~ por Gil Fronsdal ~
Os seres são senhores de seu karma,
Herdeiros de seu karma,
Nascidos de seu karma,
Relacionados ao seu karma,
Sustentados por seu karma.
Qualquer karma que realizem, para o bem ou para o mal,
Disso serão os herdeiros.
– Anguttara Nikāya V.57
O Buddhismo oferece-nos um desafio: é possível viver uma vida sem sofrimento? Uma das maneiras mais diretas para trazer tranquilidade e felicidade para a prática da vigilância em nossas vidas é investigar as nossas intenções. Embora nossas atividades tenham consequências tanto no mundo externo quanto no interno, a felicidade e a liberdade as quais o Buddha salientou, pertencem ao mundo interior de nossas intenções e disposições. Esta é uma das principais razões para o Buddha ter colocado tanta ênfase na atenção às nossas intenções.
A prática buddhista encoraja uma apreciação profunda do momento presente, o que fortalece nossa habilidade de respondermos criativamente no presente em vez de agirmos de acordo com nossos hábitos e nossas disposições. A vigilância nos coloca onde a escolha é possível. Quanto maior nossa consciência em relação a nossas intenções, maior nossa liberdade de escolha. Pessoas que não veem suas escolhas não acreditam que têm escolhas. Elas tendem a responder automaticamente, cegamente influenciados pelas circunstâncias e condicionamentos. A vigilância, ao nos ajudar a perceber nossos impulsos antes da ação, nos dá a oportunidade de decidir quando agir e como agir.
De acordo com o ensinamento buddhista tradicional, cada momento mental envolve uma intenção. Isto sugere a sutileza fenomenal com o qual as escolhas operam em nossas vidas. Poucos de nós mantêm nossos corpos imóveis, exceto, talvez, em meditação ou ao dormir. Cada um dos movimentos constantes em nossos braços, mãos e pernas é precedido por um impulso volitivo, geralmente desapercebido. As intenções estão presentes até mesmo em decisões aparentemente minúsculas e geralmente passam desapercebidas como, por exemplo, para onde direcionar nossa atenção ou que pensamentos perseguir. Assim como gotas de água acabam por encher uma banheira, o acúmulo dessas pequenas escolhas molda quem somos.
Nossas intenções – percebidas ou não percebidas, grosseiras ou sutis – contribuem ambas para nosso sofrimento ou para nossa felicidade. Intenções são muitas vezes chamadas de sementes. O jardim que você cultiva depende das sementes que você planta e da água. Muito tempo depois de um feito ser realizado, a tendência ou o momentum da intenção que estava por trás permanece como semente, condicionando nossa futura felicidade ou infelicidade. Se aguarmos intenções de egoísmo ou ódio, o sofrimento inerente vai brotar, tanto enquanto agimos neles e no futuro, em forma de hábitos reforçados, tensões e memórias dolorosas. Se nutrirmos intenções de amor ou generosidade, a felicidade inerente e a abertura para esses estados vai se tornar uma mais parte frequente da sua vida.
Algumas ações volitivas dificultam o processo do despertar. Um exemplo é a mentira intencional. O medo da descoberta, a necessidade contínua de dar continuidade à mentira e o fugir à verdade tendem a reforçar a tendência natural da mente para a preocupação, a qual é o oposto do despertar.
Uma importante função da prática da vigilância é a de nos ajudar, no imediato e no longo prazo, a compreender as consequências das nossas ações intencionais. Esse compreender ajuda-nos a garantir que as nossas escolhas são mais sábias que aquelas baseadas apenas nos nossos gostos e preferências. Ter um sentido informado e realista das consequências mantém as nossas “boas” intenções de serem intenções ingênuas. Esse sentido pode também nos guiar no conhecimento das escolhas que permitem sustentar a nossa prática espiritual e aquelas que nos afastam dela.
Podemos trazer a conscientização das nossas intenções para a prática da vigilância de diversas maneiras.
Talvez a mais significativa seja a de refletir cuidadosamente sobre a nossa mais profunda intenção. Qual é o desejo mais profundo do seu coração? Qual lhe é de maior valor ou que lhe é mais prioritário? A prática da vigilância conectada à nossa profunda intenção irá conduzir a um resultado diferente daquele conectado a preocupações mais superficiais. O homem de negócios que se esforça na prática da vigilância como meio de reduzir o estresse para que possa ganhar um vantagem sobre seu competidor irá plantar sementes que trarão resultados bem diversos daquele que se esforça na prática da vigilância para fortalecer sua ajuda compassiva aos outros. Quando o esforço de ser vigilante é abastecido pela ganância, esse mesmo esforço também fortifica a tensão e a insensibilidade à ganância. Quando o esforço é abastecido por amorosidade, ela energiza a abertura interior e a sensibilidade à amorosidade.
Acredito que uma prática diária de sentar é extremamente benéfica. Mas acredito que há ainda mais benefícios em gastar alguns minutos cada dia refletindo sobre nossas intenções mais profundas. Numa vida movimentada, podemos facilmente esquecer nossos valores e motivações fundamentais. Lembrarmo-nos deles permite que as nossas escolhas sejam informadas por eles. Além disso, quando mergulhamos abaixo da superfície dos desejos e aversões da mente, para descobrir as nossas mais profundas agitações, abrimo-nos a um tremendo poder de inspiração e motivação. Por exemplo, em um certo momento, eu comecei a prática de refletir conscientemente sobre minha intenção para cada tarefa, permitindo a meu sentido profundo de intenção informar cada uma delas. Mesmo a atividade aparentemente mundana de ir ao mercado se tornou uma oportunidade de reforçar minha intenção de conectar-me com as pessoas de modo cuidadoso e compassivo. Essa prática simples me trouxe uma grande alegria.
Outra maneira de incluirmos a intenção em nossa prática é fazermos uma breve pausa antes de iniciar qualquer nova atividade, o que nos permite discernir a nossa motivação. Ficar ciente de uma intenção após a ação já estar iniciada é útil, mas é como tentar parar uma bola depois de tê-la jogado. O momentum foi colocado em movimento.
Podemos investigar as intenções por trás da maioria das atividades e decisões tais como trabalho, relacionamentos ou seja lá o que fizermos no nosso tempo livre. Qual é a motivação e como ela está ligada às nossas intenções mais profundas? Da mesma maneira, podemos investigar as intenções que moldam nossas decisões sobre assuntos menores tais como o quê e quanto comer, como dirigimos, o que lemos ou aquilo que assistimos na televisão. A escolha é baseada no medo, na aversão, na solidão, na dependência, na generosidade ou no cuidado conosco de maneira sábia? Motivações diferentes não são necessariamente boas ou ruins, mas podem criar consequências muito adversas, mesmo quando as ações externas que geram pareçam semelhantes.
Tentar manter a atenção sobre todas as nossas motivações pode ser estressante. Pode ser útil escolher uma atividade de cada vez a fim de observá-la mais cuidadosamente. Por exemplo, passar uma semana sendo um conhecedor sobre as muitas intenções em comer, comprar ou limpar a casa.
Talvez uma das aplicações mais importantes da vigilância quanto às intenções seja a fala. Falamos muitas vezes sem reflexão. Atenção para as múltiplas razões subjacentes ao que dizemos é uma das aberturas mais poderosas para nossos corações. A fala raramente é uma simples oferta de informação ou expressão de carinho. Ela está intimamente ligada à maneira como vemos a nós mesmos, como queremos que os outros nos vejam, e às nossas esperanças e medos. Distinguir entre intenções saudáveis e insalubres pode servir como um critério útil para saber quando falar e quando a refugiar-se no silêncio sábio. A fala pode ser um poderoso suporte ou algo que enfraquecerá a prática espiritual.
Atenção e intenção são dois pilares da prática buddhista. Chamar a atenção para a intenção não leva, como alguns temem, a uma vida de esforço sem fim a nos monitorarmos. A auto-consciência e a auto-preocupação podem ser desgastantes, mas não a vigilância. À medida que nos tornamos mais claros e mais sábios sobre nossas intenções, encontramos mais facilidade. Começamos a agir com cada vez menos preocupação auto-centrada.
Seguir o caminho buddhista da vigilância até seu fim – até a cessação do sofrimento, até o Imortal – exige grande dedicação. Quanto mais sábios somos acerca de nossas intenções, maior a utilidade desse esforço.
Que vocês possam sabiamente notar suas intenções e que, fazendo isso, ajudem a aliviar o sofrimento em toda a parte.
Confira também: A moral buddhista é baseada na intenção ou volição
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
revisão: Ricardo Sasaki
em acordo com o Autor
© 2015 Gil Fronsdal
Nota: “Tocar o Coração do Assunto” é uma compilação de ensaios editados sobre a prática buddhista da observação vigilante. Muitos destes capítulos começaram como palestras dadas aos grupos de meditação da noite de segunda-feira ou da manhã de domingo do Insight Meditation Center em Redwood City, Califórnia. Alguns dos capítulos foram escritos especificamente para a publicação em jornais, em revistas ou em boletins de notícias buddhistas. Este livro é uma oferenda do Dhamma.
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Agradeço profundamente a Gil Fronsdal e ao Instituto Nalanda a oportunidade de ler e parar neste texto, de ser despertada por ele, reler, lê-lo em voz alta para melhor apreender o sentido no momento e após a leitura.
Obrigado pela visita Ieda. Ficamos muito felizes que essas traduções estão sendo benéficas! 🙂
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