira acumuladas. Nós precisamos espanar constantemente com sati (atenção vigilante), porque se pararmos vamos apenas acumular a sujeira novamente.

Sabedoria

Então, o que nós precisamos fazer com a Primeira Nobre Verdade, Dukkha Saccā? Temos que reconhecer e aceitar dukkha. Nós temos que compreender. Esta sabedoria é chamada kiccagaba. Gaba significa compreensão; o entendimento de que dukkha não é algo do que fugir, mas deve ser entendido. Se for entendido, aí mesmo termina. Quando dizemos: “esta criança não entende dukkha”, queremos dizer que ainda é muito ignorante e continua a ser impertinente. Ela está girando no ciclo do saṁsāra. Quando a criança entender melhor aí ela vai parar de se comportar mal. Assim, a compreensão de dukkha é muito importante.

O que nós precisamos fazer com Dukkha Samudaya Saccā, a Segunda Nobre Verdade? Temos que erradicar as causas de dukkha. Nós temos que compreender os sintomas da doença e erradicar as suas causas. A erradicação é chamada pahāna. A Terceira Nobre Verdade, Dukkha Nirodha Saccā, deve ser alcançada ou atingida. A última, Magga Saccā, é para praticar, é chamada bhāvetabba (bhāvanā, cultivo). Em termos do que temos que fazer, a primeira é entender ou pariggātabba. A segunda é erradicar ou pahātabba. A terceira é de alcançar ou sacchikātabba e a quarta é práticar ou bhāvetabba.

Os Doze Modos de Sabedoria

A realização do Buddha sobre verdade (a existência) de dukkha ou a realização desta sabedoria é conhecida como saccā ñana. Sua realização* sobre o que fazer com dukkha, ou o atingimento desta sabedoria em particular, é conhecido como kicca ñana. Sua realização de que havia entendido e cumprido a tarefa da compreensão é conhecida como katagāna. Assim, existem três aspectos da sabedoria ou três tipos de sabedoria na Primeira Verdade. Muitas vezes as pessoas me perguntam como você sabe quando está iluminado. Elas são tão ansiosas. Olhe para o terceiro tipo de sabedoria, que nasce em você naturalmente – você vai perceber que está iluminado quando a iluminação surgir.

Da mesma forma com respeito a samudaya saccā, a sabedoria ou o conhecimento da verdade (existência) de que as causas de dukkha existem, é conhecida como saccā ñana. O conhecimento do que fazer com respeito às causas de dukkha, ou seja, erradicá-las, é conhecido como kicca ñana. O conhecimento de que o trabalho de erradicação foi realizado é conhecido como katagāna. Mais uma vez, há três.

Com nirodha saccā também, a sabedoria ou o conhecimento da verdade (existência) de que há um final para dukkha é conhecido como saccā ñana. Esta sabedoria é importante na vida porque com esse conhecimento pode-se ser otimista, você sabe que há um fim para o sofrimento. O conhecimento do que fazer para alcançar o fim do sofrimento é conhecido como kicca ñana. O conhecimento de que o fim do sofrimento foi alcançado e de que o trabalho foi cumprido é conhecido como katagāna.

O último magga saccā, é a prática ou o Caminho. O conhecimento de que o caminho que conduz à cessação de dukkha existe é conhecido como saccā ñana. O conhecimento do que precisa ser feito, ou seja, seguir o Caminho, é conhecido como kicca ñana. O conhecimento de que a trabalho foi cumprido, ou seja, o Caminho foi seguido até o fim, é conhecido como katagāna.

Certa vez eu li no Readers’ Digest a história de uma máquina que tinha parado de funcionar e nenhum dos engenheiros da fábrica conseguia consertá-la. Então, um especialista externo teve de ser chamado. O especialista passou algum tempo olhando ao redor da máquina e, finalmente, pegou um martelo e bateu na máquina com ele. Ele fez isso apenas uma vez. Imediatamente a máquina começou a funcionar. Quando o especialista entregou a sua fatura de US$ 200,00, o gerente da fábrica achou que era muito e então pediu por um desconto no pagamento. Aí o especialista replicou: “Para bater na máquina com o martelo eu cobro US$1,00. Mas por saber onde bater eu cobro US$ 199,00”. Isto indica o quão importante é kicca ñana. Os supramencionados três tipos de sabedoria sobre as Quatro Nobres Verdades também são conhecidos como os Doze Modos de Sabedoria.

Isto é o dhamma e ele existe. Mas porque as pessoas não estão cientes, isso é exatamente como a máquina que não está funcionando. O Buddha foi o único que pôs a máquina em movimento. Apalavra pavattana significa por em movimento. Lembre-se: Ele não vai cobrar de você.

(Traduzido do birmanês para o inglês por Kyaw Thinn, Birmingham, Reino Unido)

* No texto em inglês algumas palavras que contem a partícula ‘sati’, como ‘satisfaction’, ‘realisation’, estas partículas estão formatadas em itálico (satisfaction), o que parece ter a intenção de ilustrar a primordialidade de ‘sati’ (atenção vigilante). Não foi possível reproduzir em português na maior parte dos casos.

© Ven. Khammai Dhammasami, 2003
© Centro Nalanda, 2012 com a permissão do autor
tradução do inglês de Jorge Luiz Furtado para o Centro Buddhista Nalanda, 2012


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