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~ por Ven. Ajahn Payutto ~
1. Compreendendo os Termos Dhamma e Saṅkhāra
A. ‘Todas as Coisas’ e ‘Todas as Formações’
Na primeira e na segunda declaração das Três Marcas o Buddha diz que todos os fenômenos condicionados (saṅkhāra) * são impermanentes e dukkha, respectivamente, mas, na terceira declaração, ele diz que todas as coisas (dhamma) † são não-eu. Isso indica uma distinção entre as duas primeiras características e a terceira característica. Para compreender tal distinção deve-se examinar as palavras saṅkhāra e dhamma.
* Ao me referir a saṅkhāra das Três Características eu uso o termo ‘fenômeno condicionado’ ou simplesmente ‘formações’.
† sânscrito – dharma. A palavra dhamma tem muitas definições, as mais comuns são: Verdade última, o ensino, a doutrina, a natureza, a lei, e ‘coisa’.
A palavra pāḷi dhamma possui uma ampla gama de significados, abrangendo todas as coisas: tudo o que existe – passado, presente e futuro, real e imaginário. Material e mental, positivo e negativo, e coisas tanto normais quanto excepcionais estão inclusas nesta palavra. Para uma precisa definição em pāḷi um modificador pode ser adicionado à palavra dhamma, ou o objeto a ser definido é dividido em sub-categorias. Como alternativa a palavra dhamma pode ser usada sem modificações dentro de um contexto específico. Por exemplo, emparelhada com adhamma, e usada para descrever comportamento moral, ela significa mérito (puñña) ou bondade. Quando ela é usada com attha refere-se à regra, princípio ou causa. Quando dhamma é usado em relação ao estudo significa as escrituras, os discursos do Buddha.
Na terceira declaração das Três Características, a relativa ao não-eu, o Buddha usou o termo dhamma no sentido mais amplo, referindo-se a todas as coisas, sem exceção. Para entender dhamma neste contexto, é útil dividir as coisas em categorias:
• Coisas Materiais (rūpa–dhamma) e coisas imateriais (nāmadhamma).
• Coisas mundanas (lokiya–dhamma) e coisas transcendentais (lokuttara–dhamma).
• Coisas condicionadas (saṅkhata–dhamma) e o Incondicionado (asaṅkhata–dhamma).
• Coisas saudáveis (kusala–dhamma), coisas prejudiciais (akusaladhamma) e coisas neutras (abyākata–dhamma).
Cada grupo acima incorpora todo o significado de dhamma, mas o grupo que corresponde ao assunto a ser estudado é o das coisas condicionadas e o Incondicionado. Todas as coisas podem ser divididas em dois grupos [4]:
1. Saṅkhāta–dhamma: coisas compostas, coisas que surgem a partir de fatores condicionantes (paccaya); coisas formadas pela fusão de tais fatores. Tais coisas também são chamados saṅkhāra, que tem a mesma raiz e tradução. [70/2] Tanto saṅkhata–dhamma quanto saṅkhāra referem-se a todo tipo de condição, material e mental, mundano e supramundano, exceto Nibbāna.
2. Asaṅkhata–dhamma: aquilo que não é construído; o estado que não surge por ser formado a partir de fatores condicionantes e não está sujeito a eles. É também chamado de visaṅkhāra, significando o estado livre de fenômenos condicionados – o incondicionado que é Nibbāna.
Saṅkhāra é, portanto, apenas um aspecto do dhamma. Dhamma tem uma gama de significados que abrange tanto os fenômenos condicionados quanto o Incondicionado: Saṅkhata–dhamma e asaṅkhata–dhamma, ou saṅkhāra e nibbāna. Aplicando isto às Três Características, percebe-se que o âmbito das duas primeiras características, aniccatā e dukkhatā, é mais estreito do que a da última, anattatā. Isto é resumido como segue:
As características de impermanência e dukkha aplicam-se só a fenômenos condicionados (saṅkhāra) — e a todos os fenômenos condicionados. A característica de não-eu, contudo, aplica-se a todas as coisas, tanto condicionadas como o Incondicionado. O Incondicionado — Nibbāna — é destituído das duas primeiras características.
No cânone pāḷi o Buddha caracteriza o condicionado e o Incondicionado, assim: [5]
Sinais do mundo condicionado (saṅkhata-lakkhaṇa):
- A originação é aparente.
- A desintegração é aparente.
- A alteração é aparente.
Sinais do Incondicionado (asaṅkhata-lakkhaṇa):
- A originação não é aparente.
- A desintegração não é aparente.
- A alteração não é aparente.
Para resumir, o Incondicionado, ou Nibbāna, está além da impermanência e dukkha, mas é vazio de um eu. Quanto ao resto, isto é, todas as formações, elas são impermanentes, dukkha e não-eu, como esta passagem do Vinaya Piṭaka confirma: [70/3]
Todas as formações são impermanentes, dukkha, e não-eu; Nibbāna e designações são não-eu. [6]
B. Saṅkhāra dos Cinco Khandhas e Saṅkhāra das Três Características
Existem muitos exemplos em thailandês de uma palavra ter várias definições*. Algumas definições variam apenas ligeiramente, enquanto outras variam tanto a ponto de parecerem não ter relação uma com a outra. Em todo caso, pessoas que conhecem os diversos significados de uma palavra geralmente são capazes de distinguir uma conotação particular ao deparar com a palavra no contexto.
Da mesma forma, em pāḷi existem muitas palavras com a mesma grafia, mas
significados diferentes. Nessas palavras se inclui nāga, que pode significar uma serpente divina, um elefante de batalha ou uma pessoa excelente. Nimitta no Vinaya † significa um marcador de fronteira, enquanto em relação à meditação significa uma imagem mental. O nikāya é uma seção do suttanta pitaka ‡ e em outros contextos, significa facção religiosa. Paccaya no Vinaya é um requisito básico, alimentos por exemplo, enquanto que nos ensinamentos de Dhamma remete mais geralmente a uma “causa” ou “apoio”.
* É claro que isto também é verdadeiro em inglês (e português).
† A disciplina, em especial a disciplina monástica.
‡ Coleção de discursos.
Considere as seguintes palavras como encontradas em diferentes textos buddhistas:
Uma pessoa conhece rasa com a língua; saboroso ou não, ela não permite ao desejo ou à aversão sobrepujarem a mente. Tal pessoa guarda o indriya da língua. [70 / 4]
O indriya de fé/confiança, assim como em rasa faz todas as qualidades que a acompanham serem radiantes como uma jóia que purifica a água.
Na primeira passagem rasa significa ‘sabor’, e indriya refere-se à base interna do sentido. Na última passagem rasa significa uma função, enquanto indriya significa uma faculdade espiritual.
Um monge deve praticar yoga para realizar o estado em que estará livre do yoga.
O primeiro yoga significa ‘esforço espiritual’: o desenvolvimento da sabedoria. O segundo yoga se refere às impurezas pelas quais os seres se atam aos sofrimentos na existência mundana *.
* No hinduísmo, yoga (“arrear” ou “juntar”) refere-se à união da alma individual com
o Espírito Supremo.
Uma pessoa comum considera o corpo, sensações, percepções, formações volitivas (saṅkhāra) e a consciência como ego/eu/self, mas estes cinco agregados não podem ser o eu/ego/self, porque todos os fenômenos condicionados (saṅkhāra) são impermanentes, dukkha e não-eu.
O primeiro saṅkhāra refere-se exclusivamente a um dos cinco agregados, enquanto que o segundo saṅkhāra abrange todas as coisas condicionadas de acordo com as Três Características.
A palavra que precisa ser explicada aqui é saṅkhāra. A lista de exemplos
foi dada simplesmente para demonstrar o fato importante que em pāḷi existem muitos casos de uma mesma palavra com dois ou mais significados, com variadas disparidades, podendo ser elas diferentes ou mesmo contraditórias. Ao entender isso não se irá considerar estranho encontrar a palavra saṅkhāra sendo usada nos textos em muitos sentidos diferentes e aprende-se a distinguir o significado apropriado.
A palavra saṅkhāra tem pelo menos quatro definições, porém existem duas, em especial, que precisam ser compreendidas. Estas são saṅkhāra como um dos Cinco Agregados e saṅkhāra das Três Características. Porque estas duas definições de saṅkhāra se sobrepõem, elas podem causar confusão.
- Os cinco agregados: rupa, vedana, sañña, saṅkhāra, viññana.
- As Três Características: Todos os saṅkhāras são impermanentes, todos os
saṅkhāras são dukkha, todos os dhammas são não-eu.
Saṅkhāra como o quarto componente dos cinco agregados refere-se a fatores mentais que tornam a mente saudável, insalubre ou neutra. São as qualidades mentais, lideradas por intenção (cetanā), que moldam e influenciam os pensamentos e, consequentemente, a ação física. Eles são os agentes por trás da ação (kamma), os “modeladores” da mente, por exemplo: Fé (saddhā), vigilância (sati), vergonha moral (hiri), medo da conduta reprovável (ottappa), bondade amorosa (mettā), compaixão (karuṇā), sabedoria (paññā), ilusão (moha), ganância (lobha) e ódio (dosa) [7]. São qualidades mentais (nāma–dhamma), existentes na mente juntamente com sensação/sentimento (vedanā), percepção (saññā) e consciência (viññāṇa).
Saṅkhāra das Três Características refere-se a coisas compostas: tudo o que surge de causas e fatores condicionantes, independentemente de ser material ou imaterial, física ou mental, vivo ou inanimado, interno ou externo. [70 / 5] Eles também são chamados saṅkhata–dhamma. Saṅkhāra aqui inclui tudo, exceto Nibbāna.
Saṅkhāra dos Cinco Agregados tem um significado mais limitado do que saṅkhāra das Três Características: refere-se a uma parte de saṅkhāra das Três Características. Saṅkhāra dos Cinco Agregados refere-se aos agentes que determinam a qualidade da mente ou às “formações volitivas”. Quanto a saṅkhāra das Três Características, refere-se às coisas compostas: as coisas construídas por fatores condicionantes, ou simplesmente ‘formações’. Porque formações volitivas são, elas mesmas, coisas construídas, elas não estão excluídas do significado abrangente de saṅkhāra das Três Características.
Usando o modelo dos Cinco Agregados, pode-se dividir os fenômenos condicionados em mente e matéria, e subdividir a mente em quatro sub-grupos – sensação, percepção, formações volitivas (saṅkhāra ) e consciência. Aqui, saṅkhāra é apenas um componente mental e um elemento entre quatro. Saṅkhāra das Três Características, no entanto, abrange ambos, mente e matéria. Portanto, saṅkhāra (dos Cinco Agregados) é um tipo de saṅkhāra (das Três Características).
Assim, as declarações: forma física é impermanente, sensações/sentimentos são impermanentes, percepção é impermanente, formações volitivas (saṅkhāra) são impermanentes e consciência é impermanente e: Todos os fenômenos condicionados (saṅkhāra) são impermanentes são idênticas em seu significado.
Os textos ocasionalmente usam o termo saṅkhāra–khandha para saṅkhāra dos Cinco Agregados, e saṅkhata–saṅkhāra , ou simplesmente saṅkhāra para saṅkhāra das Três Características. [70 / 6] A razão pela qual estes dois ensinamentos usam o mesmo termo, saṅkhāra , é que eles descrevem condições com significados semelhantes, tendo a ver com ‘formação’.
O tempo devora a todos os seres, e consome-se também.
(J. II. 260)
Traduzido por Jorge Furtado para o Centro Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2011 Edições Nalanda
Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.
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