~ Ven. S. Dhammika ~

Mesmo as pessoas que não costumam pensar muito profundamente sobre isso, ou que estão pouco conscientes do que se passa em seus corações, reconhecem que existem diferentes tipos de amor. É bastante comum falar em amor verdadeiro, amor adolescente, amor difícil, amor à primeira vista, amor que não ousa dizer seu nome, amor platônico, amor não correspondido, relação de amor e ódio, e amor de olhos abertos. Psicólogos referem-se a “estilos de amor” e “variações de laços”. Nós também temos muitas palavras e expressões para aqueles estados mentais que não são amor, mas que se aproximam dos seus limites – afeto, ternura, generosidade, bondade, proximidade, gosto, devoção e assim por diante.

As escrituras buddhistas contêm numerosas palavras para o amor como ādara, athakāma, dalhabhatti, hita, kāma, lokassādara, manāpa, matteyya, mettā, paṭibaddhacitta, paṭisanthāra, pema, petteya, piya, sambhajeyya, sampiya, siniddha, sineha e vissāsa. Algumas dessas palavras são sinônimas, enquanto algumas se referem a tipos distintos de amor. Embora nem sempre seja fácil encontrar equivalentes em português completamente exatas para elas, há casos em que um tradução direta pode ser facilmente encontrada. Por exemplo, paṭibaddhacitta significa paixão, petteyya é amor paterno, kāma é amor erótico ou sensual, e vissāsa significa aceitação calorosa e confiante. Vamos explorar alguns dos tipos mais distintos de amor mencionados na tradição buddhista.

Muitas pessoas já ouviram o termo “amor fraterno” ou “amor universal” e estão prontas para louvá-lo sem necessariamente alguma vez ter sentido ou mesmo ter tentado despertar isso dentro delas mesmas. Pessoas profundamente religiosas dizem que sentem o amor de Deus, mas aquelas que não acreditam no sobrenatural acham difícil de entender sobre o que aquelas estão falando. Algumas pessoas têm um carinhoso lugar em seus corações para animais enquanto outras são indiferentes por eles. Mas quase todo mundo teve se apaixonou uma vez ou outra, talvez muitas vezes.

Assim, para a maior parte das pessoas “amor” é aquela urgência excitante e sublimemente alvoroçante por intimidade com uma outra pessoa, urgência sentida vagamente na área do plexo solar. Discussões sobre o amor quase sempre incluem algo sobre o que é chamado amor erótico, amor romântico, eros para os gregos, kāma, lokassādare ou rati  no buddhismo. Esse é o amor que faz o mundo girar, como diz o ditado. É o amor que inspirou algumas das maiores obras literárias, artísticas e musicais da civilização. É o amor que todo mundo anseia experimentar e espera que dure para sempre

Se apaixonar como nós entendemos a experiência hoje não era muito comum durante o tempo do Buddha, não mais do que era em outras culturas antigas. O prelúdio e a proposta de casamento não era amor. Pessoas casavam para preservar propriedade e produzir descendência legítima, e por essa razão a maioria dos casamentos eram arranjados pelos pais. Pessoas jovens se juntavam logo depois que alcançavam maturidade sexual, então, elas tinham muito pouca oportunidade de se apaixonar. Se o amor crescia, era após o casamento. Apesar disso, às vezes pessoas jovens conseguiam se apaixonar um pelo outro ou às vezes aqueles casados se apaixonavam por alguém que não era seu cônjuge. Relacionamentos românticos e sexuais ilícitos aconteciam apesar da falta de oportunidades e forte desaprovação social.

O amor romântico, hoje em dia, geralmente nasce de repente. Uma pessoa vê outra, e imediatamente é atraída e, em seguida, se apaixona. Ele ou ela, então, tentam fazer contato com a pessoa que desejam na esperança de atrair sua atenção e conhecê-la  melhor. Se as coisas vão como esperado e  seu interesse encontra reciprocidade, um romance é estabelecido. Porém se a timidez, as diferenças sociais  ou outras barreiras surgem como intransponíveis, e começam a interferir no relacionamento com a pessoa amada tornando-o impossível, elas podem, secretamente, sonhar com um relacionamento, ansiar por ele, adorar, amar e fantasiar sobre um romance à distância.

Claro nem todo amor começa subitamente ao apaixonar-se; às vezes ele cresce lentamente. As escrituras identificam ao menos quatro estágios nesse despertar gradual. Ele começa com a visão, a visão leva à associação, a associação leva à intimidade, e a intimidade leva à disposição amorosa [1]. O amor romântico pode durar semanas ou meses, embora se retribuído ele durará muito mais tempo. Mas, mais cedo ou mais tarde, ou ele murcha, azeda em aversão ou torna-se mais estável e evolui para o amor conjugal.

O amor romântico tem todas a características que definem os outros tipos de amor. Embora, de uma maneira muito mais exagerada ou desregrada. Casais apaixonados estão intensamente interessados um no outro; muito do tempo que passam juntos falam sobre cada mínimo detalhe de suas vidas, gostos e aversões, esperanças, interesses e sonhos. “No quê você está pensando?”, uma jovem dirá algumas vezes ao seu amado.

Amantes também acabam se preocupando um com o outro, com sua felicidade e bem-estar e, particularmente, para que o amor que compartilham continue e se fortaleça. Eles simpatizam-se entre si, o que, no romance, é geralmente descrito como “dois corações batendo como um”. O desejo pela intimidade é aumentado. Durante a primeira onda de amor, o casal envolvido dificilmente consegue suportar estar fora da visão um do outro e o desejo pela intimidade sexual frequentemente tem uma desesperada e urgente característica. De fato, o amor romântico é tão de perto associado ao sexo que a própria relação sexual é comumente chamada de “fazer amor”. Em nenhum outro tipo de amor o sentimento positivo é tão dominante, chegando a ser incontrolável, apesar de esse sentimento muitas vezes ser pontuado de episódios de desespero e angústia, anseios inquietos e esperanças não concretizadas. Brigas seguidas de reconciliações ou separações terminando em reencontros só parecem intensificar o apego e o desejo pela companhia um do outro. Os casais podem até criar essas situações para usufruir da reconciliação. De acordo com as escrituras: “Quando um casal ou um marido e uma mulher divertem-se entre quatro paredes com o amor romântico, eles repreendem um ao outro: ‘Querido(a), você não me ama de verdade. Seu coração pertence a outra(o)’. Eles fazem falsas repreensões para poder se amar com mais paixão” [2].

A bênção de um novo amor pode ser forte o suficiente para influenciar a aparência e o comportamento de uma pessoa. Pode dar a ela um semblante sorridente, sonhador, distante ou um brilho no olhar. Pode fazê-la parecer preocupada e desinteressada em atividades normais ou fazê-la saltitar, pelo menos quando seu relacionamento está acontecendo sem sobressaltos.

Além de possuir as características definidoras que todos os amores compartilham, o amor romântico tem suas próprias características únicas. É inicialmente disparado por contato visual. “O amor vai para quem é visto, não há atração para quem não é visto” [3]. Seu primeiro foco é o corpo; para homens o rosto, peito e quadris, e para as mulheres, o rosto, ombros e peito. Certas formas de corpos evocam mais desejo que outras, dependendo de normas culturais, e algumas dessas podem ser muito peculiares. Na China, até o início do século 20, os homens achavam intensamente eróticos pés femininos anormalmente pequenos. Agora, a maioria das pessoas ficaria revoltada com tais deformidades. Apenas cem anos atrás, no Ocidente, uma pele pálida era considerada bonita. Agora, a moda é estar bronzeado. Na Índia antiga, tanto homens quanto mulheres eram eroticamente despertados pelo que era chamado de tanuromaraji, a linha de cabelo que ia do púbis ao umbigo.

Atualmente, homens e mulheres estão preparados para padecer procedimentos dolorosos para remover tais pelos, pois não se deve vê-los. Na sociedade ocidental contemporânea um perfil arredondado nos braços masculinos será atrativo para uma mulher, embora uma forma similarmente arredondada no abdômen será desagradável. Seios femininos bem redondos são desejáveis para um homem mas, da mesma forma, nádegas largas e rotundas podem ser percebidas como não atrativas. Exatamente o quão particularmente romântico o amor pode ser sobre aspectos físicos é sugerido por essa descrição da beleza feminina extraída das escrituras. Para ser atraente para um homem, a mulher tem que ter “quinze ou dezesseis, nem tão alta e nem tão baixa, nem tão magra e nem tão gorda, nem tão escura e nem tão clara” [4]. A presença ou ausência características e detalhes até pequenas e de toda forma insignificantes  pode fazer a diferença entre a excitação e o desinteresse. Os caminhos do erotismo e do romance nem sempre são fáceis de entender.

Outra característica importante do amor romântico é sua tendência a distorcer a percepção. As escrituras buddhistas referem-se a ser cego (kāmandha), confuso (kāmamatta) ou intoxicado (kāmāsava) pelo amor. Uma pessoa apaixonada percebe tudo sobre seu amado como sendo excepcional. Um jovem pode dizer de sua amada: “Seu cabelo é como seda”, “Seus dentes são como pérolas” ou “Seus olhos brilham como estrelas”. Mas, quando observamos suas várias partes do corpo, elas não parecem ser significativamente diferentes das de qualquer outra pessoa. As pessoas apaixonadas não dizem devido aos delírios do êxtase; elas realmente acreditam no que dizem. O amor faz seus olhos enxergarem as coisas de uma forma diferente — potencialmente não realista, o que pode levar a problemas. Quando a paixão selvagem acaba, como inevitavelmente deve acontecer, e a pessoa amada é vista com um olhar mais crítico, o desapontamento pode surgir. O que antes era um charme ou uma peculiaridade encantadora pode se tornar um incômodo. Quando uma pessoa está enamorada por outra que não a ama com a mesma paixão, ou talvez nem sequer a ame, ela pode estar aberta a ser explorada pelo outro. Essas pessoas podem ser requisitadas e alegremente oferecer presentes caros, dinheiro e favores. A família da pessoa apaixonada e seus amigos podem ver o que está acontecendo, que aquela pessoa cativada pelo amor está sendo explorada, mas a própria pessoa não consegue percebê-lo. O amor romântico pode ser, como se diz, cego.

Sobretudo o amor romântico parece operar independente da vontade. O termo “amor romântico” é bem apropriado e descritivo para ele. Como de fato tropeçando ou sendo empurrado e caindo, você não pode se deter até que atinja o chão. Uma pessoa não escolhe ou decide se apaixonar; um surto de dopamina, oxcitocina e outros hormônios no sistema, decidem por ela. O impulso do amor romântico e deleite sexual, as promessas sussurradas no ouvido podem ser muito difíceis de resistir. Ocasionalmente, um dos monges do Buddha aparentava progredir bem, desenvolvendo calma e desapego, vivenciando a alegria da simplicidade e do silêncio. Então, de repente, “ele ouve que em uma vila ou cidade em particular existem mulheres ou donzelas que vale a pena conhecer, adoráveis, com a esplêndida beleza de um lótus. Quando ele ouve isso, ele extravia seu coração, hesita, não consegue se manter forte, e é incapaz de continuar o treinamento. Assim ele toma conhecimento de suas fraquezas, abandona o treinamento e retorna à vida leiga” [5].

Abandonar a vida de um monge ou monja celibatária por um romance é uma coisa, mas as pessoas às vezes assumem riscos extraordinários ou agem de forma incrivelmente irresponsável porque estão sob os encantos do desejo sexual ou do amor romântico. São as qualidades rebeldes, distorcidas e dispersivas do amor romântico que fizeram o Buddha ser bastante cauteloso em relação a ele, e, claro, ele de forma alguma era o único. Os jainistas, os hindus, os estóicos, os gnósticos e os primeiros cristãos, todos viam os entrelaçamentos românticos como direcionando nossa energia e atenção para longe de aspirações mais espirituais. Jesus não disse nada sobre amor romântico e mesmo muito pouco sobre casamento, quase a única situação em que o romance poderia acontecer numa sociedade onde os casamentos arranjados eram a norma. A sua preocupação era com as condições sob as quais um homem poderia se divorciar de sua esposa e se os casamentos poderiam ou não ocorrer no céu, aparentemente duas das controvérsias teológicas sendo debatidas na época. Ele era celibatário e parece ter pensado que era o estado preferido, embora admitisse que nem todos o conseguiam [6]. São Paulo disse: “Eu desejo que você seja livre de preocupações. Aquele que não é casado está preocupado com as coisas do Senhor, como ele pode agradar ao Senhor; mas aquele que é casado está preocupado com as coisas do mundo, como ele pode agradar à sua esposa” [7]. Exceto pela referência a agradar ao Senhor, o Buddha poderia ter endereçado essas mesmas palavras a seus monges e monjas.

Entretanto, o Buddha tinha uma compreensão profunda o bastante do coração humano para saber que, apesar dos muitos sofrimentos que o amor romântico poderia trazer, era também uma fonte de grande felicidade e uma verdadeira bênção. Ele sempre falava sobre o que ele chamava de “a satisfação e os perigos (assādañ ca ādīnava) no prazer sensual” [8], dos quais romance e sexo eram os mais significativos. E há satisfação no amor romântico – a maravilhosa sensação de ser amado e de ter alguém para amar, a companhia, a diversão, a exaltação do sexo e o prazer de compartilhar coisas. Ele pode também nutrir virtudes tais como lealdade, generosidade, altruísmo e paciência.

O Buddha também era realista o suficiente para entender que, o que quer que ele dissesse, a maioria das pessoas se apaixonaria e provavelmente desejaria se casar. Por isso, ele encorajou seus discípulos laicos a serem responsáveis em seus relacionamentos íntimos. O terceiro dos Cinco Preceitos, as regras de comportamento que todos os buddhistas se comprometem a seguir é o voto: “Eu aceito o preceito de evitar a conduta sexual equivocada”. Embora esse preceito seja primariamente sobre comportamento sexual, ele se mistura ao amor romântico, pois ambos estão intimamente conectados. Comportamento sexual errôneo era, segundo o Buddha, a relação sexual com aqueles sob a guarda de seus pais, isto é, menores de idade; aqueles protegidos pelo Dhamma, ou seja, monásticos ou aqueles que haviam feito voto de celibato; aqueles já casados; aqueles que estão sofrendo punição, isto é, prisioneiros; ou aqueles enfeitados em guirlandas, isto é, já engajados para se casar [9]. Isso não significa que alguém já casado nunca se apaixonaria por tais pessoas, mas seria errado, do ponto de vista buddhista, encorajar e perseguir tais sentimentos.

O amor romântico não deve ser confundido com flerte (nandi ou kāmarāga). Pode haver sexo sem amor assim como pode haver amor sem sexo. Algumas pessoas têm um forte apetite por gratificação sexual e pouco ou nenhum interesse em envolvimento emocional ou compromisso de longo prazo. Eles podem fingir estar emocionalmente ligados a alguém, mas apenas como uma estratégia para conseguir mais sexo. O Buddha chamou esse tipo de coisa de “esporte” (dava), talvez similar ao grego ludus, e é sobre o que estamos falando quando dizemos que uma pessoa em particular “vê o amor como um jogo”.

Notas

  1. dassanasamsaggavisāsaotāra, A.III,67. O que é traduzido aqui como disposição amorosa (otāra) poderia também ser traduzido como “ter uma chance”.
  2. VI,378. Um epigrama latino diz algo semelhante: “Amantium irae amoris integratio est,” “Brigas de amantes renovam o amor”.
  3. RāmāyaṇaV,26;39.
  4. I,88.
  5. III,90.
  6. Mateus 19, 8-12; 22,30; Marcos 12, 25.
  7. 1 Corinthians 7,1-35.
  8. I,85.
  9. V,264. 

    Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
    em acordo com o autor
    Para Distribuição Gratuita
    © 2015-2019 Edições Nalanda

    Nota: Este artigo é parte da série Reflexões Buddhistas Sobre o Amor que está sendo traduzida e cujas partes serão publicadas aqui no site.


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