sakiyas

9. O rio Ganges flui através de uma ampla planície delimitada no seu lado norte pela Cadeia Mahabharata, além da qual estão os Himalaias. Onde a planície encontra as colinas foi a pátria dos Sakyas, a tribo em que o Buddha nasceu. Os sakyas pertenciam à casta guerreira (khattiya) e tinham uma reputação de ter a cabeça quente e de serem orgulhosos. Comparados com os outros estados, os sakyas eram pouco sofisticados, no exterior, por assim dizer, da civilização que foi se desenvolvendo rapidamente no norte da Índia naquela época. Os sakyas não tinham propriamente cidades, mas sim grandes vilas e aldeias, sendo as principais Kapilavastu, a capital, Catuma, Komadussa e Silavati.

10. Como todas as pessoas da época, os sakyas tinham lendas sobre suas origens, uma mescla de realidade e ficção, com forte ênfase em suas proezas e sua nobreza. Eles acreditavam que suas origens remontavam ao mítico Rei Okkaka.

De acordo com a lenda, Okkaka tinha cinco esposas e muitos filhos, mas somente os filhos da principal rainha estavam na linha sucessória do trono. Os príncipes herdeiros eram  Okkamukha, Karakanda, Hatthinika e Sinipura.

Quando a rainha chefe morreu, Okkaka se casou com uma mulher muito mais jovem e a fez rainha-chefe, passando por cima das suas outras esposas e gerando muito ciúme. Quando a nova rainha-chefe lhe deu um filho, Okkaka ficou tão satisfeito que ofereceu dar a ela qualquer coisa que quisesse. Imediatamente ela respondeu: “Eu quero que meu filho seja herdeiro do trono”. O rei não poderia fazer isso porque seus quatro outros filhos tinham legalmente direito ao trono, mas a rainha insistiu que ele mantivesse sua promessa. Não sendo capaz de voltar atrás, ele pesarosamente fez o seu novo filho Jantu príncipe herdeiro e expulsou seus outros quatro filhos. Suas irmãs ficaram revoltadas com essa decisão e em protesto se juntaram a seus irmãos no exílio. Os príncipes e princesas vagaram através da selva à procura de um local adequado para ficar.

Finalmente, eles chegaram ao mosteiro do sábio Kapila, que os acolheu e os convidou a viver nas proximidades, o que eles fizeram, chamando seu pequeno povoado de Kapilavatthu em homenagem ao sábio. Haviam aldeias isoladas na área, mas os jovens príncipes eram orgulhosos demais para se casar fora de sua própria tribo e, então, eles fizeram da irmã mais velha, Piya, a mãe, e se casaram com as outras irmãs, algo para o qual os sakyas eram, em séculos posteriores, muitas vezes criticados. Mais tarde, Piya se casou com Rama, o rei de Benares, e os seus descendentes foram os ancestrais dos koliyas, os parentes dos sakyas ao leste. Foi o conhecimento dessa história e de outras relacionadas com a história da tribo que, provavelmente, moldou uma parte do aprendizado do jovem príncipe Siddhartha.​

11. Os sakyas tinham um conselho (sabha) que era composto de guerreiros da tribo respeitados por seu valor militar ou sua sabedoria. O conselho encontrava-se regularmente no Salão de Assembléia (sala) de Kapilavatthu para discutir a administração do estado. O conselho também havia estabelecido disputas (debates) e funcionava como um tribunal. Um homem que havia provado a si mesmo em batalha, que era rico em terras e gado, e que era conhecido por sua sabedoria, por seu tato e suas habilidades conciliatórias seria eleito como presidente do conselho e atuaria como o governante dos sakyas.

12. Suddhodana, cujo nome significa “arroz puro”, cumpriu todas essas exigências e governou os sakyas por muitos anos, como tinham feito provavelmente muitos membros de sua família antes dele. Ele era o filho de Sihanu e sua esposa Kaccana, e foi um dos cinco irmãos, sendo os outros Dhotodana, Sakkodana, Sukkodana e Amitodana. Os sakyans praticavam endogamia, casamento entre primos e poligamia, então Suddhodana se casou duas irmãs, Maha Maya e Maha Pajapati Gotami, que eram ambos seus primos próximos. Este tipo de arranjo foi encorajado porque os sakyas, sendo muito orgulhosos, achavam que estava abaixo de sua dignidade se casar com não-sakyans, e também porque isso mantinha a propriedade dentro da família [6]​.

13. O Buddha não era apegado à sua tribo, mas tinha uma relação de afeto para com ela. Uma vez, o jovem brāhmana Ambattha ofendeu os sakyas, na presença do Buddha. Quando o Buddha lhe perguntou por que ele estava tão irritado com os sakyas, ele disse: “Uma vez fui para Kapilavastu a negócios para meu mestre, o brāhmana Pukkharasati, e cheguei à sala de reunião dos sakyas. Naquela ocasião, uma multidão de sakyas estava sentada em lugares elevados na sala de reuniões, cutucando uns aos outros com os dedos, rindo e brincando juntos, e tenho certeza de que eles estavam zombando de mim. Ninguém sequer me ofereceu um assento. Não é apropriado que eles não respeitem Pukkharasati”. O Buddha defendeu os sakyas, dizendo: “Mas, Ambattha, mesmo uma codorna, aquela pequena ave, pode dizer o que ele quiser em seu próprio ninho”.

Kapilavatthu é o lar dos sakyas. Eles não merecem censura por uma fraqueza tão pequena” [3]. Muitos membros da família do Buddha e outros sakyas tornaram-se proeminentes na Sangha, e era provável que, em alguns aspectos, o Buddha os favoreceu, embora não quando se tratava de assuntos espirituais. Ele fez sua mãe adotiva, Maha Pajapati Gotami, chefe da Sangha de monjas. Dos nove atendentes diferentes que o Buddha teve durante sua vida, um deles, Ananda, foi um primo e dois outros, Nagasamala e Meghiya, foram sakyas.

14. Depois de quase sete anos sem saber nada de seu filho, Suddhodana ficou sabendo que seu filho estava em Rajagaha, e que afirmava ser iluminado.

Extremamente contente por saber que seu filho estava vivo ainda, Suddhodana enviou um mensageiro para pedir-lhe para voltar para casa. O mensageiro encontrou o Buddha no Bosque dos Bambus em Rajagaha e ficou tão encantado ao ouvir o Dhamma que lá mesmo decidiu se tornar um monge, esquecendo completamente de passar mensagem para Suddhodana a respeito do Buddha. Mais mensageiros foram enviados e aconteceu a mesma coisa. Finalmente, em exasperação, Suddhodana comissionou Kàludàyi para levar a mensagem, mas disse-lhe que ele tinha permissão para se tornar um monge, apenas sob uma condição, de que ele passasse a mensagem ao Buddha. E assim o Buddha veio saber do desejo de seu pai em vê-lo. Pouco depois, ele partiu para Kapilavatthu, acompanhado por um grande número de monges. Quando o grupo chegou, eles ficaram fora da cidade em um parque e de manhã entraram na cidade para pedir alimento. Só então Suddhodana compreendeu que o Buddha tinha chegado e estava chocado que seu filho dormiria debaixo de uma árvore ao invés de no palácio, e pediria nas ruas ao invés de festejar na mesa de banquete. “Você está degradando a dignidade da sua família”, disse Suddhodana, mal podendo conter sua raiva. O Buddha respondeu: “Suddhodana, ao tornar-se iluminado uma pessoa torna-se um membro da família dos Nobres e sua dignidade não se baseia em acessórios externos, mas na sabedoria e compaixão”. O Buddha deu muitos ensinamentos em Kapilavatthu e outras cidades, e muitos Sakyas se tornaram monges enquanto outros se tornaram seguidores entusiastas do Dhamma, mesmo permanecendo na vida leiga. Após a resistência inicial, Suddhodana ouviu o que seu filho tinha a dizer e tornou-se Uma-Vez-Retornante.

15. O sectarismo e o orgulho dos sakyas eventualmente os levou a sua ruína. Embora os sakyas fossem livres para administrar seus próprios negócios, eles eram controlados em algum grau pelos seus poderosos vizinhos do oeste, os kosalas. Na época do Buddha, os kosalas tinham tanta intervenção nos negócios dos sakyas, que certa vez ele efetivamente descreveu sua terra natal como sendo uma parte de Kosala. “Agora os sakyas são vassalos do rei de Kosala. Eles o recepcionaram e o saudaram, ficaram em pé diante dele, renderam-lhe as honras e fizeram-lhe deferência” [4]. O amor de Buddha à liberdade pessoal e independência foi provavelmente influenciado por sua educação Sakya, e não há dúvida de que ele simpatizava com as pequenas repúblicas tribais em sua luta para manter independência em relação às monarquias autoritárias que foram surgindo na época. Quando ouviu que o Rei Ajatasattu estava se preparando para invadir a república dos vajjias, perguntou a Ananda:

“Vocês já ouvira falar que os vajjias realizam reuniões regulares e frequentes, que se encontram em harmonia, realizam negócios em harmonia, e requerem em harmonia, que respeitam as decisões que tomaram de acordo com a tradição, que eles honram, respeitam, reverenciam e saúdam os mais velhos e ouvem os seus conselhos, que não raptam esposas ou filhas dos outros nem obrigam-nas a viver a eles, que honram, respeitam, reverenciam e saudam os santuários dos vajjias em casa e no exterior, e não suspendem o sustento dado a eles e que disposições e proteções adequadas são concedidas aos homens santos para que eles possam habitar ali com conforto e que mais venham no futuro?” “Ananda respondeu que os vajjias fizeram todas essas coisas e Buddha disse: “Enquanto eles agirem assim,, os vajjias prosperarão e não haverá declínio” [5].

16. Parece que o Rei Pasenadi de Kosala pretendia aumentar sua influência entre os sakyans, o que ele resolveu fazer, exigindo uma nobre sakya como esposa para seu filho. Nenhum dos sakyas queria que uma de suas filhas se casasse com alguém de fora da tribo, mas ao mesmo tempo eles não poderiam ignorar os desejos do seu vizinho poderoso.

Mahanama, um dos primos do Buddha, surgiu com uma solução. Ele era pai de uma menina chamada Vasabhakhattiya, que teve com uma de suas escravas, e ele sugeriu que esta menina se passasse por uma nobre sakya e fosse dada ao filho do Rei Pasenadi em casamento. O truque funcionou; Vasabhakhattiya foi levada para Kosala, casou-se e foi aceita na família real kosala. Ela acabou dando à luz um filho que foi nomeado Vidudabha e que se tornou príncipe herdeiro.

Quando Vidudhaba cresceu, ele desejou visitar o que ele pensou serem seus parentes Sakyas em Kapilavatthu, mas sua mãe o convenceu a não ir,  sabendo que os Sakyas o tratariam com desprezo. Finalmente, ele foi e ficou atordoado com a fria recepção que teve. Não querendo ser mais desrespeitado, ele logo partiu, mas logo após deixar Kapilavatthu, um de seus assistentes precisou retornar para pegar uma espada que havia esquecido. Quando chegou a sala de reuniões, ele viu uma escrava lavando com leite o assento em que Vidudhaba havia sentado – um modo aceito de purificar algo que tinha se tornado ritualmente impuro. O guerreiro perguntou à escrava por que ela estava fazendo isso:

“Porque o filho de um escravo sentou-se lá”, ela respondeu. Ele perguntou a ela o que ela quis dizer e ela contou-lhe toda a história. Quando Vidudabha ouviu a verdade, que sua mãe não era uma mulher nobre, mas uma escrava comum, sua humilhação e fúria ignoraram os limites e ele prometeu que um dia ele iria punir os sakyas por seu engano. “Deixe que eles derramem leite sobre meu assento para purificá-lo. Quando eu for rei, vou lavar o local com o sangue de seus corações”.

17. Rumo ao final da vida do Buddha, Vidudabha se tornou um rei e, em várias ocasiões, ele marchou com seu exército rumo à Kapilavatthu, embora em cada ocasião o Buddha conseguisse persuadi-los a retornar. Eventualmente, porém, Kapilavastu e várias outras cidades dos sakyas foram atacadas e Vidudabha teve a satisfação pessoal de ter muitos sakyas massacrados.

Após a campanha, ele marchou de volta a Kosala carregado com os despojos. No caminho de volta, o exército acampou por uma noite ao lado do banco de areia de um rio e, durante a noite, uma forte tempestade provocou uma enorme enxurrada que foi rio abaixo, afogando a maioria do exército de Vidudabha. Os sakyans que sobreviveram ao terrível massacre reconstruíram algumas cidades pequenas e tentaram continuar suas vidas, mas com seu número de soldados dizimados e sua independência perdida, eles fracassaram e são lembrados até hoje só por causa de um deles, o Buddha.

Notas:
1. D,I:92.
2. M,I:354.
3. D,I:91.
4. D,III:83.
5. D,11:74.

✧ ✧ ✧


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o autor
Para Distribuição Gratuita
© 2016 Edições Nalanda

Nota: Este artigo é parte da série O Buddha & Seus Discípulos que está sendo traduzida e cujas partes serão publicadas aqui no site.


* Se você tem habilidades linguísticas e gostaria de traduzir e dispor suas traduções em nossa sala de estudos para que mais pessoas possam ter acesso aos ensinamentos do Dhamma, nós o/a convidamos para entrar em contato conosco. Precisamos de tradutores do espanhol, inglês, alemão e outras línguas.