Lidando com a depressão do jeito buddhista

Eu gostaria de falar sobre um problema que tem se tornado cada vez mais comum em sociedades modernas, como a de Cingapura e de outros países modernos: a depressão. Quando você olha as sociedades tradicionais você percebe que parece que nem têm uma palavra para esse problema. Isso não é porque as pessoas nessas sociedades não ficaram para baixo algumas vezes nem porque a depressão era desconhecida; ela era. Mas certamente parece que não era tão comum como se tornou na maioria das sociedades industriais modernas e prósperas. Na verdade, a depressão tem se tornado tão comum que empresas que produzem antidepressivos, como fluoxetina, diazepam, prozac e similares, lucram muito. Para um bom retorno de seu investimento, coloque seu dinheiro numa empresa que vende antidepressivos. Porque tantas pessoas têm ficado tão deprimidas, a vida para elas aparentemente perdendo o sentido, a única maneira de conseguir sair disso é com a ajuda de antidepressivos.

Como dissemos, a depressão não se restringe às sociedades modernas nem é um problema novo. Ela chega a ser descrita nas escrituras buddhistas em termos com os quais já estamos familiarizados. Nossa língua tem várias palavras para descrever os diferentes tipos e intensidades de depressão, como melancolia, desânimo, abatimento, prostração, entre outras. Winston Churchill sofria de graves crises de depressão e referia-se a ela como um “cão negro”. No buddhismo, a principal palavra para referir-se à depressão é visāda. A palavra soka é utilizada com mais frequência para referir-se ao luto, o tipo de depressão em geral associado à morte de um ente querido. No entanto, o Buddha também usava a palavra soka para referir-se a uma série de sentimentos negativos que acompanham a perda, o fracasso, a autodepreciação e o medo da morte. Ele descreve os sintomas associados à ruminação provocada pela culpa como se segue: “Quando um tolo está parado em sua cadeira, em sua cama ou no chão, as más ações corporais, verbais ou mentais que ele realizou no passado o envolvem e o cobrem. Assim como a sombra de uma montanha alta no fim da tarde envolve e cobre a terra como um véu, as más ações corporais, verbais ou mentais que o tolo realizou no passado também o envolvem e o cobrem. O tolo pensa: ‘Eu não fiz bem, eu fiz o mal’ e se entristece, se abate, se lamenta, chora, range os dentes e se atormenta”. Alguns dos outros sintomas associados à depressão, descritos pelo Buddha e imediatamente reconhecidos por qualquer psicólogo moderno, incluem perda de interesse no trabalho e perda de apetite, ombros caídos, expressão sombria, ruminação e retraimento na comunicação.

Pode-se dizer que há três tipos de depressão. O primeiro deve-se a algum desequilíbrio químico no cérebro. Este tipo de depressão geralmente responde à terapia medicamentosa e por isso não falaremos dele aqui. Deixando este de lado, existem dois outros tipos. A que se pode chamar de depressão ocasional, e há o que se pode chamar de depressão existencial. Vamos dar uma olhada no primeiro tipo por enquanto, pois é bastante comum. Todos nos sentimos tristes, todos sofremos, todos nos sentimos deprimidos, sombrios, mal-humorados ou deprimidos de tempos em tempos. Em tal estado mental podemos sentir monotonia, perda de interesse, podemos sentir vontade de chorar, e isso pode continuar por algum tempo. Mas geralmente em poucos dias, ou em uma semana ou duas, costumamos superar isso. Essa depressão ocasional pode ser causada por uma variedade de coisas, algumas das mais comuns são morte inesperada de um ser querido, ou um grande revés em nossas vidas. Você pode dizer que a depressão ocasional tem uma base racional. Por exemplo, se alguém que conhecemos e amamos tenha estado doente por um longo tempo, e nós tenhamos esperado que ela morresse, nós podemos passar por um período de tristeza mas é pouco provável que nos tornemos deprimidos. Ter tido tempo para preparar-se psicologicamente para o falecimento serve de escudo contra a (nos blinda da) depressão. Da mesma maneira, se um ente querido morre na idade da velhice aos 85, 90 ou 95 anos nos sentiremos tristes por um tempo, mas é improvável que fiquemos deprimidos. Saber que eles tiveram uma vida longa, que eles chegaram ao final de seu ciclo de vida natural, nós aceitamos o falecimento como uma parte do curso natural das coisas. No entanto, se um casal acaba de se casar e um deles morre, ou se uma pessoa relativamente jovem morre, ou se alguém morre subitamente e de forma inesperada, não é incomum que seus pais, irmãos e amigos experimentem luto que se estenda até depressão por algum tempo. Mas mesmo assim, eles eventualmente se recuperarão e retornarão ao seu estado normal.

Às vezes nos sentimos deprimidos por causa de falhas na vida: estas nos deixam com uma sensação de inadequação. Esse aspecto da depressão é um problema sério aqui em Cingapura e em sociedades muito competitivas tais como o Japão, nas quais sãos valorizados o sucesso, o primeiro lugar, o topo ou a “liderança do grupo”, como eles dizem. Até mesmo algumas abordagens religiosas contribuem para essa atitude causadora de estresse. Vi recentemente uma placa do lado de fora de uma igreja com a manchete: “Seja um vencedor!” A pressão para “ser um vencedor” é particularmente difícil para os jovens. Eles são obrigados a conviver com níveis tão altos de estresse com os quais até mesmos os adultos têm dificuldade em lidar. Antes da realização de provas e exames, observa-se uma tremenda ansiedade e preocupação; após esses eventos, ocorrem sentimentos de alívio, exaltação ou depressão, a depender dos resultados. Deixar de corresponder às expectativas e demandas alheias e de si próprio pode causar vergonha, inadequação e depressão.

Outra causa da depressão é a sensação de perda, em relação ao sucesso, riqueza, fama ou juventude. Eu sempre encontrei pessoas que me disseram que seus negócios estavam indo bem, que tudo estava maravilhoso e que perderam tudo em 1983/84, quando havia problemas na economia de Cingapura. Elas moravam em um apartamento de um milhão de dólares, agora vivem em um apartamento de US$ 200.000. Elas costumavam ter cinco carros e agora têm um. Elas costumavam enviar seus filhos para Raffles, agora vão para o menos prestigiado Outram Secondary. Como resultado, elas se sentem bastante deprimidas. Ainda há o suficiente para comer, elas ainda têm segurança financeira, mas em termos do que tinham antes de terem essa sensação de perda, “desceram ao mundo”, como diz o ditado. Esse tipo de coisa é comum no mundo do entretenimento. Você costuma ouvir artistas do passado lamentando o fato de que, quando estavam no centro das atenções, os paparazzi os perseguiam, suas ações eram relatadas na imprensa popular, os fãs queriam seu autógrafo, seu próximo filme era uma fonte de interesse, e que agora ninguém os observava. Muitos desses artistas acham muito difícil se adaptar à mudança da celebridade para a obscuridade e costumam tentar lidar com isso com álcool ou outras drogas.

Mas talvez a forma mais comum de depressão ocasional devido à perda de algo esteja relacionada ao envelhecimento. Quando somos jovens temos vigor, saúde e boa aparência. E então, à medida que envelhecemos, um por um, esses presentes se afastam de nós. Muitas pessoas se ajustam a esse processo bastante bem. Elas atendem ao conselho dos Desiderata e “aceitam gentilmente o conselho dos anos, entregando graciosamente as coisas da juventude”. Mas algumas pessoas, particularmente aqueles que tiveram uma juventude cheia de ação; desportistas bem-sucedidos, atores ou atrizes exuberantes, top models e assim por diante, olham para o envelhecimento com presságio e medo. Elas ficam excessivamente ansiosas com sua saúde, sua aparência, como são percebidas pelos outros. Claro que você pode evitar os sinais de envelhecimento por um determinado período de tempo. E agora, com ciência e cirurgia plástica, você pode parecer mais jovem. Você pode colocar estofamento aqui e lá, em todos os lugares, você pode usar uma peruca, tingir seu cabelo, fazer um lifting facial, ter vários facelifts, ter um namorado ou namorada muito mais jovem, você pode ter injeções de botox. Quando todas essas coisas não podem mais disfarçar a verdade, aqueles que fizeram isso caem em depressão. Então, tudo isso seria exemplos de depressão que temos de tempos em tempos; eles estão relacionados a certos eventos ou certas circunstâncias.

Existe algo que possamos fazer para nos ajudar a nos livrar de uma depressão tão ocasional que não seja prolongada a ponto de se tornar um problema? Segundo o Buddha, uma parte natural da realidade é o que ele chamou de Oito Realidades Mundanas (aṭṭhaloka dhamma). Elas são: ganho e perda, obscuridade e fama, culpa e louvor, felicidade e tristeza. Se você observar a vida humana comum, verá que ela é uma interação, uma sequência alternada desses estados. Um deles pode durar mais que o outro, um pode ser mais intenso que o outro, vários podem ocorrer ao mesmo tempo, mas, mais cedo ou mais tarde, eles darão lugar a um dos outros. Nós somos o centro das atenções agora, desvaneceremos até nos tornarmos, mais tarde, insignificantes e, depois, talvez nos tornemos famosos novamente. Nós éramos pobres, então ficamos ricos e agora perdemos tudo. O assim chamado Movimento do Pensamento Positivo, em suas formas seculares ou religiosas, promete que se apenas deixarmos os pensamentos negativos afastados, se nos mantivermos repetindo frases positivas e “estabelecermos metas e formos buscá-las”, então nós iremos preencher todos os nossos sonhos e desejos. Tais ideias reconfortantes porém ilusórias não nos preparam para os inevitáveis altos e baixos da vida – na verdade, elas nos despreparam para enfrentá-los. Manter em mente as oito realidades mundanas nos protege de exagerar quando tivermos ganhos, fama, elogios e felicidade, e nos evita de desânimos e desespero quando tivermos perdas, obscuridade, culpa e tristeza. Estar triste e deprimido e lembrar-se de que é normal sentir-se assim às vezes e de que “isso também vai passar” é estranhamente empoderador. Isso nos dá força para resistir e paciência para continuar. O conselho do Buddha para dar atenção ocasional às oito realidades mundanas é um dos seus presentes mais práticos para a humanidade.

No entanto, existe outro tipo de depressão que está se tornando cada vez mais comum e que podemos chamar de depressão existencial. Isto é quando as pessoas sofrem de depressão por longos períodos, e na medida em que ela começa a funcionar normalmente dentro da sociedade. Elas se tornam melancólicas, sombrias, pessimistas, retraídas, elas sofrem do que é chamado de depressão crônica. Agora há certas razões para isso também. Muito têm sido escrito sobre isso, os médicos são frequentemente confrontados com isso, assim como os psiquiatras. Tem havido muita discussão sobre o porquê disso ocorrer em sociedades relativamente prósperas, seguras e onde há muitas oportunidades, por que há tantas pessoas sofrendo de depressão crônica.

Bem, a primeira causa disso, e que nem sempre é considerada, é que a depressão pode ser o resultado de um entendimento profundo. Se é verdade, como o Buddha diz, que “existência é sofrimento”, e se chegarmos a perceber isso de maneira profunda e verdadeira, isso pode nos fazer sentir realmente deprimidos, pelo menos por algum tempo. Se é verdade que a perda segue o ganho, que a tristeza segue a felicidade, e que realmente a vida termina na morte, então talvez seja compreensível que as pessoas se tornem deprimidas. Quando elas dão uma boa olhada para a realidade, é compreensível que algumas pessoas se sintam tristes. E, é claro, não é só o buddhismo que diz que a vida é sofrimento. Talvez o mais profundo dos livros da Bíblia, certamente o mais filosófico, é Eclesiastes, o qual se inicia com essas palavras: “Vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. O que o homem ganha por todo o  trabalho em que ele labuta sob o sol? Geração vai, e geração vem, mas a terra permanece para sempre. O sol nasce e então se põe, e volta ao lugar onde ele surgiu. Todas as correntes correm para o mar, mas o mar não está completo. Todas as coisas estão saturadas; um homem não as pode exprimir; os olhos não satisfeitos com o que enxergam, nem os ouvidos com o que ouvem. O que foi é o que será, e o que tem sido feito é o que se tornará a fazer, e não há nada de novo debaixo do sol”.

Comentários sobre essas poderosas palavras frequentemente dizem que elas foram compostas por um homem velho e cansado. Mas porque seria assim? Talvez tenham sido escritas por um homem jovem reflexivo e observador. Bertrand Russel, certamente não pessimista, disse que “a palavra é horrível, horrível, horrível!” Um dos filósofos mais populares e influentes deste século, Jean-Paul Sartre, disse que “a vida nada mais é que uma paixão inútil”. Até o existencialista cristão e filósofo Soren Kierkegaard, chegou a conclusão que a vida é absolutamente sem sentido. Pessoas têm frequentemente sugerido que esses filósofos são pessimistas. Mas, se olharmos para a maioria destes filósofos, nós descobriremos que eles não foram particularmente pessimistas em como viveram suas vidas. Quando você lê seus escritos você pode ter essa impressão. Mas alguém como Jean-Paul Sartre levou uma vida bastante plena, bastante produtiva, e aparentemente relativamente feliz; certamente não menos feliz do que a maioria das pessoas. E pode-se dizer que Bertrand Russell realmente “viveu a vida ao máximo” em todos os sentidos deste termo, e ele tinha um maravilhoso senso de humor. Simplesmente enxergar a realidade com precisão e ver que, em alguns sentidos, ela é vazia e desprovida de significado, não leva necessariamente à depressão. As pessoas sábias veem a vida como desprovida de significado e decidem dar significado a ela, para preencher o vazio com algo que valha a pena. Eu diria que o Buddha era uma dessas pessoas. Mas algumas pessoas não têm os recursos para fazer isso e essa verdade deixa-as deprimidas. E provavelmente a razão para isso é que elas passaram a entender que a vida não atendeu às suas expectativas. Elas queriam que a vida fosse de uma maneira particular. Aconteceu de não ser assim; elas queriam que a vida fosse plena e gratificante, queriam que as coisas caminhassem do jeito que queriam, queriam viver para sempre, queriam ser continuamente felizes. Elas descobrem que a vida não é assim, que não funciona assim, e mergulham na depressão. Elas decidem dar as costas a um mundo que as decepcionou e tornam-se profundamente deprimidas.

Mas existem outras abordagens para se ter um entendimento mais profundo da natureza da realidade. Algumas pessoas vêem que a vida pode não ter sentido, que, por mais doce que seja o fruto que você recebe, tudo acaba na morte. Então, ao invés de ficarem deprimidos, eles decidem: “Ok! Eu tenho mais alguns anos pela frente, mais algumas décadas e, por Deus, vou gozar isso”. Eles se tornam hedonistas, decidem colocar tanto prazer no tempo que lhes resta. Esta atitude está bem resumida naquele velho ditado: “Coma, beba e fique alegre, porque amanhã morremos”. Por um tempo, essa abordagem da vida pode funcionar, você pode afastar a realidade, pode mantê-la afastada, mas, é claro, um dos resultados finais do hedonismo é uma versão ligeiramente diferente da depressão; ficando entediado e cansado. E provavelmente um dos mais insuportáveis de todos os sofrimentos é o tédio. É como participar de uma longa e desinteressante palestra proferida por um apresentador particularmente pouco inspirador. Você quer que ele termine, mas ele se arrasta sem parar. Algumas pessoas veem a vida assim, e certamente o hedonismo geralmente termina em tédio. A razão para isso é a própria natureza dos órgãos dos sentidos. Os órgãos dos sentidos possuem nervos e quando esses nervos são estimulados de uma forma particular, experimentamos prazer. Mas assim como ficamos com calos nos dedos ou nas mãos quando os usamos com frequência, obtemos o que poderíamos chamar de calos psicológicos quando os órgãos dos sentidos são continuamente estimulados. Se sentimos muito prazer, gostamos; mas depois de um tempo, para obter o mesmo nível de satisfação, precisamos estimular os sentidos em um nível mais alto. Por um tempo, isso proporciona realização e satisfação, e então os sentidos começam a ficar entediados novamente. E então precisamos de mais estímulo; e é claro isso chega ao estágio em que você não consegue ir além de um certo ponto. E então você sente tédio, ou pior, perversão.

Há outra reação às realidades da vida. Algumas pessoas reagem aos aspectos indesejáveis da existência, refugiando-se na ilusão. Elas não conseguem encontrar nenhum sentido na vida, falta-lhes criatividade para atribuir à vida algum sentido valoroso e realizável, por isso procuram ideologias, filosofias ou religiões que afirmam oferecer sentido, ou pelo menos promessas reconfortantes. Você pode, se se esforçar o suficiente, convencer-se de que viverá para sempre em algum paraíso além das nuvens. E quando você chegar lá, encontrará todos os seus amigos novamente, e será maravilhoso. Todos viverão juntos para sempre. Ou você pode se convencer de que existe um plano, que tudo tem significado, que tudo o que acontece aconteceu para nos ensinar algo, nos mostrar algo, para fazer justiça. E, é claro, é possível que algumas pessoas continuem com essas crenças por um longo tempo, outras para sempre. Mas muitas pessoas não podem.

Mais cedo ou mais tarde, a velha realidade surge e a ilusão delas é destruída. E então elas caem em desespero, têm o que é chamado de crise espiritual. Isso não é uma solução para o problema. Portanto, se é verdade que a realidade não tem significado e que a existência é sofrimento, e se tornar deprimido ou hedonista ou recuar em ilusões não são respostas atraentes para essas realidades, o que mais podemos fazer?

Qual é a solução buddhista para o problema da natureza da realidade e o problema da depressão existencial? Bem, a primeira coisa sobre o buddhismo é que ele não oferece uma solução fácil, não nos engana com promessas baratas e superficiais. O primeiro princípio do buddhismo é: “Entenda direito desde o começo! A vida é sofrimento”. Algumas pessoas se afastam disso;  elas diriam: “Oh!  Quão deprimente” ou “Quão pessimista”. Mas, mais cedo ou mais tarde, uma pessoa ponderada e inteligente perceberá que é verdade. Nos casos de algumas pessoas;  nos casos de pessoas afortunadas, elas veem isso quando são jovens. Isso lhes dá tempo de sobra para se ajustarem à realidade. Muitas pessoas não a veem até ficarem muito mais maduras, até terem mais experiência de vida. Elas acham que a vida é maravilhosa, a vida é maravilhosa, vou viver para sempre, serei jovem e saudável e todas as coisas serão brilhantes e bonitas. Mas então elas começam a envelhecer;  seus dentes caem e seus amigos morrem, e elas  lêem no jornal sobre as coisas horríveis que os seres humanos fazem um ao outro. Gradualmente, elas começam a ficar deprimidas, desiludidas, cansadas ​​do mundo, e só então se voltam para o Dhamma. Mas o mais maravilhoso do Dhamma é que ele não tenta fingir; ele o confronta com o grande problema, o problema essencial da existência, desde o início. Agora, alguém pode acreditar ou não acreditar nisso. Mas se você tomar isso como certo, isso começa a fazer muito sentido, você vê as evidências disso em todos os lugares. Na Europa, quando o buddhismo começou a se popularizar, no começo do século passado, um dos filósofos mais populares da época era o alemão Schopenhauer. E ele foi muito influenciado pelo buddhismo. Era um homem profundamente pessimista e construiu um maravilhoso sistema filosófico baseado em suas próprias ideias e nas buddhistas e hindus, e essas suas ideias tiveram uma profunda influência no romantismo alemão e nos jovens alemães da época. É por isso que alguns dos primeiros monges buddhistas ocidentais eram alemães; eles partiam de uma formação intelectual bastante pessimista e, por muitas décadas, foram as pessoas que se afastavam da vida, decepcionadas e pessimistas, que se interessaram pelo buddhismo. Porque pensavam que o buddhismo estava reafirmando o que elas já acreditavam; que a resposta mais apropriada à vida fosse a tristeza, a melancolia, um suspiro de resignação. É claro que, agora que o buddhismo é mais conhecido no Ocidente, consideravelmente mais conhecido, percebemos que não é tudo o que existe na perspectiva buddhista geral. Enquanto o buddhismo diz que a vida é sofrimento, ele nega que a resposta mais apropriada para isso seja depressão e melancolia. No Samyutta Nikāya, o Buddha fala sobre os passos que nos conduzem naturalmente, um após o outro, como resultado de vermos a verdadeira natureza da existência. É um discurso pouco debatido, mas quando falamos de depressão existencial, ele é muito significativo. Nesse discurso, o Buddha descreve uma cadeia causal que leva à libertação espiritual. O primeiro elo é o sofrimento (dukkha), o segundo é a fé (saddha), depois vem a tranquilidade (passaddhi), depois a alegria (pīti), a felicidade (sukha), a concentração (samādhi), o conhecimento e a visão (yathā bhūta ñānadassana), nibbidā, o desvanecimento das paixões (virāga), e o décimo e último elo é a liberdade (vimutti). E o Buddha diz que a atitude e a resposta corretas, em cada um dos estágios, levarão natural e suavemente ao próximo. Agora, se olharmos para várias dessas etapas ou elos, veremos que a compreensão de dukkha não precisa levar necessariamente à depressão. Na verdade, pode trazer muita paz e felicidade, até alegria.

A primeira é o sofrimento. Nós sofremos. Mesmo que o corpo esteja em boa saúde física poderemos estar a sofrer psicologicamente. A própria natureza da existência é a do sofrimento, da inadequação, da insatisfação, da aspereza, do conflito. Nós respondemos em diferentes maneiras; algumas pessoas tentam negar esses estados, outras tentam amontoar tanto prazer quanto conseguem para se distraírem desses estados. Não há, porém, escape, nós teremos que, eventualmente num dia, enfrentar o sofrimento. Quando deparamos com o sofrimento, e o vemos tal como é, sem o tentar explicar com mitos e histórias, então descobrimos que há uma filosofia que começa neste mesmo ponto. Começamos no ponto onde estamos, na Primeira Nobre Verdade – sofrimento.  A Terceira Nobre Verdade é que o sofrimento pode ser superado. E se tivermos contato com o Dhamma então este diz-nos o que fazer. Podemos ter fé que há um caminho que transcende o sofrimento. Assim, desenvolvemos fé no Buddha, no Dhamma e na Sangha. Começamos a praticar o Dhamma, com vários graus de entendimento e vários graus de compromisso. Mas se você percorre o caminho com confiança e diligência isso conduzirá à tranquilidade. Nós começamos a ficar calmos, mais relaxados, mais harmonizados com o sofrimento ao invés de nos enfurecermos com ele ou nos deprimirmos por causa dele. Dessa forma, a confiança leva à tranquilidade. Quando a mente está tranquila nos tornamos contentes. Isso não é o exuberante “pular de alegria”, o grandioso “Yippee!”. É um considerável, mas discreto prazer, tanto intelectual bem como corporal. Isso conduz naturalmente à felicidade, uma sensação profunda, sutil, de bem-estar, satisfação e contentamento. O Buddha diz que quando estamos felizes, quando estamos tranquilos e contentes, isso possibilita meditar, isso possibilita concentrar, isso favorece começar a ajustar e transformar a mente. Assim, a felicidade  conduz à concentração. E quando a mente está bem concentrada é mais fácil olhar para dentro de si mesmo. Quando começamos a olhar para nós mesmos, nós desenvolvemos um estado ao qual o Buddha denomina de conhecimento e visão das coisas como elas realmente são. Agora normalmente quando temos um vislumbre de como as coisas realmente são, através dos filtros de nossas esperanças, desejos e expectativas, nós facilmente entramos em desespero ou nos cobrimos de desilusão. Por exemplo, se você tivesse vivido durante a Primeira Guerra Mundial, e tivessem lhe dito que era “a guerra para acabar como todas as guerras”, e 21 anos mais tarde outra guerra começasse, você poderia ficar deprimido ou melancólico, e perder a fé na humanidade. Mas, quando você tem uma clara, precisa e completa compreensão de porque as coisas são assim, porque tais coisas acontecem, uma qualidade que Buddha chamava de nibbidā emergia. Agora este termo é usualmente traduzido como repugnância ou nojo, palavras que sugerem fortes sentimentos negativos. Nojo é o que você sente quando chega debaixo da cama do hospital, retira a comadre, abre a tampa e “Eca!”. Nojo é o que lhe aflige quando vê um animal morto coberto de larvas. Repugnância e nojo são palavras muito fortes que não captam o significado de nibbidā. Talvez o desencanto seja melhor. Ficamos desencantados e, em circunstâncias normais, estamos de fato muito encantados. Nossas pressuposições, sonhos e esperanças, esperanças irreais, nos encantaram, nos hipnotizaram. Uma visão clara das coisas nos desencanta. A “mágica” vai embora. Curiosamente, em um dos discursos do Buddha, ele descreveu esse processo como se fosse um homem que assiste um mágico se apresentar. O mágico tira coelhos das cartolas, faz as coisas aparecer ou desaparecer, e faz todo o tipo de coisas notáveis. E o homem junto com o resto da plateia fica entretido, impressionado, encantado. “Como ele fez isso?”, diz maravilhado. E então ele tem a oportunidade de se esgueirar nos bastidores, onde vê todo o aparato do mágico; as cordas, os alçapões, os espelhos, os assistentes cuidadosamente escondidos, e o seu sentido de admiração, o seu encantamento, desaparece. Ele não se sente desapontado, não se sente zangado, e certamente não está enojado. Mas o encantamento se foi. Então, talvez a melhor tradução de nibbidā seja desencanto. Quando você vê as coisas como elas realmente são, você fica desencantado.

No entanto, a raiz da palavra nibbidā é vid, que significa conhecer, dando-nos palavras como vijja (conhecimento), vidura (sábio), viddasu (inteligente, habilidoso) e também vidushaka. Agora, no drama sânscrito, o vidushaka é o bobo da corte. Como na tradição ocidental, o bobo da corte na Índia provocava risos, mas muitas vezes fazia isso apontando verdades desconfortáveis, coisas que as pessoas geralmente tentavam evitar pensar ou olhar sobre elas. Somente o bobo da corte poderia fazer graça sobre o rei e sobreviver. E quando ele confrontava as pessoas com tais coisas, elas riam, talvez desconfortavelmente ou envergonhadas, talvez de forma ruidosa. Aristóteles colocou bem quando ele disse: “O mundo é uma tragédia para aqueles que sentem e uma comédia para aqueles que pensam”. Portanto, pode haver esse significado subjacente em nibbidā — quando a realidade é vista como ela realmente é, alguns ficarão desencantados, outros rirão. Quando vemos que fomos enganados o tempo todo nós rimos porque a piada é de nós  mesmo. Uma coisa semelhante acontece quando você provoca uma criança dizendo a ele ou ela que você tem um doce em seu punho fechado. Ela agarra, mas cada vez que o faz, você tira o punho. Eventualmente, você deixa a criança pegar e abrir seu punho. Quando ela descobre que não há doce, nem nada, bem, uma criança pode se sentir decepcionada, outra pode rir; ele ou ela vê que a piada é recai nela mesma.

O Buddha continua, dizendo que nibbidā leva ao desvanecimento das paixões, virāga. Rāga, na verdade, significa cor. Virāga é o que acontece quando algo colorido é deixado ao sol — a cor começa a desaparecer. Assim, as paixões não se vão apenas, elas gradualmente se tornam menos intensas e atraentes. A luxúria e o ódio, a ambição feroz e a ganância diminuem gradualmente. As coisas não lhe incomodam tanto, você não fica tão animado com as coisas como antes. Com o tempo, vocês se tornam serenos, em paz e reconciliados com a vida. De acordo com o Buddha, isso leva ao Nirvana. A pessoa começa a experimentar a mais alta das qualidades buddhistas, a equanimidade, em face das Oito Realidades do Mundo; Ganho e Perda, Obscuridade e Fama, Culpa e Louvor, Felicidade e Tristeza. Em vez de sermos exaltados em um minuto e desanimados no outro, temos equanimidade, estamos centrados e com um senso de equilíbrio. Se estamos sofrendo de uma longa depressão, a melhor cura para isso é a aceitação da realidade. Agora, a maioria das pessoas só irá aceitar a morte depois que alguém próximo a elas morrer e passar por um período de depressão. A maioria das pessoas só irá aceitar uma ou outra das vicissitudes da vida depois de ter sido ferida por elas e ter passado por um período de depressão. Mas se praticarmos o Dharma genuinamente, entenderemos que o Dharma não é como muitas religiões de conversão que tentam nos convencer de que tudo é magnífico, que tudo é maravilhoso, que tudo vai correr bem, desde que acreditemos.

Existem duas respostas para a realidade, uma é aquela na qual podemos fingir que é diferente do que é, uma simulação que podemos ser capazes de representar por um longo tempo. A outra é nos reconciliarmos gradualmente com a realidade, para entendê-la, aceitá-la, e esse é o caminho para a paz. Esse é o caminho que geralmente leva à libertação em relação à depressão. Esse é o caminho que acaba levando a akuppa cetovimutti, a total liberdade de espírito. E esse é o objetivo, esse é o alvo, que é o culminar da vida buddhista.

Na memória amorosa de Ratnajeewa Ganegoda, 1948-2017

Sukhā matteyyatā loke atho petteyyatā sukhā.

O amor pela mãe e pelo pai é a verdadeira felicidade no mundo.

Dhammapada 332


Palestra que aconteceu em Cingapura em 22 de junho de 1986
Transcrita por Amila Nipun Ganegoda
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o autor
Para Distribuição Gratuita
© 2020 Edições Nalanda tradução

© 2020 Bhante Dhammika


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