Por Ajahn Santikaro (Kevala Retreat), tradutor/editor de Heartwood of the Bodhi Tree, Mindfulness with Breathing, and Under the Bodhi Tree por Buddhadāsa Bhikkhu, 11 de julho de 2017.

CONTEXTO

O termo “Socialismo Dhâmmico” foi criado por Ajahn Buddhadāsa no final da década de 1960, em resposta à crescente polarização política do Sudeste Asiático. Durante essa década, a Tailândia passava por uma ‘bagunça’ geopolítica gerada após a Guerra do Vietnã. Com o decorrer dos anos 60, a crescente violência entre a insurgência comunista e os militares da direita, apoiados pelos EUA, resultou em milhares de assassinatos. Durante esse tempo, os monges buddhistas eram ameaçados constantemente para que não emitissem comentários sobre política, um silenciamento causado por décadas de crenças culturais que persuadiram os monges a acreditar que a política e outros “assuntos mundanos” não eram de suas alçadas.

Esse foi o clima em que Ajahn Buddhadāsa começou a falar sobre o Socialismo Dhâmmico. Desde os anos 40, quando conquistou reconhecimento nacional, ele foi um monge que não temia discutir sobre política. Desde essa época ele apoiou a ideia de democracia, que esse não era o sistema do governo tailandês. A partir da década de 60 ele começou a afirmar, forte e claramente, que o buddhismo possui, basicamente, uma natureza socialista. Ele foi a primeira personalidade com influência na Tailândia a fazer isso (alguns líderes birmaneses já haviam usado o termo “Socialismo Buddhista”) e o primeiro a abordar o tema com o sentido particular que ele mesmo lhe deu – algo que continuou a fazer pelo resto de sua vida.

Sua compreensão de “Socialismo” não era marxista. A tradução tailandesa significa literalmente “a favor da sociedade” ou “estar do lado da sociedade”. Neste sentido, ser socialista significa adotar o lado da sociedade e pode ser contrastado com o individualismo. Embora a responsabilidade individual seja importante na ética budista, “o indivíduo” não pode ser encontrado no fim das contas e o buddhismo nunca se propôs a ser individualista, mesmo que pareça assim na era moderna. Na verdade, o Dhamma enfatiza, naturalmente, o bem coletivo – não à custa do indivíduo – ele não ia tão longe – mas o bem-estar social não pode ser sacrificado aos desejos pessoais.

Esta noção de socialismo surgiu do importante fator de que o Dhamma é a natureza e a natureza é o Dhamma – inseparáveis. Como tudo é Dhamma, não há nada que não seja o Dhamma. O Dhamma também significa “lei natural”, que é a lei de condicionalidade e inter-relação. Se você olha para o nosso mundo e para o nosso lugar no mundo, com seus próprios olhos, é fácil ver uma natureza socialista, ao invés de uma individualista. Em um mundo interconectado, a responsabilidade individual é mais importante do que os direitos individualistas e é tão importante para o coletivo quanto para o indivíduo.

Os formatos mais comuns de socialismo daquela época, e provavelmente ainda hoje, eram visões materialistas de socialismo. O buddhismo, no entanto, não é materialista, assim como também não é um tipo de idealismo que vê o mundo apenas como uma ilusão sem importância. Para ele, a realidade é a interdependência entre corpo e mente, entre grupo e indivíduo, e assim por diante. Portanto, Ajahn Buddhadāsa insistiu que um socialismo buddhista nunca poderia ser materialista.

Além disso, as principais formas históricas de socialismo foram violentas e, obviamente, um socialismo buddhista não seria violento. Ajahn Buddhadāsa criticou o comunismo e o marxismo, com suas terminologias de guerra de classes, principalmente motivadas pela vingança. Ele contrastou o “capitalismo sedento de sangue” com o “marxismo vingativo” e tentou criar uma compreensão alternativa e intermediária. Assim, ele descreveu um socialismo que é principalmente um sistema moral baseado na espiritualidade. Esse tipo de socialismo só poderá funcionar se refrearmos o egoísmo; não funcionará com os incentivos convencionais – como a ganância e o medo – empregados por sistemas não-dhâmmicos.

 

PONDO EM PRÁTICA

Ajahn Buddhadāsa fundou Suan Mokkh em 1932, o qual, sob sua influência, tornou-se um mosteiro com uma característica bem diferente da maioria, ou talvez de todos os mosteiros tailandeses. É lá que podemos ver claramente como ele próprio colocou em prática os princípios do Socialismo Dhâmmico.

Como a natureza e as suas leis são inerentes à compreensão do Dhamma e do Socialismo Dhâmmico, Suan Mokkh enfatiza a importância da interação íntima com a natureza. Buddhadāsa acreditava que, para poder entender a “natureza socialista da natureza”, era preciso viver perto da mesma. Sem essa intimidade, conseguimos apenas noções abstratas sobre o Dhamma e sobre as teorias políticas. Deste modo, ele morava imerso em um ambiente natural e desenvolveu um lugar para os outros fazerem o mesmo.

Da mesma forma, ele deu o seu máximo para orientar Suan Mokkh como se fosse uma empresa cooperativa. Uma versão capitalista das cooperativas foi promovida na Tailândia por especialistas alemães enquanto os marxistas apresentavam as suas versões. Ajahn Buddhadāsa tinha uma ideia própria sobre as cooperativas. Ele apontou que a natureza funciona de uma maneira cooperativa: na floresta, plantas, animais, insetos e germes estão fazendo suas partes cooperativamente para sustentar a floresta. Aqueles que vivem observando a natureza de perto entendem isso. Ele acreditava que os seres humanos também poderiam aprender a viver de forma cooperativa com as florestas, campos e outros ambientes naturais.

Ao administrar Suan Mokkh, o estilo de Ajahn Buddhadāsa não era o de “administrar pessoas”. De alguns modos, ele dirigiu Suan Mokkh como se ele estivesse realmente no comando, tomando decisões importantes que ele considerava como sendo de sua responsabilidade. Embora fosse um líder forte a esse respeito, ele não comandava as pessoas. Ele não dizia a elas o que fazer. Ele aconselhava cada um a “encontrar a sua própria função”. Se alguém tivesse dificuldade em fazer isso e queria sua ajuda, ele discutia as circunstâncias com essa pessoa, mas não gostava de atribuir funções. As pessoas escolhiam o trabalho que queriam fazer e ele as aconselhava sobre como fazer isso como uma prática de Dhamma. Para que tal lugar funcionasse harmoniosamente, todos deveriam estar motivados a cooperar.

A maioria das atividades em Suan Mokkh era opcional. Não havia muitas regras e Ajahn Buddhadāsa não monitorava o quanto as pessoas meditavam, o que elas liam ou se vinham para os cânticos. Em contrapartida, ele também poderia ser rígido, o que estava de acordo com sua visão da natureza. A natureza pode ser rígida às vezes – a falta de sabedoria e o apego geram sofrimento. Embora, em alguns momentos, tenha sido rígido com algumas pessoas, ele também lhes dava muita liberdade para agir responsavelmente, fazer suas próprias escolhas, cometer seus próprios erros e aprender com a própria vida.

Suan Mokkh sempre teve uma visão ecológica. Ajahn Buddhadāsa foi um dos primeiros na Tailândia a falar sobre a necessidade da conservação das florestas, a apontar que as florestas estavam diminuindo rapidamente e que seria necessário tomar medidas para preservá-las.

Essa ênfase ecológica foi derivada do buddhismo e de sua própria experiência enquanto criança, onde as florestas faziam parte da vida de todos, assim como os campos de arroz e o mar. Suas preocupações com o meio ambiente referiam-se, naturalmente, a uma preferência pela simplicidade. Em Suan Mokkh, a maioria das conversas, cerimônias e outras atividades era feita ao ar livre. Até o final de sua vida, quando outras pessoas começaram a assumir a direção do mosteiro, a construção foi reduzida ao mínimo e a comida era simples. O Socialismo Dhâmmico só pode ser eficaz se as pessoas estiverem dispostas a viver de forma simples. Se a abundância aumenta, certas pessoas terão mais coisas materiais e conquistarão maior poder, tendo assim maiores chances de explorar os outros.

Durante a competição política entre capitalismo e comunismo, Suan Mokkh serviu como um ponto de equilíbrio entre a esquerda e a direita. Mesmo nos governos militares da Tailândia, havia pessoas de alto escalão, principalmente do espectro liberal, que eram estudantes de Ajahn Buddhadāsa. O mais proeminente deles foi Chaophaya Ladplee, Ministro da Justiça por muitos anos que providenciou para que Tan Ajahn ensinasse o Dhamma a uma geração de juízes. Ajahn Buddhadāsa não recusava ninguém, portanto soldados, burocratas e empresários eram todos bem-vindos em seu mosteiro, desde que eles estivessem interessados no Dhamma. Da mesma maneira, marxistas, estudantes radicais, ativistas e aldeões eram igualmente bem-vindos. Os mais moderados e mais abertos, dos dois lados, procuravam-no. Ele era uma das poucas figuras religiosas que a esquerda sentia que podia conversar, pois discutia honestamente com ambos os lados.

Durante os anos 70, vários massacres sangrentos ocorreram estimulados pelo crescente sentimento reacionário anticomunista. A violência teve um grande impacto na mente dos tailandeses, acabando com a esperança de uma sociedade tailandesa feliz, à medida que a opressão militar se tornava cada vez mais brutal. Soldados estupraram estudantes do sexo feminino com baionetas e rifles, especialmente alunas do ensino médio. Estudantes mortos eram pendurados em árvores no meio dos campus estudantis e seus cadáveres eram agredidos e queimados. Toda esta brutalidade criou um enorme trauma naquela geração até os dias atuais trinta anos depois.

Em meio a toda essa brutalidade militar contra a possível ameaça comunista, Ajahn Buddhadāsa decidiu falar sobre o Socialismo Dhâmmico, argumentando que o socialismo não é tão ruim quanto parece e que o buddhismo é mais socialista do que capitalista. Em sua opinião, o capitalismo enfatiza o lucro – um tipo de ganância mais focado no ganho pessoal do que no bem comum. Embora ele tenha falado positivamente sobre a democracia, ele notou que às vezes ela se torna um sistema que incentiva o egoísmo individual. Como observado anteriormente, ele também criticou o aspecto violento e vingativo do marxismo. Devido à sua grande integridade como monge e professor, suas perspectivas não poderiam ser ignoradas.

Aliar o buddhismo com um particular entendimento socialista não-marxista ajudou a criar uma proteção social para as pessoas que defendiam uma mudança progressiva e não-violenta. É impossível saber quantas pessoas possam ter sido salvas por sua criação de um espaço neutro, mas havia pessoas em locais altos da administração, incluindo militares, que foram influenciados por ele num ou noutro grau. Acredito que eventualmente ele teve um papel na mudança de um governo militar no início dos anos 80 para uma abordagem de “corações e mente”.

O espaço que Ajahn Buddhadāsa ajudou a criar permitiu o desenvovimento de inúmeras ONGs durante aquela época. Algumas foram fundadas inicialmente por marxistas, outras foram desenvolvidas por não-marxistas que procuravam um meio termo entre as alternativas violentas. Dentre estes, Sulak Sivaraksa e seus alunos se destacaram. Sulak foi fortemente influenciado por Ajahn Buddhadāsa e continua a trabalhar exaustivamente nas áreas da justiça social tailandesa e do buddhismo engajado.

Ajahn Buddhadāsa apresentou um buddhismo que inspirou aqueles que trabalhavam nas áreas da educação alternativa, do meio ambiente, do desenvolvimento urbano, para citar apenas algumas. Muitos líderes e trabalhadores foram diretamente inspirados ou influenciados por ele – o único grande professor buddhista da época que pensou e falou abertamente sobre questões sociais e políticas. Embora não haja mais perigo em se posicionar com essas questões atualmente na Tailândia, ele foi o pioneiro na época em que muitos foram mortos por se oporem ao governo. Por causa de sua ótima reputação, ele não corria tanto perigo em ser assassinado. Ainda assim, o Patriarca Supremo dos anos 50 desgostava dele intensamente e tentou prendê-lo, criando acusações falsas e acusando-o de comunista. As acusações foram provadas como sendo falsas, mas as ameaças ainda eram claras.

 

O PAPEL DA EDUCAÇÃO

Quando lhe perguntei como o Socialismo Dhâmmico se tornaria uma realidade, ele reconheceu que, como a verdadeira paz mundial, ainda poderá levar muito tempo. No entanto, uma longa viagem sempre começa com um primeiro passo. Ele acreditava que a educação – incluindo o ensino regular do governo, a educação buddhista e sistemas alternativos – teria um papel crucial na promoção do Socialismo Dhâmmico. Como um professor proeminente, com muitos outros professores e educadores dentre seus seguidores, ele começou a fazer o que podia para promover a compreensão correta em relação ao Dhamma. Este foi o trabalho de sua vida. O foco de seus ensinamentos era o fato de que o Dhamma e a sociedade, assim como a espiritualidade e a política, não poderiam ser pensados de forma separada, e o comportamento altruísta era o único caminho para uma vida harmoniosa. Ele sugeriu que o caminho do Buddha, em cooperação com as outras religiões, era a melhor forma de transformar tudo isso em realidade.

 

* Santikaro foi ordenado como monge theravāda em 1985 e, posteriormente, treinou em Suan Mokkh com Buddhadāsa Bhikkhu. Ele se tornou o principal tradutor em inglês de Ajahn Buddhadāsa. Conduziu retiros de meditação em Suan Mokkh por muitos anos antes de retornar aos EUA em 2001. Em 2004, retirou-se da vida monástica formal. Ele é o fundador do Liberation Park/Kevala Retreat, uma expressão norte-americana moderna de prática, estudo e responsabilidade social buddhista. Lá ele continua a ensinar, estudar, praticar e traduzir o trabalho de seu professor, como também ainda se envolve em ativismo social e promove o futuro do Buddha-Dhamma no Ocidente.

 


Publicado originalmente em Turning Wheel: The Journal of Socially Engaged Buddhism em 2006, em homenagem ao centésimo aniversário de Buddhadāsa.

Traduzido em janeiro de 2018 por Caio Rafael Silveira


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