~Ajahn Chah ~

Ajahn Chah
Ajahn Chah

[1] O ensinamento do Buddhismo é sobre abandonar o mal e praticar o bem. Então, quando o mal é eliminado e o bem estabelecido, temos que abandonar ambos. Já ouvimos o suficiente sobre as condições benéficas e prejudiciais para entendermos um pouco sobre elas, então eu gostaria de falar sobre o Caminho do Meio, isto é, o caminho para transcender ambas as coisas.

Todas as palestras do Dhamma e ensinamentos do Buddha têm um objetivo – mostrar o caminho para sair do sofrimento àqueles que ainda não o conseguiram. Os ensinamentos têm a finalidade de nos oferecer o entendimento correto. Se não entendermos corretamente, então não alcançaremos a paz.

Quando todos os Buddhas se iluminaram e deram seus primeiros ensinamentos, eles falaram desses dois extremos – a entrega ao prazer e a entrega à dor [2]. Estes dois caminhos são os caminhos da paixão, são aqueles dentre os quais os que se entregam aos prazeres sensuais oscilam, sem nunca alcançar a paz. Eles são os caminhos que giram no saṁsāra.

O Iluminado observou que todos os seres estão presos a esses dois extremos, nunca vendo o Caminho do Meio do Dhamma, então ele o apontou, a fim de mostrar a consequência envolvida em ambos. Porque ainda estamos presos, porque ainda estamos desejando, vivemos repetidas vezes sob seu domínio. O Buddha declarou que esses caminhos são os da intoxicação, eles não são os caminhos de um praticante, não são caminhos para a paz. Esses caminhos são a entrega ao prazer e à dor, ou, simplificando, o caminho da negligência e da tensão.

Se você investigar dentro de si, momento a momento, verá que o caminho da tensão é a raiva, o caminho da infelicidade. Seguindo por esse caminho só haverá dificuldade e sofrimento. Entregar-se ao prazer – se você transcendeu isso, significa que você transcendeu a felicidade. Esses caminhos, tanto a felicidade como a infelicidade não são estados de paz. O Buddha ensinou a deixá-los passar. Essa é a prática correta. Esse é o Caminho do Meio.

Estas palavras, ‘O Caminho do Meio’, não se referem ao nosso corpo e linguagem, eles se referem à mente. Quando surge uma impressão mental de que não gostamos, ela afeta a mente e há confusão. Quando a mente está confusa, quando ele está ‘agitada’, não estamos no caminho correto. Quando surge uma impressão mental de que nós gostamos, a mente se entrega ao prazer – que também não é o caminho.

Não queremos o sofrimento, nós queremos a felicidade. Mas, na verdade a felicidade é apenas uma forma refinada de sofrimento. Sofrimento propriamente dito é a forma grosseira. Você pode compará-lo a uma cobra. A cabeça da cobra é a infelicidade, a cauda da cobra é a felicidade. A cabeça da cobra é muito perigosa, tem as presas venenosas. Se você tocá-la, a cobra vai morder imediatamente. Mas não importa a cabeça, mesmo se você agarrar a cauda, ​​ela vai se virar e morder-lhe da mesma forma, porque tanto a cabeça quanto a cauda pertencem à mesma cobra.

Da mesma forma, tanto a felicidade quanto a infelicidade, o prazer ou a dor, surgem a partir de um mesmo pai – o querer. Então, quando você está feliz, a mente não está em paz. Realmente não está! Por exemplo, quando temos as coisas que gostamos, como riqueza, prestígio, elogios ou felicidade, ficamos satisfeitos com o resultado. Mas a mente ainda abriga uma inquietação, porque estamos com medo de perdê-los. Esse temor não é um estado pacífico. Mais tarde poderemos perder aquilo e então realmente sofreremos.

Assim, se você não estiver consciente, mesmo se você estiver feliz, o sofrimento é iminente. É exatamente o mesmo que agarrar a cauda da cobra – se você não deixar que ela se vá, ela morderá. Então, se é cauda da cobra ou a cabeça da cobra, ou seja, condições benéficas ou prejudiciais, elas são apenas características da Roda da Existência, de mudança sem fim.

O Buddha estabeleceu moralidade, concentração e sabedoria como o caminho para a paz, o caminho para a iluminação. Mas, na verdade, essas coisas não são a essência do Buddhismo. Elas são apenas o caminho. O Buddha as chamou de ‘magga’, que significa ‘caminho’. A essência do Buddhismo é a paz, e a paz surge do conhecimento verdadeiro da natureza de todas as coisas. Se investigarmos de perto, poderemos ver que a paz não é nem a felicidade nem a infelicidade. Nenhuma delas é a verdade.

A mente humana, a mente que o Buddha exortou-nos a conhecer e investigar, é algo que só podemos conhecer através da sua atividade. A verdadeira ‘mente original’ não pode ser medida, não pode ser conhecida. Em seu estado natural, é inabalável, imóvel. Quando a felicidade surge, o que acontece é que essa mente se perde numa impressão mental, há movimento. Quando a mente se move assim, o apego e a ligação a essas coisas passam a existir.

O Buddha estabeleceu o caminho da prática em sua totalidade, mas ainda não o praticamos, ou se o fazemos, temos praticado apenas no discurso. Nossas mentes e nossa fala ainda não estão em harmonia, nós estamos entregues a uma conversa vazia. Mas a base do Buddhismo não é algo que pode ser debatido ou imaginado. A base real do Buddhismo é o pleno conhecimento acerca da verdade da realidade. Se alguém conhece essa verdade, então não é necessário nenhum ensinamento. Se alguém não conhece, mesmo que ele ouça o ensinamento, ele realmente não ouvirá. É por isso que o Buddha disse: “O Iluminado apenas aponta o caminho”. Ele não pode fazer a prática por você, porque a verdade é algo que não pode ser colocado em palavras ou dado de presente.

Todos os ensinamentos são apenas símiles e comparações, meios para ajudar a mente a ver a verdade. Se ainda não pudermos ver a verdade, sofreremos. Por exemplo, podemos dizer vulgarmente ‘sankhāras’ [3] quando nos referimos ao corpo. Qualquer um pode dizer isso, mas na verdade temos problemas simplesmente porque não sabemos a verdade desses sankhāras, e, assim, nos apegamos a eles. Porque não conhecemos a verdade do corpo, sofremos.

Eis um exemplo. Suponha que uma manhã você está caminhando para o trabalho e um homem grita ofensas e insultos a você do outro lado da rua. Assim que você ouve essas ofensas sua mente muda de seu estado habitual. Você não se sente tão bem, você sente raiva e mágoa. O homem continua agindo assim noite e dia. Sempre que você ouvir a ofensa, você ficará com raiva, e mesmo quando você voltar para casa você ainda estará sentindo raiva porque você se sente vingativo, você quer revidar.

Poucos dias depois, outro homem vem a sua casa e chama: “Ei! Aquele homem que lhe ofendeu outro dia, ele é louco, ele é doido! Tem feito isso há anos! Ele ofende todo mundo assim. Ninguém dá ouvidos ao que ele diz”. Assim que você ouve isso você se sente repentinamente aliviado. Aquela raiva e mágoa que você vinha reprimindo em si mesmo durante esses dias, se esvai completamente. Por quê? Porque agora você sabe a verdade sobre aquilo. Antes, você não sabia, você pensava que o homem era normal, então você estava com raiva dele. A forma como você interpretou os fatos lhe fez sofrer. Assim que você descobriu a verdade, tudo mudou: “Ah, ele é louco! Isso explica tudo!”

Quando você entende isso, você se sente bem, porque você sabe por si mesmo. Tendo compreendido então, você pode deixar passar. Se você não sabe a verdade você se apega ali mesmo. Quando você pensou que o homem que o ofendeu era normal você poderia até tê-lo matado. Mas quando você descobriu a verdade, que ele era louco, você se sente muito melhor. Isso é o conhecimento da verdade.

Alguém que vê o Dhamma tem uma experiência semelhante. Quando apego, raiva e ilusão desaparecem, também é assim. Enquanto não sabemos essas coisas nós pensamos: “O que eu posso fazer? Eu tenho tanto desejo e raiva”. Esse não é o conhecimento claro. É o mesmo que quando pensamos que o louco era são. Quando, finalmente, vimos que ele estava louco o tempo todo, nós deixamos de nos afligir. Ninguém poderia nos mostrar isso. Só quando a mente vê por si mesma pode desarraigar e abandonar o apego.

É o mesmo que acontece com este corpo que chamamos de sankhāras. Embora o Buddha já tenha explicado que ele não é substancial ou tal como um ser real, ainda não aceitamos, nós teimamos em nos apegar a ele. Se o corpo pudesse falar, ele provavelmente nos diria o dia todo: “Você não é meu dono, sabe disso!” Na verdade ele está nos dizendo isso o tempo todo, mas é na linguagem do Dhamma, portanto não conseguimos entendê-lo.

Por exemplo, os órgãos dos sentidos: olhos, ouvidos, nariz, língua e corpo estão em constante mudança, mas eu nunca os vi pedir nossa permissão sequer uma vez! Como quando temos uma dor de cabeça ou de estômago, o corpo nunca pede permissão antes, ele simplesmente vai em frente, seguindo o seu curso natural. Isto mostra que o corpo não permite a ninguém ser seu dono.  Ele não tem um proprietário. O Buddha descreveu-o como um objeto vazio de substância.

Não compreendemos o Dhamma e por isso não entendemos esses sankhāras, assumimos que eles somos nós, que nos pertencem ou pertencem a outros. Isso gera o apego. Quando apego surge, ‘vir-a-ser’ vem em seguida. Uma vez que surge o ‘vir-a-ser’, então há o nascimento. Uma vez que há nascimento, então surgem velhice, doença, morte e toda a massa de sofrimento.

Isso é paticcasamuppāda [4]. Nós dizemos que a ignorância gera atividades volitivas, que dão origem à consciência e assim por diante. Todas essas coisas são simplesmente eventos que acontecem na mente. Quando entramos em contato com algo de que não gostamos, se não temos plena vigilância, a ignorância estará ali.  O sofrimento surge de imediato. Mas a mente passa por essas mudanças tão rapidamente que não conseguimos acompanhá-las. É o mesmo quando você cai de uma árvore. Antes que você se dê conta – ‘baque!’ – Você caiu no chão. Na verdade, você passou por muitos ramos e galhos no caminho, mas você não poderia contá-los, você não conseguia se concentrar neles à medida em que passava por eles. Você somente caiu e então ‘baque!’

Com o paticcasamuppāda acontece o mesmo. Se o dividirmos como está nas escrituras, diremos que a ignorância dá origem às atividades volitivas, as atividades volitivas dão origem à consciência, a consciência dá origem a mente e à matéria, a mente e a matéria dão origem às seis bases dos sentidos, e as bases dos sentidos  dão origem ao contato sensorial, que dá origem à sensação, que dá origem ao querer, que dá origem ao apego, que dá origem ao vir-a-ser,  que dá origem ao nascimento, que dá origem à velhice, à doença, à morte e a todas as formas de sofrimento. Mas, na verdade, quando você entra em contato com algo que você não gosta, há sofrimento imediato! Esse sentimento de sofrimento é, na verdade, o resultado de toda a cadeia do paticcasamuppāda. É por isso que o Buddha exortava os seus discípulos a investigar e conhecer plenamente as suas próprias mentes.

Quando as pessoas nascem no mundo elas não têm nomes – uma vez nascidas, recebem nomes. Isso é uma convenção. Nós damos nomes às pessoas por uma questão de conveniência, para termos como chamar uns aos outros. Às escrituras ocorre o mesmo. Separamos tudo com etiquetas para facilitar o estudo da realidade. Da mesma forma, todas as coisas são simplesmente sankhāras. Sua natureza original é somente a de coisas originadas de condições. O Buddha disse que elas são impermanentes, insatisfatórias e não-eu. Elas são instáveis. Nós não entendemos isso plenamente, nosso entendimento não é preciso, e por isso temos uma visão errada. Esse ponto de vista equivocado é o que nos leva a pensar que os sankhāras somos nós mesmos, que nós somos os sankhāras, ou que a felicidade e a infelicidade somos nós mesmos, que somos a felicidade e a infelicidade. Ver desta forma não é conhecer claramente a verdadeira natureza das coisas. A verdade é que não podemos forçar todas essas coisas a seguir os nossos desejos, elas seguem o caminho da natureza.

Aqui está uma comparação simples: suponha que você vá se sentar no meio de uma autoestrada com os carros e caminhões vindo em sua direção. Você não pode ficar com raiva dos carros, gritando: “Não dirijam por aqui! Não dirijam por aqui!” É uma autoestrada, você não pode dizer isso a eles. Então, o que você pode fazer? Você pode sair da estrada! A estrada é o lugar onde os carros correm, se você não quiser que os carros estejam lá, você sofrerá.

É o mesmo com sankhāras. Nós dizemos que eles nos perturbam, como quando sentamos em meditação e ouvimos um som. Nós pensamos: “Ah, esse o som está me incomodando”. Se entendermos que o som nos incomoda, então sofreremos de acordo. Se investigarmos um pouco mais, veremos que somos nós que saímos e perturbamos o som! O som é simplesmente som. Se entendermos desta forma, então não haverá nada mais do que isso, nós o deixamos em paz. Vemos que o som é uma coisa, nós somos outra. Aquele que pensa que o som vem perturbá-lo é aquele que não consegue ver a si mesmo. Ele realmente não consegue! Depois de ver a si mesmo, você estará tranquilo. O som é apenas o som, por que você deveria agarrá-lo? Você vê que, na verdade, foi você quem saiu e perturbou o som.

Esse é o verdadeiro conhecimento da verdade. Você vê os dois lados, assim você terá paz. Se você perceber apenas um lado, haverá sofrimento. Depois de ver os dois lados, você segue o caminho do meio. Essa é a prática correta da mente. Isto é o que chamamos de endireitar a nossa compreensão.

Da mesma forma, a natureza de todos os sankhāras é impermanência e morte, porém queremos agarrá-los, nós os carregamos conosco e os desejamos. Queremos que eles sejam verdadeiros. Queremos encontrar a verdade nas coisas que não são verdadeiras. Sempre que alguém pensar assim e se agarrar aos sankhāras como sendo ele mesmo, sofrerá.

A prática do Dhamma não depende de ser um monge, um noviço ou um leigo; depende de acertar a sua compreensão. Se nosso entendimento está correto, atingimos a paz. Se você tem ordenação ou não, é a mesma coisa. Toda pessoa tem a oportunidade de praticar o Dhamma, de contemplá-lo. Nós todos contemplamos a mesma coisa. Se você alcançar a paz, é a mesma paz para todos, é o mesmo caminho, com os mesmos métodos.

Portanto, o Buddha não discriminava laicos e monges, ele ensinava a todas as pessoas a prática de conhecer a verdade dos sankhāras. Quando conhecemos essa verdade, nós os deixamos passar. Se conhecermos a verdade, não haverá mais vir-a-ser ou nascimento. Como não haverá mais nascimento? Não há mais como ocorrer o nascimento porque conhecemos plenamente a verdade dos sankhāras. Se conhecermos a verdade plenamente, então haverá paz. Ter ou não ter, é tudo a mesma coisa. Ganho ou perda é a mesma coisa. O Buddha nos ensinou a entender isso. Isso é paz; paz em relação à felicidade, infelicidade, alegria e tristeza.

Temos de ver que não há razão para nascer. Nascer em que sentido? Nascer dentro da alegria: Quando temos algo que gostamos nós estamos contentes por isso. Se não há apego a essa alegria, não há nascimento, se existe apego, há ‘nascimento’. Então, se temos algo, não nascemos (dentro da alegria). Se perdermos, então nós não nascemos (dentro da tristeza). Isto é o não nascido e o imortal. Nascimento e morte, ambos, são encontrados no apego e no amor aos sankhāras.

Então o Buddha disse: “Não há mais nascimento para mim, a vida santa está finalizada, este é o meu último nascimento”. Ele conhecia o sem nascimento e sem morte. Isto é o que o Buddha constantemente exortava os seus discípulos a saber. Esta é a prática correta. Se você não alcançá-la, se você não chegar ao Caminho do Meio, então, você não transcenderá o sofrimento.

Notas:

[1] Palestra dada no dialeto do nordeste a um grupo de monges e laicos em 1970.

[2] sofrimento, insatisfatoriedade.

[3] sankhāra – formações ou formações volitivas (com referência tanto à atividade volitiva de ‘formar’ coisas quanto às coisas formadas). Na língua tailandesa a palavra ‘sungkahn’, proveniente da palavra pāli ‘sankhāra’ (todos os fenômenos condicionados) é um termo comumente usado para o corpo. O Venerável Ajahn usa a palavra em ambos os sentidos.

[4] paticcasamuppāda – O princípio do surgimento condicionado, uma das doutrinas centrais do ensinamento budhista.

 


 

Traduzido por Rosana Barbosa
para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright

© 2013 Edições Nalanda


Nota: Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.

 

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