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Enquanto o Bem-Aventurado vivia em solidão este pensamento lhe ocorreu: “O Dhamma que percebi é profundo, difícil de ver, duro de compreender, pacífico e sublime, está além do mero raciocínio, é sutil e inteligível aos sábios. Mas esta geração se delicia, diverte e regozija nos prazeres sensuais. É difícil para esta geração ver esse condicionamento, essa originação dependente. Duro também é que veja o acalmar de todas as coisas condicionadas, a desistência de toda substância do vir-a-ser, a extinção do apego, a imparcialidade, a cessação, o Nibbana. E se eu ensinasse o Dhamma e outros não me compreendessem, isso seria cansativo e uma vexação para mim” [1].
Refletindo assim ele foi a princípio relutante em ensinar o Dhamma, mas sondando o mundo com seu olho mental, ele viu seres com um pouco de poeira nos olhos e com muita poeira nos olhos, com faculdades aguçadas e faculdades obtusas, com boas qualidades e ás qualidades, fáceis de ensinar e difíceis de ensinar, alguns alertas para os perigos de presentes malefícios, e outros não. O Mestre então declarou sua prontidão para proclamar o Dhamma neste pronunciamento solene:
“Aparuta tesam amatassa dvara
Ye sotavanto pamuñcantu saddham”.
“Abertas estão as portas do Imortal.
Os que têm ouvidos, que descansem na verdade”.
Considerando para quem deveria ensinar o Dhamma antes, pensou em Alara Kalama e Uddaka Ramaputta, seus antigos professores, pois sabia que eram sábios e discerniam. Mas isso não aconteceu, pois já haviam falecido. Então o Bem-Aventurado tomou a resolução de fazer a verdade conhecida àqueles cinco ascetas, seus amigos prévios, ainda às voltas com os rigores infrutíferos do ascetismo extremo. Sabendo que viviam em Benares no Parque dos Veados em Isipatana, o Refúgio dos Sábios (a moderna Sarnath), o Bem-Aventurado deixou Gaya na direção da distante Benares, andando aos poucos por 150 milhas. Em seu caminho para Gaya o Buddha foi avistado por Upaka, um asceta que, impressionado pela aparência serena do Mestre, perguntou: “Quem é seu professor? Qual ensinamento você professa?”
O Buddha respondeu: “Não tenho professor, alguém como eu não existe em todo o mundo, pois eu sou o Mestre Sem Par, o Arahat. Somente eu sou o Supremamente Iluminado. Saciando as nódoas, alcancei a calma do Nibbana. Vou à cidade de Kasi (Benares) para pôr em movimento a Roda do Dhamma. Num mundo onde reina a cegueira, irei bater o Tambor Imortal”.
“Amigo, você alega então ser o vencedor universal”, disse Upaka. O Buddha respondeu: “Aqueles que atingiram a cessação das nódoas são, de fato, vitoriosos como eu. Todo o mal eliminei. Por isso sou um vitorioso”.
Upaka balançou a cabeça, notando sarcasticamente, “Talvez seja assim, amigo”, e ficou de lado. O Buddha continuou seu caminho e, gradualmente, chegou ao Parque das Gazelas em Isipatana. Os cinco ascetas, vendo o Buddha de longe, discutiram entre si: “Amigos, aqui vem o asceta Gotama que desistiu da luta e virou-se para uma vida de abundância e luxo. Não façamos nenhuma saudação a ele”. Mas quando o Buddha se aproximou deles, foram impressionados por sua digna presença e não conseguiram fazer o que se propuseram. Um foi encontrá-lo e levou sua tigela de esmolas e túnica, outro preparou um assento, outro ainda trouxe-lhe água. O Buddha sentou-se no lugar que haviam preparado para ele, e os cinco ascetas se dirigiram a ele por seu nome e o saudaram como um igual, dizendo “avuso” (amigo).
O Buddha disse, “Não se dirijam ao Tathagata (o Perfeito) com a palavra ‘avuso’. O Tathagata, monges, é um Consumado (Arahat), um Ser Supremamente Iluminado. Ouçam, monges, o Imortal foi alcançado. Irei instruí-los, irei ensiná-los o Dhamma; seguindo meu ensinamento vocês saberão e perceberão por vocês mesmos, ainda nesta vida, esse supremo objetivo de pureza pelo bem do qual os homens saem de casa para viver uma vida sem lar”. Nisso os cinco monges disseram: “Amigo Gotama, mesmo com austeridades rígidas, penitências e autotortura que você praticava, você não conseguiu alcançar a visão e intuição super-humanas. Agora que você vive numa vida de luxo e indulgência, e desistiu da luta, como você pode ter alcançado visão e intuição super-humanas?”
Então respondeu o Buddha: “O Tathagata não cessou do esforço e reverteu a uma vida de luxo e abundância. O Tathagata é um Ser Supremamente Iluminado. Escutem, monges, o Imortal foi alcançado. Irei instruí-los. Irei ensiná-los o Dhamma”.
Uma segunda vez os monges disseram a mesma coisa ao Buddha, que deu a mesma resposta uma segunda vez. Uma terceira vez repetiram a mesma questão. Apesar de o Mestre assegurá-los, não mudaram de atitude. Então o Buddha lhes falou assim: “Confessem, ó monges, alguma vez lhes falei assim antes?” Tocados por esse apelo do Bem-Aventurado, os cinco ascetas se submeteram e disseram: “De fato não, Senhor”. Assim o Sábio Supremo, o Dócil, amansou os corações dos cinco ascetas com paciência e bondade, com sabedoria e habilidade. Sobrepujados e convencidos por seus dizeres, os monges indicaram sua prontidão de ouvi-lo.
[1] MN 26, I 167-168.