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~ Rodney Downey ~

Gostaria de começar falando sobre alguns enganos que temos a respeito do Dharma do Buddha, os quais são muito comuns em todo o mundo ocidental, e mesmo no Oriente. A causa desses enganos tem a ver com palavras e com aquilo que elas significam.

Hoje, no café da manhã, eu comi bolo. E ontem eu aprendi que existe uma expressão em português: Quando você vai se encontrar com uma pessoa e ela não comparece, diz-se que você “ganhou um bolo”. Imaginem que daqui a 500 anos, um arqueólogo encontre um diário de anotações de um brasileiro. Lá é dito: “Eu fui encontrar com Paulo e ganhei um bolo”. O tradutor diria que eles comeram um bolo juntos! Esta é a armadilha das palavras, as quais têm um significado para uma época e cultura em particular. O mesmo se dá com alguns dos ensinamentos do Buddha.

Consideremos as Quatro Nobres Verdades, as quais estão no centro do ensinamento do Buddha. A tradução usual das Quatro Nobres Verdades é: “A vida é sofrimento; a causa do sofrimento é o desejo; a cessação do sofrimento é se ver livre do desejo; o modo de fazê-lo é o Caminho Óctuplo”.

Isto está correto? De modo algum! Isto não é o que o Buddha falou. Este é o problema! Vamos começar com a Primeira Nobre Verdade, que é sempre traduzida como “A vida é sofrimento”. Mas que coisa horrível! Veja a vida! É uma força excitante e de grande diversidade, de inacreditável deleite. Por que, então, é traduzido como a vida é sofrimento?

Vamos examinar a língua em que o Buddha falava. O Buddha disse, de fato, que a vida é dukkha. Esta palavra sempre é traduzida como sofrimento, mas isso não é de modo algum o que significa. A raiz de dukkha é duk, e significa “eixo”. Veja a época do Buddha: A forma mais complexa de transporte era uma carroça; era uma carroça de madeira, como é na Índia ainda hoje, com um eixo de madeira unindo duas rodas também de madeira, e puxada por búfalos.

A palavra dukkha significava o eixo que está fora do prumo, que está fora de alinhamento. Imaginem o sofrimento de uma pessoa sentada nessa carroça, a força que os búfalos devem fazer e, ao invés da carroça seguir suavemente, ela está fora do eixo, desalinhada.

Então, Buddha fala sobre a vida – a vida de todos nós – usando o exemplo da carroça que tem seu eixo fora de alinhamento. Ele diz que nossas vidas estão fora de equilíbrio. E é esse desequilíbrio que leva ao sofrimento. Ele nunca disse que a vida é sofrimento. Este é um ponto muito importante. Nossas vidas estão fora de equilíbrio, ou, como os chineses falariam, não está fluindo junto com o Tao. Ambas as expressões significam a mesma coisa. Esta é a Primeira Nobre Verdade.

A Segunda Nobre Verdade se refere à razão da vida ser assim, e isso é geralmente traduzido como desejo. Mas nós teríamos uma vida muito estranha se não tivéssemos desejos. Não é o que o Buddha falou. A palavra que o Buddha usou foi taṇhā e significa ‘sede’. Nas palavras do próprio Buddha isso foi descrito: “É como um homem vagando no deserto por muitos dias, sedento por água”. Isso também é a sede do ‘eu quero’ e do ‘eu não quero’, e é por isto que todos nós sofremos.

O que é este ‘eu quero’ e ‘eu não quero’? O que isso indica? Significa que não estamos satisfeitos com este momento, ‘agora’. Porque se estivéssemos ‘aqui’ (Rodney bate no chão), não haveria ‘querer’ nem ‘não querer’. Simplesmente haveria este momento, agora. O Buddha, utilizando-se deste exemplo, estava dizendo: “Esteja com este momento”. O momento em que você quer ou não quer é o momento em que você deixa o agora, o momento presente, e aí, então, isso leva ao sofrimento.

Então, esse desequilíbrio que temos faz com que nunca estejamos no momento e, não estando no momento, isso leva ao sofrimento. É muito simples. Agora você pode examinar a sua própria vida a partir dessas palavras.

Mas o Buddha não parou por aí. Ele nos deu uma cura para este ‘não estar no momento’, este sofrimento. Esta cura é a Terceira Nobre Verdade, que é a verdade mais mal entendida de todas.

Ele fala do Nirvāṇa ou Nibbāna, que é uma palavra que é usada em todas as línguas nos dias de hoje, mas ninguém sabe o que significa. A palavra é muito simples. Significa expirar, apagar – como apagar uma vela. Muito simples! O Buddha apenas usava palavras simples, mas mesmo assim elas foram totalmente mal compreendidas, porque geralmente ela é traduzida como extinção do desejo. Correto? Não significa de modo algum isto.

No tempo do Buddha, a palavra nirvāṇa, apagar, significava simplesmente isto: apagar. Mas havia uma grande diferença. De acordo com a ciência e a filosofia do Vedånta, quando você apaga uma chama, como em uma vela ou em uma lâmpada de óleo, você diz que a chama ficou livre. Quando você acende uma vela, você captura a chama, como se a colocasse numa gaiola. Então, em ‘nossa’ idéia de apagar uma vela nós dizemos ‘extinguir’ ou ‘matar’; mas, na época do Buddha, apagar uma chama significava libertá-la. Da mesma forma como seu “bolo”; coisas completamente diferentes!

Então, o Buddha nunca disse algo como matar os seus desejos; ele falava da libertação ou liberdade deste apego ao ‘eu quero’ ou ‘eu não quero’. Quando você abandona isso, então a sua vida entra num equilíbrio. Aí, então, você está completamente livre. Este é um ensinamento maravilhoso, porque ele é prático e você pode vê-lo em sua própria vida.

Se você sempre está no momento, você não pode sofrer, você está livre para ir para o próximo momento, livre para seguir para o próximo momento, sempre totalmente livre, sem estar preso no ‘eu quero’ ou ‘eu não quero’. E é isso que o Buddha ensinava. Ele, então, nos deu o Caminho Óctuplo como uma forma de alcançar isso. Da mesma forma como as pessoas dizem hoje: “Como eu posso levar esta prática para a minha vida?”, o Buddha nos deu a resposta. É o Caminho Óctuplo: A Compreensão Correta, o Pensamento Correto, a Linguagem Correta, a Ação Correta, os Meios de Vida Correto, o Esforço Correto, a Vigilância Correta, a Concentração Correta. Mas cuidado com a palavra ‘correto’, porque ‘correto’ implica que há um ‘errado’, e o Buddha não usava a palavra desta forma; o Buddha não falava desde um ponto de vista dualista.

Uma palavra melhor do que ‘correto’ é ‘apropriado’. Linguagem Apropriada, Pensamento Apropriado, Compreensão Apropriada, etc. Vamos, então, apenas examinar um desses fatores, utilizando a palavra ‘apropriada’ ao invés de ‘correta’. Linguagem Apropriada significa não falar mal de uma outra pessoa, não utilizar palavras para se mostrar, não utilizar palavras para sugerir algo que não é correto. Há muitos exemplos em suas vidas. Simplesmente falar demais é uma linguagem inapropriada. Podemos falar que ler demais também é uma linguagem inapropriada, ou ver televisão demais também seria linguagem inapropriada.

O que o Buddha quis fazer ao ensinar sobre essas várias ações não apropriadas foi nos dar um instrumento para examinarmos as nossas próprias vidas. O que significa ‘apropriado’ em termos de nossa vida? Significa Linguagem, Ação e Pensamento que nos ajudam a nos livrarmos de nosso desequilíbrio, de nosso dukkha.

O Caminho Óctuplo usado apropriadamente irá nos ajudar a colocar a nossa vida em equilíbrio. Isso não é algum ensinamento esotérico, nem aquilo que freqüentemente acontece no ensinamento mal compreendido sobre o que o Buddha ensinou.

As Quatro Nobres Verdades são muito práticas, baseadas na vida real. É um ensinamento sobre como viver a sua vida. E posso assegurar a vocês, que se lerem qualquer ensinamento do Buddha que parecer muito distante de sua vida agora, isso é uma tradução ruim. Porque o Buddha era um homem prático e inteligente, que olhava profundamente para o que fazemos conosco. A partir daí, ele nos ofereceu um modo de sair disso. Espero que isso que falei sobre as Quatro Nobres Verdades tenha lançado um pouco de luz. Muito obrigado!

Traduzido por Ricardo Sasaki
© 2003 Edições Nalanda


Rodney Downey foi diretor de uma das maiores companhias de varejo na África do Sul até 1995. Ele começou sua prática de meditação em 1980 e participou de retiros nas maiores tradições buddhistas. Antes de se filiar à Kwan Um School of Zen, ele esteve nos EUA para avançar em seu treinamento no Rochester Zen Centre. Em fevereiro de 1996 ele foi indicado como Abade do Dharma Centre, e ao mesmo tempo Professor Sênior de Dharma. Combinando sua extensa experiência tanto nos negócios quanto na prática da meditação ele compartilha sua riqueza de insight através de palestras e retiros. Presentemente ele é professor convidado da Universidade de Cape Town – Graduate School of Business. Em novembro de 2005, ele e sua esposa visitaram Belo Horizonte pela quinta vez a convite do Centro Nalanda, dando palestras e retiros em Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre.

Edições Nalanda publicou, em 2003, uma coletânea de seus escritos, juntamente com os de sua esposa Heila Poep Sa Nim, sob o título “Simplesmente Faça!”. “As Quatro Nobres Verdades” é um capítulo do livro.

 


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