~ Ven. S. Dhammika

O primeiro amor que recebemos é dos nossos pais e é para eles que primeiro damos o nosso amor. Um jovem terá prazer em ser chamado de “bebê” por sua namorada, e cônjuges amorosos, por vezes, referem-se aos seus parceiros como “mãe” ou “pai”. Isso ocorre porque os sentimentos de afeto, segurança e aceitação que eles experimentam com seus parceiros são reminiscentes do que eles receberam de seus pais, quando jovens. Os laços emocionais que pais e filhos têm entre si parecem ser semelhantes no tempo e no espaço. Para usar a metáfora semelhante à do inglês moderno, o pai do Buddha, Suddhodana, comentou que, quando os pais são separados de, ou perdem, um filho amado, “Isso corta a pele, o músculo, a carne, o osso. Corta até a medula” [1].

O Buddha usou as palavras genéricas piya, pema e sineha para o amor em família, mas também os termos mais específicos, como o amor da mãe (matteyya) e o amor do pai (petteyya). Porque somos totalmente dependentes de nossos pais durante os primeiros anos e porque são as primeiras pessoas com quem temos algum tipo de relacionamento, os pais têm um papel crucial em nosso desenvolvimento físico, intelectual, moral e emocional. O príncipe Siddhattha, que mais tarde se tornaria o Buddha, parece ter vindo de uma família unida. Embora fontes autênticas sobre sua vida precoce sejam escassas, é certo que ele era filho único e, sendo um menino, é provável que fosse particularmente querido por seus pais. Mais tarde ele se tornou um marido, por mais de uma década, e por muito breve tempo foi um pai. Isso – junto com sua compreensão penetrante dos desejos, necessidades e motivações humanas – permitiu que ele falasse do amor em família com astúcia e sensibilidade.

As escrituras mencionam o amor entre os pais e a sua criança em termos muito carinhosos e afetuosos. “O amor de sua própria mãe e de seu próprio pai é a verdadeira felicidade no mundo” [2]. Em certo lugar, é descrito como um rapazinho, enquanto brincava sentado no joelho de sua mãe, a socava no seu rosto e puxava o seu cabelo. A sua mãe o chama de “pequeno vilão”, apertando, aconchegando, beijando e amando-o mais ainda [3].  Além de amar e nutrir, o Buddha considerava que o principal papel dos pais é prover aos seus filhos a moral e o bem-estar material. Os pais devem, disse ele, impedir que os filhos cometam erros, incentivá-los a fazer o bem, dar-lhes educação, fornecer-lhes um parceiro adequado para o casamento e deixar-lhes uma herança. Da parte das crianças, elas devem apoiar seus pais na velhice, atender respeitosamente às suas necessidades, manter as tradições familiares, usar sua herança com sabedoria e dar presentes em memória de seus pais depois de terem morrido [4]. O Buddha apresentou tudo isso como um arranjo recíproco – eles fizeram tudo isso por você e, em troca, você deveria fazer isso por eles. O Buddha disse que quando esse arranjo funcionava, aquele cantinho do mundo conhecido como a família ficava “protegido, seguro e livre de medo”. Ele também poderia ter apontado: feliz, harmonioso e saudável.

Para o Buddha, os pais eram particularmente dignos do amor, do respeito e da gratidão de seus filhos “porque eles fazem muito por seus filhos – eles os geram, nutrem e os introduzem ao mundo” [5]. Como se para reforçar a benção dessa gratidão amorosa, ele também disse que era impossível para nós retribuir aos nossos pais por tudo que eles fizeram por nós. Então ele acrescentou esta importante condição: “Mas aquele que encoraja seus pais sem fé a terem fé, seus pais imorais a se tornarem virtuosos e seus pais ignorantes a se tornarem sábios, esse ao fazer isso, retribui, faz mais que retribuir a seus pais” [6].

Uma passagem bem conhecida na vida do Buddha foi sua assim chamada Grande Renúncia, quando ele abandonou família e carreira e foi em busca da verdade. Alguns o criticaram por negligenciar seu casamento e obrigações enquanto pai. Contudo ele, como outros mestres espirituais, sabiam que, quando se trata de concordar com os desejos e as expectativas das pessoas próximas a nós e sustentar o nosso parceiro e filhos, a chamada da busca espiritual sempre deve ter precedência. Jesus nunca teve que abandonar esposa e filhos porque ele não teve nenhuma, mas há poucas dúvidas de que ele o teria feito sem hesitar pelo Reino de Deus. Ele certamente encorajou seus seguidores a fazer isso. “E aquele o qual tenha deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou filhos, ou terras, por minha causa, receberá cem vezes tanto e herdará a vida eterna” [7].

Para o Buddha deve ter sido horrível ter de escolher entre ser um bom pai de família e encontrar a Verdade para compartilhar com toda a humanidade. Ele acabou decidindo, “movido pela compaixão pelo mundo, agir pelo bem e pelo bem-estar de todos” e não só de seus entes queridos. O foco estreito de seu amor, que incluía apenas sua família imediata, se expandiu para englobar o mundo inteiro. Essa decisão pode ter sido um pouco mais fácil porque ele sabia que sua mulher e filho não passariam por dificuldades. A marca de um grande ser espiritual é sua capacidade de abrir mão de tudo, de sacrificar tudo, pela Verdade. De acordo com os textos dos Jatakas: “A pessoa disposta a abrir mão da riqueza para salvar um braço, ou sacrificar um braço para salvar a vida, deve se dispor a abrir mão da riqueza, do braço, da vida, de tudo pela Verdade” [8].

Enquanto o papel fundamental dos pais é garantir a seus filhos bem-estar e crescimento físico, emocional e moral, o do professor para com seus alunos é nutrir seu desenvolvimento espiritual. Um testemunho do quanto o Buddha honrava o amor familiar é que ele concebeu o relacionamento ideal entre professor e aluno, espelhando aquele existente entre pais e filhos. Sobre o treinamento de monges ele disse: “Um professor cuidadoso terá um coração de pai (pītucitta) para com seu aluno, enquanto o aluno terá um coração de filho (putacitta) para com seu professor. Unidos por essas reverência e deferência mútuas e vivendo em comunhão um com o outro, ambos alcançarão um acréscimo, um crescimento e um florescimento no Dhamma e no treinamento” [9]. Buddha disse que um aluno se relacionaria com seu professor não apenas com atenção e respeito cordial, mas também “com carinho” [10].

A tradição buddhista tendeu a traçar uma nítida distinção entre a vocação monástica e a vida familiar, sugerindo que a primeira oferece mais oportunidades de crescimento espiritual do que a segunda. Esse entendimento provavelmente foi promovido em algum grau porque os monges e as monjas sempre foram os principais transmissores e intérpretes do Dhamma e tendem a ver as coisas de sua perspectiva particular. O Buddha descreveu a vida monástica como sendo “tão livre quanto a brisa” e a vida doméstica como “empoeirada e aprisionante” [11]. Mas mesmo uma rápida leitura do Vinaya, a enorme escritura delineando as regras para monges e monjas, mostrará que a vida monástica sempre teve e ainda tem seus problemas. Os mosteiros não estavam livres de tensões pessoais, ciúmes e preocupações, às vezes muito sérias [12]. Da mesma forma, enquanto monges e monjas durante a época do Buddha tinham muita liberdade, suas vidas também podiam ser difíceis e inseguras. Muitos não tinham um lar permanente e precisavam aguentar perante “o frio e o calor, a fome e a sede, as picadas de pernilongos e mosquitos, o vento, o sol e os insetos rastejantes” [13].

Por outro lado, um homem casado poderia ter “uma casa com telhado de duas águas, bem rebocada por dentro e por fora, com portas e janelas seguras, mobiliada com um sofá colocado sobre um tapete de lã, uma capa branca, cobertores bordados, uma cara pele de veado, um dossel acima e travesseiros vermelhos em cada extremidade, uma lâmpada acesa ao lado e duas esposas para atendê-lo com todos os seus encantos” [14]. No entanto, o conforto doméstico também tem um custo. Apoiar o cônjuge e os filhos pode ser difícil, os maridos e as esposas nem sempre concordam, e às vezes há mal-entendidos entre os filhos e os pais. Espera-se que seu amor mútuo sobreviva a esses e outros desafios, mas é claro que isso nem sempre acontece. Se o amor morre e os pais não se separam, eles podem vir a viver como estranhos ou até mesmo como inimigos na mesma casa, sempre brigando ou raramente falando um com o outro. Às vezes, as crianças se veem afastadas de seus pais e amputadas de todo o contato com eles. Seja uma pessoa laica com sua família, ou um monge ou monja em um monastério, viver próximo a outros requer habilidade e paciência, tolerância e tato e, acima de tudo, amor.

Assim, a vida familiar pode ser tão rica em oportunidades espirituais quanto a vida monástica, e o Buddha encorajou seus discípulos laicos a praticarem meditação “à medida que você se ocupa de sua vida, enquanto mora em sua casa repleta de crianças” [15]. Criar crianças é um desafio e consome tempo, mas é igualmente verdade que conviver com crianças, como conviver com um parceiro, exige que desenvolvamos algumas das qualidades espirituais mais importantes. Ser um bom pai e parceiro nos chama a adiar ou renunciar aos nossos desejos em benefício dos outros, e isso reforça a aceitação e o desapego. Requer paciência e generosidade, perdão e autossacrifício. As crianças e seus amigos podem, também, nos nutrir com amor, companheirismo, ternura e apoio emocional, qualidades tão essenciais para o bem-estar psicológico e por vezes ausentes em mosteiros. Mimar as suas crianças e brincar com elas ou, simplesmente, observá-las a brincar, pode ser tão curador como seis meses de terapia e talvez tão calmante como um retiro de dez dias de meditação.

Todos nós esperamos fazer parte de uma família amável, mas essa esperança nem sempre se concretiza. As escrituras mencionam casos de pais idosos sendo negligenciados pelos filhos, e disputas entre mães e filhos provocados por ciúmes da nora [16]. O Buddha fez referência a “alguém que ataca ou faz uso de palavras raivosas para com a mãe ou pai, irmão, irmã ou avó”, evidenciando que alguns dos problemas familiares que nos são bem conhecidos hoje, existiam durante seu tempo também.

Entretanto, na sociedade ocidental contemporânea, conflitos familiares parecem estar mais sérios e disseminados do que no passado. Há uma discussão frequente e conflitante sobre a que se deve “a desintegração familiar”. Existem varias razões para tais problemas, porém duas que se sobressaem são os ensinamentos de Sigmund Freud e o individualismo encorajado pela sociedade consumista contemporânea. Freud salientou que muitos problemas psicológicos têm sua origem na tenra infância, particularmente na maneira em que os pais educam seus filhos. Poucos podem negar de que haja uma grande verdade nesta observação. No entanto, como essa ideia foi diluída no entendimento popular, inadvertidamente tornou-se aceitável atribuir todos os nossos problemas aos nossos pais. Ao invés de explorar o papel que nossas escolhas e atitudes tiveram em nos fazer infelizes, e provavelmente o fizeram até certo ponto, nos contentamos em colocar toda a culpa na mamãe e no papai. Isso faz com que os filhos fiquem ressentidos com os pais, e com que os pais sintam-se defensivos e culpados, agravando ainda mais as tensões que já existem.

Os jovens são mais impressionáveis e facilmente influenciáveis do que os idosos, que tiveram mais experiência de vida. Os jovens também têm um desejo natural de independência e autoexpressão, manifestando-se no que o Buddha chamou de “a intoxicação da juventude” [17]. Cientes disso, os fornecedores de bens de consumo visam assiduamente os jovens e desenvolvem produtos que atendem às suas fantasias. Tão envolvente é a cultura jovem resultante que deixa muito pouco espaço para os pais, e o resultado pode ser a incompreensão entre eles e seus filhos. Se as coisas se desenrolam para o melhor, relacionamentos difíceis entre pais e filhos não ficarão danificados sem reparo antes que as crianças amadureçam, tenham os seus próprios filhos e comecem a entender os seus pais de maneiras que nunca poderiam ter feito antes. No meu caso, eu costumava me ressentir profundamente da insistência de minha mãe de que voltasse para casa antes de ficar escuro ou – se conseguisse permissão para ficar até tarde – que eu explicasse para onde estava indo, o que faria e a que horas estaria em casa.

Enquanto meus amigos estavam fora se divertindo, eu estava em casa de mau humor. Quando eu já era mais velho e depois de um dos meus melhores amigos permanecer entrando e saindo da corte juvenil e outros dois terem sido vítimas das drogas, entendi que minha mãe me impôs essas restrições por ter uma profunda preocupação com o meu bem-estar. Mas, às vezes, mal-entendidos entre pessoas, pais e filhos incluídos, causam tais feridas que a reconciliação fica impossível, mesmo após muitos anos. O resíduo de ações feitas ou deixadas por fazer, de palavras faladas ou não faladas quando deveriam ter sido ditas, obscurece qualquer aproximação ou tentativa de reconciliação. Quando este for o caso, tudo o que pode ser feito é aceitar a ruptura e tentar eliminar qualquer raiva ou ódio do coração.

Notas

  1. Vin.I,83.
  2. Dhp.332.
  3. Ja.VI.376.
  4. D.III,189.
  5. A.II,70.
  6. A.I,62.
  7. Mateus 20,29. Veja também Mateus 10,34-6; Marcos 3,31-3; Lucas 14,26; João 2,4.
  8. Ja.V,500.
  9. Vin.I,45.
  10. M.III,264.
  11. D.I,63.
  12. Veja M.I,321 por exemplo.
  13. M.I,10.
  14. A.I,137.
  15. A.V,333.
  16. Sn.125. Nos tempos antigos, um homem tinha o direito de vender sua esposa e filhos e, às vezes isso acontecia devido à fome ou dívidas. Os buddhistas consideravam essas coisas com horror e o Upāsakaśīla Sūtra (século III dC) proíbe expressamente que um homem faça isso.
  17. yobbanamada, A.I,146.

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o autor
Para Distribuição Gratuita
© 2015-2019 Edições Nalanda

Nota: Este artigo é parte da série Reflexões Buddhistas Sobre o Amor que está sendo traduzida e cujas partes serão publicadas aqui no site.


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