IV. Fé na Ciência e no Buddhismo

O papel da fé

AGORA vamos olhar comparativamente para algumas qualidades relativas ao Buddhismo, ciência e outras religiões, começando pela fé.

A maioria das religiões usa a emoção como uma energia para atingir seus respectivos objetivos. Emoção é a inspiração que suscita crença e obediência aos ensinamentos, e as emoções – particularmente as que produzem fé – são uma parte necessária na maioria das religiões. Emoções também são o que preservam a fé, razão porque é tão importante garantir que esses estados emocionais sejam mantidos. Colocando em outras palavras, uma vez que a fé é crucial para essas religiões, a emoção é encorajada.

Enquanto a fé é a força mais importante na maioria das religiões, o Buddhismo foca na sabedoria, dando à fé um lugar importante apenas nos estágios iniciais. Mesmo assim, a fé é usada muito cuidadosamente, porque a sabedoria é considerada o fator fundamental para atingir os objetivos do Buddhismo. A fé tem um lugar no ensinamento buddhista, mas num papel diferente, com uma ênfase diferenciada. Existe também elementos de fé na pesquisa científica, onde ela têm um papel decisivo no avanço da ciência em pesquisas e investigações.

A fim de entender claramente a fé, será útil dividi-la em diferentes tipos. De um modo geral, pode-se dividir a fé em dois tipos principais:

O primeiro tipo de fé é o que obstrui a sabedoria. Ele se baseia em incitar, ou mesmo reforçar, a crença, e tal crença deve ser completa e inquestionável. Duvidar do ensinamento é proibido. Apenas a obediência sem questionamento é permitida. Este primeiro tipo de fé não dá espaço para que a sabedoria se desenvolva.

Na maioria das religiões, a fé é dessa forma. Tem de haver crença e tem de haver obediência. O que quer que a religião pregue deve ser cumprido sem questionamentos. Esse aspecto da religião é conhecido como dogma, a doutrina que é inquestionável, caracterizada pela adesão diante da razão. O Buddhismo, no entanto, é uma religião livre de dogma.

O segundo tipo de fé é um canal para a sabedoria. Este tipo de fé estimula a curiosidade; é o incentivo para começar a aprender. Neste mundo há tantas coisas para aprender. Sem fé não temos um ponto de partida ou uma direção para definir a nossa aprendizagem, mas quando a fé surge numa determinada pessoa, tema ou ensinamento, dá-nos um ponto de partida. A fé desperta o nosso interesse e encoraja-nos a aproximarmo-nos do objeto desse interesse. Fé numa pessoa, em particular, leva-nos a aproximarmo-nos e questionarmos essa pessoa. Ter fé na ordem dos monges, por exemplo, encoraja-nos a abordá-los e a aprender com eles, para obter uma compreensão mais clara dos ensinamentos.

Um exemplo dessa espécie de fé pode ser encontrado na história da vida de Sāriputta [1]. Ele se tornou interessado no ensinamento de Buddha vendo o monge Assaji na ronda de pedir alimento. Ele ficou impressionado com o comportamento do monge, que sugeria alguma qualidade especial, algum conhecimento especial ou realização espiritual. Desejando descobrir qual era essa qualidade especial, ele se aproximou de Assaji e pediu que lhe ensinasse. Esse é um bom exemplo da segunda espécie de fé.

[1] Venerável Sāriputta, um dos mais proeminentes discípulos de Buddha, encontrou Assaji indo mendicar e inspirou-se por sua aparição o suficiente para aproximar-se dele e pedir pelo ensinamento. O curto ensinamento recebido foi suficiente para pôr a mente de Sāriputta além das dúvidas sobre a autenticidade do ensinamento do Buddha e para que ele se tornasse um bhikkhu, um monge buddhista.

Assim, esse tipo de fé ou inspiração é uma influência positiva, um incentivo para o aprendizado. Isso também fornece um ponto de foco para nosso aprendizado. Em qualquer direção que a fé se incline, nossas energias se motivam em tal direção. Um cientista, por exemplo, ao ter a fé que uma hipótese em particular possa ser verdadeira, dirigirá suas investigações em tal direção, não se distraindo com informações irrelevantes.

Estes dois tipos de fé devem ser distinguidos claramente. A fé que funciona no Buddhismo é a fé que leva à sabedoria, e como tal é secundária à sabedoria. Esta fé é encontrada tanto no Buddhismo como na ciência. Esse tipo de fé tem três funções importantes em relação à sabedoria. Elas são:

  1. Permite o surgimento de um interesse e um incentivo para iniciar o processo de aprendizagem.
  2. Provê a energia necessária para a busca desse conhecimento.
  3. Dá direção ou foco para essa energia.

Para além dessas funções, a fé bem direcionada tem um número de outras características que são apresentadas na consideração do sistema de prática buddhista a seguir:

Qual é o objetivo do Buddhismo? O objetivo do Buddhismo é a libertação, a transcendência, ou, para colocar em termos contemporâneos, a liberdade. O Buddhismo quer que os seres humanos sejam livres, que transcendam as impurezas e o sofrimento.

Como essa liberdade é alcançada? Ela deve ser alcançada através da sabedoria, compreensão da verdade ou a lei da natureza. Essa verdade é igualmente alcançável pelos discípulos como foi pelo Professor, e seus conhecimentos são independentes dele. Certa vez, o Buddha perguntou a Sāriputta: “Você acredita no que eu tenho explicado a você?” Sāriputta respondeu: “Sim, eu percebo que isto é assim”. O Buddha lhe perguntou: “Você está dizendo isso apenas pela fé em mim?” Sāriputta respondeu: “Não, eu respondi em acordo não por causa da fé no Bem-Aventurado, mas porque eu claramente vejo por mim mesmo que este é o caso”.

Este é outro dos princípios do Buddhismo. O Buddha não queria que as pessoas simplesmente acreditassem nele ou se apegassem a ele. Ele assinalou o engano da fé colocada em outra pessoa porque ele queria que as pessoas fossem livres. Essa libertação, ou liberdade, o objetivo do Buddhismo, é alcançada através da sabedoria, através do conhecimento da realidade.

Mas como tal sabedoria surge? Para aquelas pessoas que sabem pensar, que têm o que chamamos de yoniso-manasikara [2], não é necessário contar com a fé, mas a maioria das pessoas deve usar a fé como um trampolim ou ponto de partida.

[2] atenção sistemática, consideração sábia, reflexão crítica.

Essas condições são conectadas como elos numa corrente. Para atingir a libertação, é necessário desenvolver sabedoria. A sabedoria, como condição para realizar o objetivo, é, por sua vez, dependente da fé. Isso nos dá três estágios:

 

Fé – Sabedoria – Libertação

A fé é o iniciador do caminho para a verdade. Ela por sua vez conduz à sabedoria, que por sua vez leva à libertação. Este modelo de condições é o que define a fé no Buddhismo. Porque a fé está relacionada com sabedoria e libertação, ela tem duas características:

  1. Leva à sabedoria
  2. Vem acompanhada de, e leva à libertação.

Fé no Buddhismo não proíbe perguntas ou dúvidas, nem exige crença ou compromisso inquestionável em qualquer forma. Ambos, o Buddhismo e a Ciência possuem este tipo de fé; ambos usam a fé como um método no caminho para a compreensão da verdade. Agora surge a questão: que tipo de fé é aquela que leva à sabedoria?

No contexto da discussão de hoje, poderíamos dizer que a fé que leva a sabedoria é a crença de que este universo, ou o mundo da natureza, funciona de acordo com leis constantes e invariáveis. Esta é fé na Lei da Natureza, ou a crença de que a Natureza tem leis que são acessíveis à compreensão do homem.

Esta fé é o impulso que leva à busca da verdade, mas porque a fé em si é incapaz de levar diretamente à verdade, ela deve ser usada para desenvolver ainda mais sabedoria. Nesta fase, a fé do Buddhismo e a fé da ciência são muito semelhantes. Ambas possuem uma crença nas leis da natureza, e ambas se esforçam para saber a verdade dessas leis por meio da sabedoria. No entanto, a semelhança acaba aqui. Deste ponto em diante, a fé do Buddhismo e a fé da Ciência seguem por caminhos separados.

 

A diferença entre fé no Buddhismo e na Ciência

Dissemos que a origem da religião e da ciência é a consciência dos problemas na vida, os perigos do mundo natural. Em busca de um remédio para este problema, os seres humanos olharam sobre o ambiente natural com temor e admiração. Estes dois tipos de sentimento levaram tanto ao desejo de fuga do perigo quanto ao desejo de conhecer a verdade acerca da natureza. A partir desta origem comum, religião e ciência seguem caminhos separados.

Mas, para além de suas diferenças, tanto a ciência quanto a maioria das religiões têm uma semelhança importante, que é a sua tendência para olhar para o exterior, como foi explicado no Capítulo Dois. A este respeito, nós achamos que a ciência, em particular, limita a sua pesquisa exclusivamente aos fenômenos externos, físicos. A ciência não inclui a humanidade em sua imagem do universo. Em outras palavras, a ciência não considera o universo como incluindo a humanidade, e não olha para a humanidade como englobando a totalidade do universo.

Olhando para a natureza dessa forma, a ciência tem apenas um objeto para a sua fé, que é o universo físico – a fé que a natureza tem leis fixas. Em breve, poderíamos chamar isso de ‘fé na natureza’.

Mas o objetivo do Buddhismo é solucionar o problema do sofrimento humano, o qual surge tanto de condições internas quanto externas, com ênfase no mundo do comportamento humano. Ao mesmo tempo, o Buddhismo vê esse processo como sendo natural. Por essa razão, o Buddhismo, assim como a ciência, tem fé na natureza, mas essa crença ou fé também inclui os seres humanos, tanto no sentido de que os seres humanos são parte da natureza, como no sentido de que os seres humanos abrangem a totalidade da natureza dentro de si, na medida em que estão sujeitos às leis da natureza.

A fé da ciência tem apenas um objeto, mas a fé do Buddhismo tem dois objetos, e eles são:

  1. A natureza
  2. A humanidade

Em certo sentido, esses dois tipos de fé são a mesma coisa, porque ambas são crenças na natureza, o tipo mais óbvio assim. Mas o primeiro tipo de fé não abrange todo o cenário, pois inclui apenas o ambiente externo. No Buddhismo, a humanidade é reconhecida como uma parte da natureza. O corpo físico do homem é tão parte da natureza quanto o ambiente externo.

Além disso, os seres humanos possuem uma qualidade especial que difere das manifestações externas da natureza, e distingue a humanidade do mundo em torno dela. Esta é uma qualidade peculiar aos seres humanos. Você poderia até dizer que é sua “humanidade”. Esta qualidade é o lado mental da humanidade, a questão dos valores.

No Buddhismo acreditamos que esta qualidade abstrata dos seres humanos também é um fenômeno natural e está, naturalmente, também sujeita às leis de causa e efeito, e como tal está incluída na verdade natural. A fim de conhecer e entender a natureza, tanto o seu lado material quanto o mental devem ser bem compreendidos.

Tendo presente na mente que os seres humanos querem saber e entender a natureza, segue que para tal ocorrer, têm que entender aqueles que estão a estudar. Estas qualidades mentais, tais como fé e desejo de saber, são qualidades abstratas; são aquilo a que chamo de “valores”. Elas chegam ao reino humano abstrato e, como tal, chegam ao nosso campo de pesquisa e compreensão.

Além disso, no nível derradeiro, a obtenção da verdade também é a conquista do bem maior. No fim, a “verdade” e o “mais excelente tipo de vida”, ou a “verdade máxima” e o “bem maior” são a mesma coisa. Se as qualidades humanas não forem estudadas, qualquer compreensão ou conhecimento da natureza acabará por ser distorcida e estará incompleta. E será incapaz de levar a uma compreensão verdadeira da realidade.

Embora ciência tenha fé na natureza e esforça-se para conhecer as verdades da natureza, ela não olha para a natureza em sua totalidade. A ciência ignora os valores humanos e, como resultado, tem uma visão incompleta e falha da natureza. A busca da ciência por conhecimento é inadequada e não consegue alcançar a realização completa porque um lado da natureza, a natureza interna do homem, é ignorada.

Vale ressaltar que a fé como entendida pela ciência, bem como pelo Buddhismo, também sugere que pode ser divisível em dois aspectos. Isto é, existe fé tanto na natureza quanto no potencial humano. Vamos considerar a fé da ciência que, falando em termos precisos, é a convicção de que a natureza possui leis imutáveis, cuja veracidade é acessível à inteligência humana.

A fé da ciência pode ser dividida em dois aspectos, e tem dois assuntos, o mesmo que a fé do Buddhismo. Ou seja, primeiro existe a crença nas leis da natureza, e depois a crença na habilidade da inteligência humana de entender essas leis, o que é simplesmente fé no potencial humano. No entanto, esse segundo aspecto da fé não é claramente colocado na ciência, está mais subentendido. A ciência não menciona este segundo aspecto da fé, e presta pouca atenção ao desenvolvimento do ser humano. Ela se concentra em servir apenas ao primeiro tipo de fé.

Quanto a isso, a ciência difere do Buddhismo, que sustenta que a fé no potencial humano é de primordial importância e que expandiu esse tema para incluir formas práticas que foram sistematizadas na parte mais ampla dos ensinamentos buddhistas. Em todos os ensinamentos buddhistas, a fé está sempre conectada em três pontos. Ou seja, há a convicção no potencial humano de desenvolver a sabedoria e perceber a verdade das leis da natureza, sendo que essa convicção é corroborada pela convicção mais profundamente enraizada de que a natureza atua de acordo com leis fixas; e há a convicção de que a percepção dessas leis da natureza possibilitará aos seres humanos atingir o bem mais elevado, que é a libertação do sofrimento.

Esse tipo de fé cria uma distinção significativa entre Buddhismo e ciência. No Buddhismo há uma busca da verdade em conjunto com um treinamento para realizar o potencial humano. Este desenvolvimento do potencial humano é também o que determina a forma como o conhecimento é usado. Sendo este o caso, a probabilidade de utilizar o conhecimento adquirido com o estudo das leis da natureza para servir as influências destrutivas da cobiça, ódio e confusão mental é minimizado. Em vez disso, os conhecimentos adquiridos serão utilizados de uma maneira construtiva.

Quanto à ciência, esta fé unilateral nas leis da natureza é suscetível de causar uma busca de conhecimento sem objetivo e indisciplinada. Não há desenvolvimento do ser humano, e não há nenhuma garantia de que os conhecimentos adquiridos sejam utilizados de forma benéfica para a humanidade. A procura da ciência pelas verdades da natureza não ajuda, portanto, ninguém, nem mesmo aos cientistas, a atingir a satisfação, a aliviar o sofrimento, a aliviar a tensão ou a ter mentes mais calmas e claras. Ao mesmo tempo, a ciência abre amplo caminho para que indesejáveis valores passem a dirigir o desenvolvimento científico, conduzindo-o na direção da ganância, do ódio e do engano. Exemplos desses indesejáveis valores são o desejo de conquistar a natureza e o materialismo, os quais têm controlado o desenvolvimento científico no século passado ou mais, causando a exploração e a destruição do meio ambiente. Se o desenvolvimento científico continuar esta tendência, ele será insustentável.

Deve ser enfatizado que os seres humanos são seres inteligentes ou, de modo mais direto, eles são seres que têm intenção. Eles são seres que produzem kamma, e todos os tipos de kamma se baseiam na volição. Por essa razão os seres humanos têm um sentido de valores. Dado que eles têm fé nas leis da natureza e um desejo para entender tais leis, eles devem também ter um sentido de valores, seja isso consciente ou de outro modo. Essa qualidade irá condicionar o estilo e a direção de seus métodos para encontrar a verdade, assim como o contexto e o caminho nos quais a verdade é vista.

Se a conscientização de valores por parte da humanidade não penetra esta qualidade básica de unidade dentro de nossa mente, em outras palavras, se não desenvolvemos o bem supremo em conjunto com nossa busca pela verdade da natureza, nossa busca, além de ser incapaz de ser totalmente bem sucedida (porque ela ignora um lado da realidade), será dominada por valores inferiores, e a busca de conhecimento será descontrolada e mal direcionada. Valores inferiores irão influenciar a busca de conhecimento, distorcendo todas as verdades que são descobertas.

Falando de maneira mais simples, o conhecimento dos cientistas não é independente de valores. Um exemplo simples de um desses valores secundários é o prazer obtido da, e o que está por trás, da busca pelo conhecimento e as descobertas que ela produz. Até mesmo um tipo puro de busca por conhecimento, que é um valor mais sofisticado, se analisada profundamente, é suscetível de ter outros conjuntos de valores escondidos dentro dela, como por exemplo o desejo de alimentar uma necessidade pessoal, até mesmo algum sentimento agradável, dentro do pesquisador.

Gostaria de resumir esse ponto em que estávamos falando sobre dois níveis de valores, qual o valor mais elevado, juntamente com aqueles valores intermédios os quais são compatíveis com ele. O valor mais elevado é uma verdade que deve ser alcançada, não é algo que pode ser configurado artificialmente na mente. Os cientistas já têm fé na natureza. Tal convicção já é um valor dentro deles desde o início, mas esta fé deve ser ampliada para incluir toda a natureza e a humanidade, o que implica fé no bem mais elevado, simplesmente sustentando na mente que as leis da natureza estão conectados ao bem maior.

Quando o valor correto da fé estiver presente, os valores secundários que estão relacionados a ele também surgirão; ou estes podem ser ainda mais acentuados pelo encorajamento intencional em si mesmo. Isso servirá para evitar que os valores se mantenham em áreas indesejáveis, ou que sejam dominados por valores inferiores.

A fé, que é o nosso valor fundamental, condiciona os valores que são secundários a ela, em particular a aspiração por saber. Da fé na verdade da natureza surge a aspiração de saber a verdade da natureza, ou a verdade de todas as coisas. Uma aspiração como essa é importante tanto na ciência quanto no Buddhismo.

A partir da fé na existência do bem maior e no potencial humano, surge a aspiração para atingir o estado de libertação em relação ao sofrimento, para solucionar todos os problemas e buscar o desenvolvimento pessoal.

O primeiro tipo de aspiração é o desejo de conhecer a verdade da natureza. A segunda aspiração é o desejo de atingir o estado de liberdade. Quando essas duas aspirações são integradas, o desejo de conhecimento é mais claramente definido e dirigido. Torna-se o desejo de conhecer a verdade da natureza, a fim de resolver problemas e levar os seres humanos à liberdade.

Essa é a consumação do Buddhismo. Quando esses dois tipos de aspiração se mesclam, temos um ciclo, um equilíbrio, uma suficiência. Há um limite claro para a nossa aspiração para o conhecimento, nosso conhecimento que está sendo usado para o propósito expresso de criar uma qualidade de vida para a raça humana. Em suma, a nossa aspiração para o conhecimento está firmemente relacionada com o ser humano, e isso define a forma como o nosso conhecimento está sendo usado.

Assim como a ciência, originalmente havia apenas a aspiração pelo conhecimento. Quando a aspiração pelo conhecimento é sem objetivo e sem direção, o resultado é uma coleção aleatória de dados, uma tentativa de conhecer a verdade por trás da natureza vendo mais e mais para fora – a verdade para o seu próprio bem. A busca científica pela verdade carece de direção. Mas os seres humanos são guiados por valores. Porque essa aspiração pelo conhecimento é sem definição clara, abre-se para que outras aspirações ou valores menores preencham esse vácuo. Alguns desses objetivos ulteriores já foram mencionados, como o desejo de conquistar a natureza, e mais tarde, o desejo de produzir uma riqueza material abundante. Essas duas aspirações criam um diferente tipo de ciclo.

Gostaria de reiterar o significado deste ciclo: é a aspiração de conhecer as verdades da natureza com o propósito de explorá-las para a produção de bens materiais. Este ciclo tem sido a causa de inúmeros problemas nos últimos tempos: mental, social e, em particular, ambiental, como vemos neste momento.

Isso porque o pensamento da era industrial travou a ciência por uma brecha, uma aspiração indefinida para o conhecimento, que é a ação humana feita sem consideração do ser humano. No presente momento estamos experimentando os efeitos nocivos desta lacuna: problemas com o meio ambiente e em outros lugares, decorrente da crença no domínio do homem sobre a natureza e a adesão ao materialismo.

Esse tipo de pensamento tem causado uma tendência de excesso nos empreendimentos humanos. Não se colocam limites na busca da felicidade. A busca da felicidade é infinita, a destruição da natureza é interminável. Os problemas estão fadados a surgir. Este é um ponto em que os caminhos do Buddhismo e da ciência se apartam.

Se analisarmos adiante, vemos que a razão de a ciência ter este problema de ser indireta é devido ao fato de procurar pela verdade exclusivamente no mundo externo, no mundo material. Não procura o conhecimento dentro do individuo humano.

A ciência não está interessada – e, de fato, é ignorante – a respeito da natureza humana. Como resultado disso, se tornou um instrumento da indústria e de seus avanços egoístas sobre o meio ambiente. Essa ignorância sobre a natureza humana é ignorância sobre o fato de que a exploração dos cinco sentidos é incapaz de trazer felicidade ou contentamento a humanidade. Esse tipo de desejo não tem fim e, dessa maneira, a busca por riqueza material não tem fim. Porque essa abundância de bens materiais é obtida por meio da exploração da natureza, segue-se que a manipulação da natureza é sem fim e sem inspeção. Em última instância, a natureza não será suficiente para satisfazer os desejos humanos. Mesmo se os seres humanos destruírem completamente a natureza, não será suficiente para satisfazer o desejo humano. Provavelmente seria mais correto dizer que essa exploração da natureza dá ao ser humano mais sofrimento que felicidade.

 

Homem-centrado versus egocêntrico

Agora mesmo mencionei alguns importantes lugares comuns no Buddhismo e na ciência, ambos em áreas da fé e da aspiração ao conhecimento. Agora eu gostaria de dar uma olhada no objeto dessa fé e aspiração ao conhecimento. O objeto é realidade ou verdade. Nossa aspiração e nossa fé estão enraizadas no desejo da verdade ou do conhecimento. Quando tivermos alcançado a essência da matéria, que é conhecimento ou verdade, nossa aspiração está realizada. Isto significa que a humanidade pode compreender a verdade das leis da natureza.

Eu gostaria de salientar mais uma vez que no Buddhismo o nosso objetivo é usar o conhecimento da verdade para melhorar a vida humana e resolver problemas, para alcançar uma vida que seja perfeitamente livre. Por outro lado, a ciência tem como objetivo a utilização do seu conhecimento para a conquista da natureza, a fim de fornecer uma riqueza de bens materiais. Isto talvez seja ilustrado mais claramente nas palavras de René Descartes, cuja importância no desenvolvimento da ciência e da filosofia ocidental é bem conhecida. Ele escreveu sobre a finalidade da ciência como parte da luta para “nos tornarmos os mestres e possuidores da natureza”.

Com diferentes fins, o objeto do conhecimento também deve ser diferente. O que é o objeto do conhecimento no Buddhismo? O objeto principal de nossa investigação é a natureza do ser humano. Os seres humanos são o objeto do conhecimento, e a partir deste ponto nosso estudo se espalha para incorporar todas as coisas com as quais temos de lidar externamente. A humanidade é sempre o objeto, o centro a partir do qual estudamos a verdade da natureza.

Na ciência, por outro lado, o objeto de investigação é o ambiente externo, físico. Embora a ciência ocasionalmente investigue o ser humano, em geral é apenas como outro organismo físico inserido no universo material. A humanidade, como tal, não é estudada. Ou seja, a ciência pode estudar a vida humana, mas apenas no sentido biológico, não no que se refere à “condição humana” ou à “humanidade” do ser humano.

Então, o campo da pesquisa buddhista por conhecimento é o ser humano, enquanto o da ciência é o mundo exterior. Tomando este ponto como nossa referência, vamos olhar para as extensões da natureza que a ciência procura conhecer, e a natureza daquilo que o Buddhismo procura conhecer.

O Buddhismo acredita que os seres humanos são a evolução superior da natureza. Por esta razão, a humanidade deve englobar todo um espectro da realidade dentro de si mesma. Isto é, o organismo humano contém a natureza em ambos os planos físico e mental. No plano físico temos o corpo formado pelos elementos e ligado ao mundo físico externo. Contudo, o mundo físico não inclui o mundo dos valores, ou a mente. Por essa razão, estudando a humanidade é possível conhecer a verdade de todos os aspectos da natureza, tanto o físico quanto o abstrato.

A ciência estuda a natureza apenas no plano material, no mundo da matéria e da energia e não está interessada, nem reconhece, o fator da mente, da consciência ou do espírito. A ciência pesquisa de fora para dentro. Tendo atingido o organismo humano, a ciência estuda apenas “vida”, mas não estuda o ser humano. Ela conhece apenas os fatos do mundo físico, mas não conhece a natureza do ser humano ou da natureza humana.

Eu falei até agora sobre princípios básicos. Agora gostaria de fazer algumas observações gerais.

Agora há pouco, afirmei que o Buddhismo coloca a humanidade no centro, ele é antropocêntrico. Seu objetivo expresso é compreender e desenvolver o ser humano. A ciência, por outro lado, está interessada apenas no mundo exterior. Ela se destina a conhecer as verdades das coisas fora do ser humano.

Ao longo dos anos, à medida que a ciência incorporava a intenção de incluir a natureza dentro dos seus valores, a ciência mais uma vez colocou o homem no centro do quadro, mas de um modo muito diferente do modo como o Buddhismo faz. O Buddhismo dá aos seres humanos a posição central no sentido de reconhecer suas responsabilidades. Ele enfatiza o dever da humanidade para com a natureza. O Buddhismo coloca a humanidade no centro à medida que o homem precisa desenvolver a si mesmo, para remediar problemas. Isto é o que é o real benefício, possibilitando os seres humanos a atingir a transcendência do sofrimento, a liberdade e o mais alto bem.

A ciência, ao incorporar a visão da necessidade de conquista da natureza em suas aspirações, colocou a humanidade no centro da cena, mais uma vez, mas apenas como a exploradora da natureza. O homem diz: “Eu quero isso”, a partir do que ele passa a manipular a natureza para moldá-la aos seus desejos. Simplificando, a ocupação do lugar central pelo homem na ciência se dá a partir da perspectiva de alimentar o seu egoísmo.

Em relação ao objeto de estudo, o Buddhismo coloca a humanidade no centro. O homem torna-se a verdade que deve ser estudada, e isto para que seja capaz de desenvolver efetivamente o potencial humano. Mas a ciência, no início, em termos de verdade a ser estudada, direciona sua atenção unicamente em direção ao mundo material. Então, ela coloca a humanidade no centro como um agente que fará uso destes objetos materiais para alimentar seus desejos. O Buddhismo e a ciência são, portanto, ambos antropocêntricos, com a diferença de que, enquanto o Buddhismo é centrado no homem, a ciência e auto-centrada.

A segunda observação que gostaria de fazer é em relação à Ciência Pura. A ciência é pura ou impura?

A expressão ‘Ciência Pura’, assim chamada porque ela tem a fama de ser ‘ciência e apenas ciência’, ou seja, puro conhecimento, sem qualquer preocupação com a aplicação prática, é usada para distingui-la de Ciência Aplicada ou tecnologia. Mas hoje em dia a ciência não é tão pura. Com certeza, ela tem um direcionamento relativamente puro no sentido de estudar as leis da natureza, e pode dizer-se que é pura, mas quando estes outros valores infiltram-se na pesquisa científica, ela se torna impura.

 

Uma similaridade de métodos com uma diferença de ênfase

Tendo olhado para o alvo da investigação, vamos considerar agora, os meios para atingir esse alvo. Qual é o método usado para encontrar este conhecimento? No Buddhismo, o método para encontrar a verdade é triplo.

Primeiramente, a conscientização da experiência deve ser direta e imparcial. Conscientização imparcial da experiência é conscientização das coisas como elas são. O Buddhismo enfatiza o valor de se ver a verdade já desde a primeira conscientização: quando olhos veem visões, ouvidos sons e assim por diante.

Para a maioria dos seres humanos isso já é um problema. A consciência costuma estar de acordo com a maneira como as pessoas gostariam que as coisas fossem, ou como elas pensam que são, e não como realmente são. Elas não podem ver as coisas como são em razão dos erros, distorções, preconceitos e concepções erradas que têm.

Em segundo lugar, deve existir um pensar com ordem, pensar de forma sistemática. Além de um método de perceber os dados de forma rigorosa, deve existir, também, um método preciso de pensar. Por fim, o nosso método de verificação da verdade, ou pesquisa de conhecimento, é através da experiência direta.

Como garantir que a cognição da experiência seja imparcial? Em geral, sempre que os seres humanos tem a cognição de uma experiência, existem certos valores que estão imediatamente envolvidos. Bem aí, no exato surgimento da consciência, já se apresenta o problema de saber se o experimentador está livre desses valores ou não.

O que são esses valores? Os eventos que entram nos nossos campos de consciência irão ter diferentes qualidades, causando sentimentos agradáveis ou desagradáveis. Todas as nossas experiências serão assim. Se são agradáveis, nós chamamos de felicidade, enquanto se forem desagradáveis, chamamos de sofrimento.

Quando a conscientização surge e experimentamos uma sensação agradável, devido ao funcionamento da mente se seguirá imediatamente o gostar ou o não gostar. Chamamos a isso prazer e aversão, ou amor e ódio. A percepção das sensações tem, portanto, características próprias de afinidade ou antipatia, e o prazer e a aversão fazem parte disto. As pessoas transformam essas reações em hábitos desde o nascimento, fazendo-os fluir com extrema facilidade. Assim que uma experiência é trazida à consciência, estes valores de conforto, desconforto ou indiferença fluem imediatamente e daí surge o amor ou o ódio, o prazer ou a aversão.

Após o surgimento do prazer, aversão, gostar, desgostar, amor ou ódio, existe o pensamento de acordo e sob a influência desses sentimentos. Se existir atração, o pensamento tomará uma forma, se existir repulsão, o pensamento tomará outra forma. Por causa disso, a experiência é distorcida, vacilante ou tendenciosa. A consciência é falsa, existe proliferação e escolha na coleta de dados. Somente algumas perspectivas são vistas, outras não, e por isso o conhecimento que surge como resultado disso não é claro ou compreensivo. Em suma, a consciência não é das coisas como ela são.

Por essa razão, no Buddhismo, dizemos que devemos nos estabelecer corretamente desde o início. Deve haver consciência das coisas como elas são, a consciência com sati (relembrar ou vigilância), nem deleite nem ser averso. Experiências devem ser percebidas com uma mente consciente, a mente de um estudante, digamos, ou a mente de um observador, não com uma mente que está amando e odiando.

Como conhecemos com a mente que está aprendendo. De forma breve, há duas maneiras de conhecer com a mente aprendiz:

  1. Vendo a verdade – ou seja, estar atento às coisas como elas são, sem ser influenciado e corrompido pelos poderes do deleite e da aversão, do amor ou do ódio. Essa é uma forma pura de consciência, de percepção crua da experiência sem adição de quaisquer julgamentos de valor. As escrituras se referem a isso como “perceber apenas o suficiente para o desenvolvimento da sabedoria (nana)”, ou seja, apenas o suficiente para conhecer e entender a experiência como ela é, e pela presença de lembrança (sati), ou seja, para coletar dados. Especificamente, isso é ver as coisas conforme suas causas e suas condições.
  2. Reconhecer de maneira benéfica, isto é, perceber em conjunção com um valor habilidoso, que será verdadeiramente útil, e não para alimentar, afastar ou frustrar os sentidos. Isso significa perceber as experiências de modo a ser capaz de utilizar todas elas, tanto as preferidas como as desagradáveis.

Este segundo tipo de conhecimento pode ser ampliado: a experiência é uma função natural da vida, e a vida se beneficia do envolvimento com o ambiente natural. No entanto, para que a vida se beneficie dessas experiências, nós devemos entendê-las corretamente. Ou seja, deve existir uma tentativa consciente de percepção apenas da perspectiva que será benéfica para resolver problemas e levar ao desenvolvimento da vida. Caso contrário, a conscientização não passará de uma ferramenta para satisfazer os desejos dos sentidos ou uma razão de frustração dos desejos dos sentidos, e qualquer benefício será perdido. Esse tipo de consciência percebe as experiências de modo a se beneficiar delas. As experiências podem ser boas ou ruins, agradáveis ou desagradáveis, mas todas podem ser utilizadas de modo a nos beneficiar. Tudo depende da nossa capacidade de aprender a percebê-las corretamente.

Neste caso, no qual nosso objetivo é descobrir a verdade, devemos enfatizar o primeiro tipo de conscientização. Neste tipo de conscientização, se os canais errados são evitados, o efeito do deleite e da aversão não ocorrem, e a conscientização será da variedade relativa ao aprendizado.

Este tipo de conscientização é muito importante no estudar ou no aprender. Temos de começar a nossa aprendizagem exatamente no primeiro momento de conscientização. No Buddhismo este ponto é muito realçado: reconhecer a fim de aprender; não para entrar no gostar ou não gostar, ou para alimentar os desejos dos sentidos. A ciência pode não falar sobre isto em tantas palavras, ou enfatizar isto, mas se o objetivo é perceber a verdade, este método é essencial.

O segundo fator para atingir o conhecimento é o pensamento correto. Isto significa o pensamento que é estruturado, razoável e em harmonia com causas e condições. Nas escrituras buddhistas, muitas vias de pensamento são mencionadas, coletivamente conhecidas como yoniso-manasikara, ou reflexão habilidosa. Reflexão habilidosa é um importante fator no desenvolvimento da Perspectiva Correta, compreensão ou visão de acordo com a realidade. Isto é, ver as coisas de acordo com suas causas e condições, ou entender o princípio das causas e condições.

Alguns dos tipos de reflexão habilidosa explicados nos textos são:

  1. Buscar as causas e condições: Este tipo de pensamento foi de importância vital para a iluminação do Buddha. Por exemplo, o Buddha investigou vedanā, a experiência de prazer e dor, perguntando-se: “Do que dependem estas sensações de prazer e dor? Qual é sua condição?”

Refletindo desta maneira, Buddha viu que phassa, o contato sensorial, é a condição para a sensação. “Agora, qual é a condição para phassa?” O Buddha viu que as seis bases dos sentidos são a condição para phassa … e assim por diante. Este é um exemplo do pensamento de acordo com causas e condições.

  1. Pensando por meio de análise: A vida como um organismo humano pode ser analisada em dois componentes principais, corpo e mente. Tanto corpo quanto mente podem ser analisados mais profundamente. Mente, por exemplo, pode ser analisada em vedanā (sensação), saññā (percepção), sankhāra (atividades volitivas) e vinnānā (consciência) [3], e cada uma dessas categorias pode ainda ser dividida em componentes ainda menores. Sensação, por exemplo, pode ser dividida em três tipos, cinco tipos, seis tipos ou mais. Isso é chamado de “pensar por meio de análise dos componentes”, que é uma maneira de dividir o quadro geral ou o sistema para que as causas e condições envolvidas possam ser vistas com mais facilidade.

[3] Estes são os quatro khandhas mentais que, juntamente com rupa ou forma material, irão compor o toda da existência condicionada.

  1. Pensar em termos de benefícios e danos: Isto é olhar para as coisas à luz da sua qualidade, vendo as maneiras pelas quais elas nos beneficiam ou nos prejudicam, não olhando exclusivamente os seus benefícios ou seus danos. A maioria das pessoas tende a ver apenas os benefícios de coisas que elas gostam, e apenas as falhas das coisas que elas não gostam. Mas o Buddhismo olha para as coisas de todas as perspectivas, ensinando-nos a ver tanto os benefícios quanto os seus danos.

Estes diferentes tipos de pensamento, cerca de dez são mencionados nas escrituras, são conhecidos como yoniso manasikara. Eles são uma parte muito importante do caminho buddhista para a verdade.

Em seu sentido mais amplo, o pensamento também inclui o modo como percebemos as coisas, e por isso ele inclui o nível de conscientização inicial, e, assim como aquelas formas de conscientização, também pode ser dividido em dois grupos principais – isto é, pensamento com o objetivo de perceber a verdade, e pensamento como uma forma benéfica. Entretanto, eu não irei desenvolver o assunto neste momento, já que isto iria tomar muito tempo.

Continuando, o terceiro método para alcançar a verdade no Buddhismo é aquele da verificação através da experiência pessoal. Um dos princípios importantes do Buddhismo é que a verdade pode ser conhecida e verificada por meio da observação como uma experiência direta (sanditthiko, paccattam veditabbo vinnutti). Vejamos, por exemplo, o Kālama Sutta mencionado anteriormente, onde o Buddha aconselha os Kālamas a não simplesmente acreditar nas coisas, resumindo que “quando você tiver visto por si próprio quais condições são hábeis e quais condições são inábeis, empenhe-se em desenvolver aquelas hábeis e em abandonar as inábeis”. Esse ensinamento ilustra claramente a prática que é baseada na experiência pessoal.

Olhando para a história do Buddha, podemos ver que ele usava este método durante toda sua prática. Quando ele primeiro deixou seu palácio em busca de iluminação, ele praticava de acordo com práticas e métodos usados naquele tempo… asceticismo, yoga, transes e outros. Mesmo quando ele foi viver na floresta, as práticas utilizadas eram todas formas de experimentar. Por exemplo, o Buddha contou como ele passou a viver sozinho em terras selvagens, para que assim pudesse experienciar o medo. Nas horas profundas da noite, um galho se quebraria e o medo surgiria. O Buddha sempre procuraria pelas causas do medo. Não importa em qual postura ele estivesse, se o medo surgisse, ele se manteria naquela postura até tê-lo superado. Muitas pessoas teriam corrido por suas vidas! O Buddha não corria, ele ficava parado até ter superado o problema. Um outro exemplo das experimentações do Buddha era com bons e maus pensamentos. O Buddha experimentava com seus pensamentos até ser capaz de fazer ceder pensamentos obscuros.

O Buddha usou o método da experiência pessoal ao longo de sua prática. E quando ele estava ensinando os seus discípulos, ele ensinou-lhes a avaliar o professor de perto antes de acreditar nele, porque a fé deve ser sempre um veículo para o desenvolvimento da sabedoria. O Buddha ensinou a avaliar atentamente os professores, até mesmo o próprio Buddha, tanto do ponto de vista de saber se ele estava ensinando a verdade, quanto também no sentido da pureza das intenções do professor.

Testar o conhecimento do mestre pode ser feito através da consideração da plausibilidade do ensinamento. Testar as intenções do mestre pode ser feito considerando as intenções do mestre no ensinamento. Este mestre ensina com o desejo de recompensas pessoais? Ele quer qualquer presente ou ganho pessoal, que não seja o benefício do ouvinte, pelo seu ensinamento? Se, após aferir o mestre, ainda se tem confiança nele, então pode-se receber seus ensinamentos. Essa aferição e avaliação prossegue em todos os níveis do relacionamento mestre-discípulo.

Podemos também examinar os ensinamentos dos Quatro Fundamentos da Vigilância, que enfatiza a meditação do insight. Quando praticamos a meditação do insight, devemos sempre considerar e refletir sobre as experiências que entram em nossa consciência à medida que surgem. Se surge uma sensação agradável ou uma sensação desagradável, se a mente está deprimida ou exultante, o Buddha ensinou a examiná-las e a observar o seu surgimento, duração e extinção.

Mesmo nos mais altos estágios da pratica, ao avaliar se é um iluminado ou não, é-nos dito para olharmos diretamente em nossos próprios corações, vendo se ainda há ganância, ódio e ilusão ou não, ao invés de procurar por sinais especiais ou milagrosos.

Como a ênfase e o campo de pesquisa no Buddhismo e na ciência diferem em termos de observação, experimentação e verificação, os resultados dos dois campos serão diferentes. A ciência se empenha em observar eventos apenas no universo físico, usando os cinco sentidos, com o objetivo de manipular o mundo físico externo. Na linguagem do Buddhismo, poderíamos dizer que a ciência é especialista nas áreas de utuniyama (leis físicas) e bījaniyama (leis biológicas).

O Buddhismo, por outro lado, dá ênfase ao estudo do organismo humano, aceitando as experiências através de todos os sentidos, incluindo o sexto sentido: a mente. O objetivo da prática buddhista é alcançar o maior bem e uma compreensão da verdade da natureza. Enquanto o objetivo não é alcançado, há um remediar de problemas e avanços no desenvolvimento humano. Por esta razão, o Buddhismo tem muitos ensinamentos e métodos lidando com observação, experimentação e verificação de fenômenos mentais face ao comportamento humano. Na terminologia buddhista, diríamos que o Buddhismo tem a sua força no campo de kammaniyama (leis morais) e cittaniyama (leis psíquicas).

Se fosse possível incorporar as especialidades tanto do Buddhismo como da ciência, reunindo os frutos de seus trabalhos, nós poderíamos chegar a uma maneira equilibrada de levar o desenvolvimento humano a um nível mais avançado.

 

Diferenças nos métodos

Enquanto abordamos o tópico dos três métodos de encontrar conhecimento, eu gostaria de olhar para as diferenças desses métodos na ciência e no Buddhismo.

Primeiramente, a ciência utiliza-se da técnica de acumular conhecimento para encontrar a verdade. Essa acumulação de conhecimento é completamente divorciada de considerações quanto a estilo de vida, enquanto que no Buddhismo, o método para a obtenção do conhecimento é parte do estilo de vida. A Ciência não se preocupa com estilo de vida, apenas busca a verdade em si mesma, mas no Buddhismo, o método é parte do estilo de vida. Considere, por exemplo, o efeito da clareza de consciência sem a interferência do prazer e da repugnância na qualidade de vida. A busca buddhista por conhecimento tem um grande valor em si mesma, indiferente da obtenção ou não do objetivo.

A ciência obtém os dados exclusivamente das experiências que surgem através dos cinco sentidos, enquanto que o Buddhismo inclui a experiência do sexto sentido, isto é, a mente, que a ciência não reconhece. No Buddhismo, o sexto sentido é uma verdade verificável. No entanto, a verificação só pode ser feita através dos sentidos nos quais os dados surgem. Por exemplo, para verificar o paladar devemos usar a língua; para verificar o volume de som temos de usar os ouvidos e não os olhos. Se quisermos verificar as cores não usamos os ouvidos. O receptor do sentido em causa deve ser compatível com o tipo de dados sendo verificados.

Se o sexto sentido não é reconhecido, somos privados de uma imensa quantidade de dados sensoriais, porque há muitas experiências que surgem exclusivamente na mente. Há, por exemplo, muitas experiências dentro da mente que podem ser imediatamente experienciadas e verificadas, tais como amor, ódio, raiva, medo. Estas coisas não podem ser verificadas ou experimentadas através de outros órgãos dos sentidos. Se nós experimentamos o amor na mente, nós mesmos conhecemos nossa própria mente, podemos verificar isso por nós mesmos. Quando há medo, ou um sentimento de raiva ou de conforto, paz e contentamento, podemos conhecê-los diretamente em nossas próprias mentes.

Portanto, no Buddhismo damos a esse sexto sentido, a mente e seu pensamento, um papel de destaque na busca de conhecimento ou verdade. Mas a ciência, que não reconhece esse sexto sentido, deve recorrer a instrumentos concebidos para os outros cinco sentidos, principalmente os olhos e os ouvidos, como o encefalograma, para estudar o processo de pensamento.

Os cientistas nos dizem que no futuro serão capazes de dizer o que as pessoas estão pensando simplesmente usando uma máquina, ou analisando as substâncias químicas secretadas pelo cérebro. Estas coisas têm uma base factual, mas a verdade que estas máquinas irá revelar, provavelmente, será como “o mundo da sombra dos símbolos” de Sir Arthur Eddington. Não é realmente a verdade, mas uma sombra da verdade.

Isto indica que a verdade científica, como o método científico, está com defeito, porque viola uma das regras de observação. Os instrumentos não correspondem com os dados. Enquanto este for o caso, a ciência terá que continuar observando sombras da realidade por um longo tempo ainda.

Agora o sexto sentido, a mente, também é muito importante na ciência. A ciência em si desenvolve-se através do sexto sentido, desde os primórdios até hoje, incluindo os níveis experimentais e resumidos. No primeiro nível, antes de qualquer outro sentido, o cientista deve usar o pensamento. Ele deve organizar um plano, um método de verificação, e ele deve estabelecer as hipóteses. Todas essas atividades são processos mentais que dependem do sexto sentido, a mente. Mesmo na aplicação prática tem que haver a mente seguindo os eventos conscientes, tomando notas. E a mente é o árbitro, o juiz que deve ou não aceitar os diversos dados que surgem durante a experimentação.

Os estágios finais da investigação científica, a avaliação e as conclusões da experiência, a formulação de uma teoria e tudo o mais, são todos processos do pensamento. Podemos dizer com confiança que as teorias da ciência são todas resultado do pensamento, elas são fruto do sexto sentido, o qual é o quartel-general de todos os outros sentidos. O Buddhismo reconhece a importância do sexto sentido como um canal através do qual os eventos podem ser diretamente experienciados.

O ponto importante é que a conscientização deve ser recebida através do órgão do sentido apropriado. Algo que deve ser percebido pelo olho deve ser percebido pelo olho. Algo que deve ser percebido pela língua deve ser percebido pela língua. Da mesma forma, algo que deve ser percebido através da mente não pode ser percebido com olhos, ouvidos ou qualquer órgão dos sentidos que não a mente.

A verdade da mente é um processo de verificação de causa e efeito. Ela está sujeita às leis da natureza. Embora possa parecer muito complexo e difícil de seguir, o Buddhismo ensina que a mente está de acordo com a corrente de causas e condições, assim como qualquer outro fenômeno natural.

No mundo material, ou no mundo da física, é reconhecido que todas as coisas existem de acordo com causas e condições, mas em casos onde as condições são extremamente complexas, é muito difícil prever ou acompanhar esses eventos. Um exemplo simples é a previsão do tempo, que é reconhecida como sendo uma tarefa muito difícil, pois há muitas inconsistências. A sequência de causas e condições dentro da mente é ainda mais complexa que os fatores envolvidos no clima, tornando a previsão de resultados ainda mais difícil.

Os seres humanos são uma parte da natureza, os quais contêm toda a natureza dentro deles. Se as pessoas fossem capazes de abrir os olhos e ver, elas seriam capazes de alcançar a verdade da natureza como uma experiência direta. Usar instrumentos científicos, as extensões dos cinco sentidos, é uma forma indireta de proceder. Isso somente pode verificar a verdade em alguns níveis, apenas o bastante para conquistar a natureza e o mundo externo (até certo ponto), mas não pode levar o homem à verdade total da realidade.

Até agora, nós cobrimos as diferenças e semelhanças em escopo e objeto do Buddhismo e da ciência, os tipos de conhecimento que estão sendo procurados, os métodos usados para encontrar esse conhecimento e a utilização dos conhecimentos adquiridos, ou o objetivo geral deste conhecimento. Mesmo que os métodos para encontrar a verdade tenham algumas semelhanças, eles implicam uma diferença de escopo e ênfase, porque as verdades que estão sendo pesquisadas são diferentes.


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2015-2016 Edições Nalanda

Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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