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[1] Combata a ganância, combata a aversão, combata a ilusão… estes são os inimigos. Na prática do Buddhismo, o caminho do Buddha, nós combatemos com o Dhamma, usando a persistência paciente. Lutamos resistindo de inumeráveis maneiras.
O Dhamma e o mundo estão inter-relacionados. Onde existe o Dhamma existe o mundo, onde existe o mundo exista o Dhamma. Onde existem as impurezas existem aqueles que vencem as impurezas, que lutam contra elas. Isso se chama batalha interior. Para batalhar exteriormente as pessoas tomam bombas e armas para lançar e atirar; elas conquistam e são conquistadas. Conquistar os outros é o caminho do mundo. Na prática do Dhamma nós não temos que batalhar contra os outros, mas em vez disso conquistar nossa própria mente, pacientemente persistindo e resistindo a todos os nossos humores.
Quando se trata de prática do Dhamma, não abrigamos ressentimentos e inimizades entre nós, mas em vez disso, abandonamos todas as formas de má vontade em nossas próprias ações e pensamentos, libertando-nos do ciúme, aversão e ressentimento. O ódio apenas poderá ser superado ao não se guardar ressentimentos e rancores.
Ações prejudiciais e represálias são diferentes, mas estreitamente relacionadas. As ações uma vez realizadas estão acabadas, não há necessidade de responder com vingança e hostilidade. Isso é chamado de “ação” (kamma). A “represália” (vera) significa continuar esta ação ainda mais com os pensamentos de “vocês fizeram isso comigo, então darei o troco”. Não há um final para isso. Isso leva à contínua procura de vingança e, assim, o ódio nunca é abandonado. Enquanto nos comportamos como se esta cadeia permanecesse intacta, não haverá um final para isso. Não importando aonde formos, as rixas continuam.
O supremo professor [2] ensinou o mundo a ter compaixão por todos os seres. Mas, no entanto, o mundo continua assim. O sábio deve avaliar e escolher aquelas coisas que têm verdadeiro valor. O Buddha foi treinado nas várias artes da guerra como príncipe, mas ele viu que elas não eram verdadeiramente úteis, elas limitavam-se ao mundo com as suas guerras e agressão.
Por essa razão, ao nos treinarmos a nós próprios como aqueles que abandonaram o mundo, devemos aprender a abrir mão de todas as formas de mal, abrindo mão de todas as coisas que são causa de inimizade. Conquistamo-nos a nós mesmos, não tentamos conquistar os outros. Lutamos, mas apenas com as impurezas; se houver ganância, combatemo-la; se existir aversão, lutamos contra ela; se houver ilusão, esforçamo-nos por abandoná-la.
Isso chama-se “Combate do Dhamma”. Essa combatividade do coração é realmente difícil, na verdade é a coisa mais difícil de todas. Tornamo-nos monges no intuito desta contemplação: aprender a arte de combater a ganância, a aversão e a ilusão. Esta é nossa responsabilidade primordial. Esta é a batalha interior: combater as impurezas. Mas há muito poucas pessoas que assim o fazem. A maioria combate outras coisas, raramente combatem as impurezas. Raramente, até mesmo as enxergam.
O Buddha nos ensinou a abandonar todas as formas do mal e a cultivar a virtude. Esse é o caminho correto. Ensinar desse modo é como se o Buddha nos segurasse e nos colocasse no início do caminho. Estando no caminho, se o trilhamos ou não, é conosco. A tarefa do Buddha termina ali mesmo. Ele mostra o caminho, aquele que está correto e aquele que não está correto. Isso basta, o resto depende de nós.
Agora, tendo alcançado o caminho que nós ainda não conhecemos, ainda não enxergamos, precisamos então aprender. Para aprender devemos estar preparados para enfrentar algumas dificuldades, como qualquer estudante no mundo. É bastante difícil obter o conhecimento e aprendizado necessários para prosseguirem em seus objetivos. Eles têm de perseverar. Quando eles pensam de forma errônea ou sentem aversão ou preguiça devem esforçar-se antes de poderem se formar e conseguir um emprego. A prática de um monge é semelhante. Se nos determinarmos a praticar e contemplar, então vamos certamente obter a visão do caminho.
Diṭṭhi-māna é algo prejudicial. Diṭṭhi significa “visão” ou “opinião”. Todos os modos de ver são chamados diṭṭhi: ver o bem como mal, ver o mal como bem… qualquer modo como vemos as coisas. Isso não é o problema. O problema está no apego a essas visões, chamado māna; está em agarrar essas visões como se fossem a verdade. Isso nos leva a andar às voltas do nascimento à morte, sem nunca alcançar a completude, simplesmente por causa desse apego. Assim, o Buddha advertiu-nos para abandonar os pontos de vista.
Se muitas pessoas vivem juntas, como fazemos aqui, elas ainda podem praticar confortavelmente se suas opiniões estiverem em harmonia. Mas até mesmo dois ou três monges teriam dificuldade se suas opiniões não forem boas ou harmoniosas. Quando nos tornamos humildes e deixamos passar nossas opiniões, mesmo que haja muitos de nós, reunimo-nos no Buddha, Dhamma e Sangha [3].
Não é verdade dizer que haverá desarmonia somente porque há muitos de nós. Apenas olhe para uma centopeia. Uma centopeia tem muitas pernas, não tem? Ao meramente olhar para ela vocês poderiam pensar que ela teria dificuldade de caminhar, mas de fato ela não tem. Na nossa prática, ocorre o mesmo. Se praticarmos como a nobre Sangha do Buddha praticou, então será fácil. Isto é, supatipanno – aqueles que praticam bem; ujupatipanno – aqueles que praticam corretamente, ñāyapatipanno – aqueles que praticam para transcender o sofrimento, e sāmicipatipanno – aqueles que praticam apropriadamente. Essas quatro qualidades, estabelecidas em nós, nos farão verdadeiros membros da Sangha. Mesmo se formos centenas ou milhares, não importa quantos, todos viajamos pelo mesmo caminho. Nós viemos de diferentes circunstâncias antecedentes, mas somos iguais. Mesmo que nossas concepções possam diferir, se praticarmos corretamente não haverá atrito. Da mesma forma como todos os rios e corredeiras que fluem para o mar… uma vez que desembocam no mar têm todos o mesmo sabor e cor. É assim também com as pessoas. Quando elas entram na corrente do Dhamma, há um só Dhamma. Mesmo vindo de diferentes lugares, elas se harmonizam, se fundem.
Mas o pensar que causa todas as disputas e conflitos é diṭṭhi–māna. Portanto, o Buddha nos ensinou a deixar os pontos de vista. Não permita a māna se agarrar a esses pontos de vista para além de sua relevância.
O Buddha ensinou o valor do constante sati [4], lembrança. Se estivermos em pé, caminhando, sentado ou deitado, onde quer que estejamos, devemos ter este poder de lembrança. Quando temos sati vemos a nós mesmos, vemos nossas próprias mentes. Vemos “o corpo dentro do corpo”, “a mente dentro da mente”. Se não temos sati, não sabemos nada, não temos conhecimento do que está acontecendo.
Assim, sati é muito importante. Com sati constante, nós ouviremos o Dhamma do Buddha o tempo todo. Isso porque “olho vendo formas” é Dhamma; “ouvido escutando sons” é Dhamma; “nariz sentindo cheiros” é Dhamma; “língua sentindo sabores” é Dhamma; “corpo tendo sensações” é Dhamma; quando impressões chegam à mente, isso também é Dhamma. Portanto, alguém que possui sati constante sempre ouve os ensinamentos do Buddha. O Dhamma está sempre lá. Por quê? Por causa de sati, porque estamos sempre atentos.
Sati é memória, sampajañña é consciência de si. Essa consciência é o Buddho verdadeiro, o Buddha. Quando há sati-sampajañña, a compreensão virá de seguida. Sabemos o que está a ocorrer. Quando os olhos vêm uma forma: será própria ou imprópria? Quando o ouvido capta o som: isto é apropriado ou impróprio? É perigoso? Está correto, está errado? E assim por diante com tudo. Se compreendermos estaremos a ouvir o Dhamma todo o tempo.
Então, vamos todos entender que agora estamos aprendendo no meio do Dhamma. Se formos para frente ou voltar para trás, encontramos o Dhamma – é tudo Dhamma se tivermos sati. Mesmo ao ver os animais correndo na floresta podemos refletir, vendo que todos os animais são o mesmo que nós. Eles fogem do sofrimento e perseguem a felicidade, assim como as pessoas. O que eles não gostam eles evitam, eles tem medo de morrer, assim como as pessoas. Se refletirmos sobre isso, vemos que todos os seres do mundo, assim como as pessoas, são os mesmos, com instintos diferentes. Pensar assim é chamado de “’bhāvanā” [5], ver, de acordo com a verdade, que todos os seres são companheiros de nascimento, velhice, doença e morte. Os animais são os mesmos que os seres humanos e seres humanos são os mesmos que os animais. Se nós realmente vemos as coisas como elas são nossa mente abandonará o apego a elas.
Portanto é dito que devemos ter sati. Se tivermos sati veremos o estado de nossa própria mente. Seja o que estejamos a pensar ou sentir deveremos sabê-lo. Este conhecimento é chamado Buddho – o Buddha, é aquele que sabe -, que sabe profundamente, que sabe clara e completamente. Quando a mente sabe completamente nós encontramos a prática correta.
Assim a forma expedita de praticar é ter vigilância, sati. Se estiver sem sati por cinco minutos, você estará louco por cinco minutos, desnorteado por cinco minutos. Sempre que lhe faltar sati você está louco. Por isso sati é essencial. Ter sati é conhecer-se a si próprio, saber a condição da sua mente e da sua vida. Isto é ter entendimento e discernimento, ouvir o Dhamma em todos os momentos. Depois de sair de uma palestra do seu professor, você continua a ouvir o Dhamma, porque o Dhamma está em todas as partes.
Assim, todos vocês estejam seguros de praticar todos os dias. Se estiver preguiçoso ou diligente, pratique mesmo assim. A prática do Dhamma não é para ser feita seguindo seus humores. Se você só praticar na dependência de sua vontade, então não será o Dhamma. Não discrimine entre o dia e a noite, se a mente está pacífica ou não… somente pratique.
Isso é como uma criança que está aprendendo a escrever. No início ela não escreve bem – grandes e longas curvas e torções – ela escreve como uma criança. Com o tempo, a escrita melhora pela prática. A prática do Dhamma parece-se com isto. No começo você é desajeitado… às vezes calmo, às vezes não, você realmente não sabe o que é o quê. Não afrouxe! Você deve perseverar na prática. Viva com o esforço, como um aluno: à medida que envelhece ele escreve melhor e melhor, tudo por causa da prática desde a infância.
Nossa prática é assim. Tente se lembrar todo o tempo: em pé, andando, sentando ou deitando. Quando fazemos nossas diversas atividades suavemente e bem, ficamos em paz com nossa mente. Quando isso ocorre em nosso trabalho, é fácil ter uma meditação tranquila, pois ambos seguem de mãos dadas. Portanto, faça um esforço. Todos vocês deveriam se esforçar para seguir a prática. Isso é treinamento.
Notas de rodapé
[1] Extraída de uma palestra a monges e a noviços no Wat Pah Pong.
[2] professor, a saber, o Buddha.
[3] Sangha, as Três Joias: o Buddha, o Dhamma, seus ensinamentos, e a Sangha, a ordem monástica ou aqueles que realizaram o Dhamma.
[4] sati: geralmente traduzida para o inglês como vigilância, lembrança é a tradução mais precisa das palavras em tailandês “ra-luk dai”.
[5] bhavana: significa “desenvolvimento” ou “cultivo”, mas em geral é usada para se referir a citta-bhāvanā, desenvolvimento mental, ou paññā-bhāvanā, desenvolvimento da sabedoria ou contemplação.
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
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Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.
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