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Ajahn Chah~ Ven. Ajahn Chah ~

[1] Neste Retiro do Período de Chuvas eu não tenho muita força, eu não estou bem, por isso eu subi para esta montanha para apanhar algum ar fresco. As pessoas vêm visitar-me, mas eu não posso recebê-las como eu costumava porque a minha voz está quase acabada, o meu fôlego quase se foi. Podem considerar uma bênção que ainda exista este corpo sentado aqui para que todos vejam agora. Isso é uma bênção por si só. O fôlego terá um fim, a voz ir-se-á. Eles terão um destino de acordo com os seus fatores de apoio, como todas as coisas compostas. O Senhor Buddha chamou-lhe khaya-vayam, o declínio e a dissolução de todos os fenômenos condicionados.

Como eles declinam? Considerem um pedaço de gelo. Originalmente, era simplesmente água… ela congela e então torna-se gelo. Pegue um grande pedaço de gelo, tão grande como este gravador aqui, e o leve para fora no sol. Você pode ver como ele declina, da mesma forma como o corpo. Ele irá gradualmente se desintegrar. Em horas ou minutos tudo o que resta é uma poça de água. Isso é chamado khaya-vayam, o declínio e a dissolução de todas as coisas compostas. Tem sido assim por muito tempo, desde o início dos tempos. Quando nascemos trazemos conosco essa natureza inerente ao mundo, não podemos evitá-lo. Ao nascer, nós trazemos a velhice, doença e morte junto com a gente.

Então, é por isso que o Buddha falou de khaya-vayam, o declínio e a dissolução de todas as coisas compostas. Todos nós sentados aqui nesta sala agora, monges, noviços, laicos e laicas, somos sem exceção “bolotas de deterioração”. Agora, essa bolota é rígida, como uma bolota de gelo. Ela começa como água, torna-se gelo por um tempo e então derrete de novo. Vocês podem ver esse declínio em vocês mesmos? Olhem para esse corpo. Ele está envelhecendo todos os dias… o cabelo está envelhecendo, as unhas estão envelhecendo…. tudo está envelhecendo!

Vocês não eram assim antes, eram? Vocês provavelmente eram muito menores do que isto. Agora vocês cresceram e amadureceram. A partir de agora vocês irão diminuir, seguindo o caminho da natureza. O corpo declina, assim como um pedaço de gelo. Logo, assim como o gelo, estará tudo acabado. Todos os corpos são compostos dos quatro elementos: terra, água, vento e fogo. Um corpo é a confluência de terra, água, vento e fogo que passamos a chamar de uma pessoa. Originalmente é difícil dizer do que vocês poderiam chamá-lo, mas agora nós o chamamos de “pessoa”. Ficamos encantados com ele, dizendo que é um macho, uma fêmea, dando-lhe nomes, Sr., Sra., e assim por diante, para que possamos identificar uns aos outros com mais facilidade. Mas realmente não há ninguém ali.  Há terra, água, vento e fogo. Quando eles se juntam nesta forma conhecida, nós chamamos o resultado de “pessoa”. Agora, não se animem com isso. Se realmente olharem para ele, não haverá ninguém lá.

Aquilo que é sólido no corpo, a carne, pele, ossos, etc., é chamado de elemento terra. Aqueles aspectos do corpo que são líquidos são o elemento água. A faculdade do calor no corpo é o elemento fogo, ao passo que os ventos correndo através do corpo são o elemento ar.

Em Wat Pah Pong nós temos um corpo que não é nem masculino nem feminino. É o esqueleto pendurado na sala principal. Ao olhar para ele, não se tem a impressão de ser um homem ou uma mulher. As pessoas perguntam umas às outras se se trata de um homem ou uma mulher e o máximo que podem fazer é trocar um olhar vazio. É apenas um esqueleto, toda pele e carne se foram.

As pessoas são ignorantes dessas coisas. Algumas vão para o Wat Pah Pong, até o salão principal, ver os esqueletos… e, em seguida, voltam correndo de novo! Eles não conseguem suportar olhar aquilo. Elas estão com medo, com medo dos esqueletos. Eu penso que essas pessoas nunca viram a si mesmo antes. Com medo dos esqueletos… elas não refletem sobre o grande valor de um esqueleto. Para chegar ao mosteiro tiveram que vir de carro ou a pé… se não tivessem ossos como elas seriam? Seriam elas capazes de caminhar por aí, deste jeito?  Mas elas viajam em seus carros para Wat Pah Pong, vão até o salão principal, veem os esqueletos e correm diretamente para fora novamente! Elas nunca viram tal coisa antes. Elas nascem com ele e ainda assim elas nunca o viram. É um privilégio que tenham a chance de vê-lo agora. Mesmo as pessoas mais velhas veem os esqueletos e ficam com medo… Por que todo este alvoroço? Isso mostra que elas não estão de jeito nenhum, em contato com elas mesmos, realmente não conhecem a si mesmas. Talvez possam ir para casa e ainda não conseguirão dormir por três ou quatro dias… apesar de que estão dormindo com um esqueleto! Elas se vestem com ele, se alimentam com ele, fazem tudo com ele… e ainda ficam com medo dele.

Isso mostra como as pessoas estão sem contato consigo próprias. Que lamentável! Estão sempre olhando para o exterior, para as árvores, para as outras pessoas, para objetos externos, dizendo “isto é grande”, “isto é pequeno”, “isto é curto”, “isto é longo”. Estão tão ocupadas a olhar para outras coisas que nunca se veem a si próprias. Para ser honesto, as pessoas são realmente lamentáveis. Não têm refúgio.

Nas cerimônias de ordenação devem-se aprender os cinco temas básicos de meditação: kesā, o cabelo da cabeça; lomā, pelos do corpo; nakhā, unhas; dantā, dentes; taco, pele. Alguns dos estudantes e pessoas educadas riem para si mesmos quando ouvem essa parte da cerimônia de ordenação … “O que está Ajahn tentando ensinar-nos aqui ao ensinar-nos sobre cabelos, sendo que temos tido cabelos desde sempre?” Não é necessário que ele nos ensine sobre isso, já sabemos. Por que se importar em ensinar algo que já sabemos? Pessoas com a visão ofuscada são assim, acham que conseguem ver o cabelo. Eu os ensino que quando digo “ver os cabelos” quero dizer vê-los como realmente são. É o que eu chamo de “ver” – não enxergar de um modo superficial, mas ver de acordo com a verdade. Não estaríamos atolados nas coisas até o pescoço se pudéssemos enxergá-las como realmente são. Cabelo, unhas, dentes, pele… o que são realmente? Bonitos? Limpos? Possuem alguma substância verdadeira? São estáveis? Não… não há nada ali. Não sendo bonitos, os imaginamos como sendo. Não sendo substanciais, os imaginamos também como sendo.

Cabelo, unhas, dentes, pele… As pessoas estão mesmo viciadas nessas coisas. O Buddha estabeleceu essas coisas como os temas básicos para a meditação, ensinou-nos a conhecer essas coisas. Elas são impermanentes, imperfeitas e sem dono; elas não são “minhas” ou “deles”. Nascemos com elas e somos iludidos por essas coisas, mas realmente elas são asquerosas. Suponham que não tomássemos banho durante uma semana, suportaríamos estar perto uns dos outros? Cheiraríamos mesmo mal. Quando as pessoas suam muito, como quando trabalham esforçadamente em conjunto, o cheiro é horrível. Voltamos para casa e esfregamo-nos com água e sabonete, e o odor desaparece, a fragrância do sabonete o substitui. Passar o sabonete pelo corpo pode fazer com que ele pareça perfumado, mas de fato o mau cheiro do corpo ainda está lá, temporariamente suprimido. Quando o cheiro do sabonete desaparecer volta a aparecer o cheiro do corpo.

Tendemos a pensar que estes corpos são bonitos, agradáveis, duradouros e fortes. Tendemos a pensar que nunca envelheceremos, ficaremos doentes ou morreremos. Somos seduzidos e enganados pelo corpo, e assim somos ignorantes do verdadeiro refúgio dentro de nós. O verdadeiro lugar do refúgio é a mente. A mente é o nosso verdadeiro refúgio. Esta sala pode ser bastante grande, mas não pode ser um verdadeiro refúgio. Os pombos abrigam-se aqui, as lagartixas abrigam-se aqui, os lagartos abrigam-se aqui… Podemos pensar que tudo nos pertence, mas não é verdade. Vivemos aqui com todo o resto. Isto é apenas um refúgio temporário, brevemente teremos de partir. As pessoas usam estes abrigos para refúgios.

Então o Buddha disse para encontrar seu refúgio. Isso significa encontrar seu verdadeiro coração. Esse coração é muito importante. As pessoas usualmente não olham para coisas importantes, elas gastam a maior parte de seu tempo olhando para coisas sem importância. Por exemplo, quando limpam a casa, se concentram na limpeza da casa, na lavagem da louça, etc., mas falham em perceber seu próprio coração. O coração dessas pessoas deve estar podre, elas devem estar com raiva, lavando a louça com essa expressão azeda no rosto. Elas não percebem que seu próprio coração não está muito limpo.  É o que eu chamo de “tomando um abrigo temporário no lugar de um refúgio”. Elas embelezam casas e lares, mas não pensam em embelezar seus corações. Elas não examinam o sofrimento. O coração é a coisa mais importante.  O Buddha ensinou encontrar um refúgio dentro do seu próprio coração: Attā hi attano nātho – “faça você mesmo um refúgio dentro de si mesmo”. Quem mais pode ser seu refúgio? O verdadeiro refúgio é o coração, nada mais. Você pode tentar confiar em outras coisas, mas elas não são confiáveis. Você somente pode confiar verdadeiramente em outras coisas se você já tem um refúgio dentro de si mesmo. Você deve ter seu próprio refúgio primeiro antes de poder confiar em qualquer outra coisa, seja ela um professor, família, amigos ou parentes.

Então, todos vocês, laicos e sem-lar que vieram em visita hoje, por favor, considerem este ensinamento. Perguntem a si mesmos: “’Quem sou eu? Por que estou aqui?” Perguntem a si mesmos: “Por que nasci?” Algumas pessoas não sabem. Elas querem ser felizes, mas o sofrimento nunca para. Rico ou pobre, jovem ou velho, elas sofrem o mesmo. É tudo sofrimento. E por quê? Porque não têm sabedoria. Os pobres são infelizes porque não têm o suficiente e os ricos são infelizes porque tem muito o que proteger.

No passado, como jovem noviço, eu ofereci um discurso do Dhamma. Falei sobre a felicidade de riquezas e bens, de ter servos e assim por diante… Uma centena de servos do sexo masculino, uma centena de servos do sexo feminino, uma centena de elefantes, uma centena de vacas, uma centena de búfalos… uma centena de tudo! Os laicos realmente salivaram. Mas você pode se imaginar cuidando de uma centena de búfalos? Ou de uma centena de vacas, de uma centena de servos do sexo masculino e feminino… você consegue imaginar ter que cuidar de tudo isso? Seria divertido? As pessoas não consideram esse lado das coisas. Elas têm o desejo de possuir… de ter as vacas, os búfalos, os servos… centenas deles. Mas eu digo: cinquenta búfalos já seria demais. Apenas trançar cordas para todos aqueles animais já seria demais! Mas as pessoas não consideram isso, elas só pensam no prazer de adquirir. Não consideram a dificuldade envolvida.

Se não temos sabedoria, tudo à nossa volta será uma fonte de sofrimento. Se somos sábios, estas coisas nos levarão para longe do sofrimento. Olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo e mente… Os olhos não são necessariamente coisas boas, vocês sabem. Se estiverem com um humor ruim, apenas ver outras pessoas pode torná-los irados e fazê-los perder o sono. Ou podem se apaixonar. Amor é sofrimento também, se não conseguirem o que desejam. Amor e ódio são ambos sofrimento, por causa do desejo. Querer é sofrimento, querer não ter é sofrimento. Querer adquirir coisas… mesmo que as consigam, ainda há sofrimento pois terão medo de perdê-las. Há somente sofrimento. Como viverão com isso? Poderão ter uma casa grande e luxuosa, mas se seus corações não estão bem, as coisas nunca funcionam do jeito que esperam.

Portanto, todos devem olhar para si mesmos. Por que nascemos? Alguma vez alcançamos realmente alguma coisa nesta vida? Aqui, na área rural, as pessoas começam a plantar arroz, desde a infância. Quando completam dezessete ou dezoito anos, apressam-se para se casar, receosos de que não tenham tempo suficiente para fazer fortuna. Eles começam a trabalhar desde cedo pensando que, dessa maneira, ficarão ricos. Plantam arroz até os setenta ou oitenta ou, mesmo, noventa anos de idade. Eu lhes pergunto: “Vocês trabalham desde o dia em que nasceram. Agora, está quase na hora de partir, o que levarão com vocês? Eles não sabem o que dizer. Tudo que podem dizer é: “Não faço a menor ideia!” Temos um ditado por estas bandas: “Não se demore colhendo frutas ao longo do caminho… antes que você perceba, a noite cairá”. Exatamente por causa deste “Não faço a menor ideia!” eles não estão nem aqui nem lá, satisfeitos apenas com um “Não faço a menor ideia!”… sentados entre os ramos da árvore frutífera, empanturrando-se de frutas… “Não faço a menor ideia, não faço a menor ideia…”

Quando ainda são jovens, vocês pensam que não é tão bom ficar solteiro, pois se sentem um pouco solitários. Assim, procuram um parceiro para lhes fazer companhia. Há atritos quando dois são colocados juntos! Viver sozinho é muito calmo, mas há atritos quando se vive com outros.

Quando os filhos são pequenos os pais pensam: “Quando eles crescerem, vai ser mais fácil”. Criam seus filhos, três, quatro ou cinco deles, pensando que quando os filhos estiverem crescidos, seu fardo será mais leve. Mas quando os filhos crescem, o peso é ainda maior. Como dois pedaços de madeira, um grande e um pequeno. Você joga fora o pequeno fora e fica com o maior, pensando que vai ser mais leve, mas é claro que não é. Quando os filhos são pequenos eles não precisam de muito, apenas uma cumbuca com arroz ou uma banana de vez em quando. Quando eles crescem, querem uma moto ou um carro! Bem, você ama seus filhos, você não pode recusar. Então, você tenta dar-lhes o que eles querem. Problemas…. Às vezes os pais entram em discussões sobre isso… “Não lhe dê um carro, nós não temos dinheiro suficiente!” Mas quando você ama seus filhos você tem que conseguir o dinheiro em algum lugar. Talvez os pais até abram mão de si mesmos, para obter as coisas que seus filhos querem. Então, há os estudos. “Quando eles terminarem os estudos, tudo vai ficar bem”. Não há fim para os estudos! O que é que eles vão terminar? Apenas na ciência do Buddhismo há um ponto de conclusão, todas as outras ciências seguem em círculos. No fim das contas é verdadeira dor de cabeça. Se há uma casa com quatro ou cinco crianças, os pais discutem todos os dias.

Não conseguimos ver o sofrimento que está nos aguardando no futuro, pensamos que ele nunca ocorrerá. Só saberemos quando acontecer. Esse tipo de sofrimento, o sofrimento inerente aos nossos corpos, é difícil de prever. Quando eu era uma criança prestando atenção aos búfalos, eu pegava um carvão e esfregava nos meus dentes para clareá-los. Eu voltava para casa e os via tão brancos e bonitos… Eu estava sendo enganado pelos meus próprios ossos, é só isso. Quando eu fiz cinquenta ou sessenta anos meus dentes começaram a ficar bambos. Quando os dentes começam a cair eles doem muito, quando você come é como se você tivesse sido chutado na boca. Dói muito mesmo. Eu já passei por isso. Então foi ao dentista para extraí-los. Agora eu uso dentadura. Meus dentes naturais estavam me dando tantos problemas que eu tive que extraí-los, dezesseis de uma vez. O dentista estava relutante em tirar dezesseis dentes de uma vez, mas eu disse pra ele: “Simplesmente extraia-os, eu lido com as consequências”. Então ele tirou todos de uma vez. Alguns ainda estavam bons, pelo menos cinco deles. Tirei todos. Mas foi realmente tocar e ir. Após extraí-los eu não consegui comer nada durante dois ou três dias.

Tempos antes, como uma criança cuidando de búfalos, eu costumava pensar que escovar os dentes era uma grande coisa a se fazer. Amava meus dentes, e pensava que eles eram coisas boas. Mas, no final, eles tiveram que ser extraídos. Sofri de dor de dente por meses, até anos. Algumas vezes ambas as gengivas inchavam ao mesmo tempo.

Talvez alguns de vocês venham a ter essa experiência algum dia. Se seus dentes ainda estão bons e vocês os escovam todos os dias para mantê-los saudáveis e branquinhos… tenham cuidado! Eles podem começar a pregar peças em vocês daqui algum tempo.

Agora eu estou apenas deixando você saber sobre essas coisas… o sofrimento que surge de dentro, que surge dentro de nossos próprios corpos. Não há nada dentro do corpo que você pode confiar. Não é tão ruim quando você ainda é jovem, mas na medida em que você fica velho as coisas começam a se decompor. Tudo começa a desmoronar. Condições seguem o seu caminho natural. Se rirmos ou chorarmos sobre elas, elas apenas vão seguir o seu caminho. Não faz diferença o modo como vivemos ou morremos, não faz diferença para elas. E não há conhecimento ou ciência que possa impedir o curso natural das coisas. Você pode ter um dentista para olhar os seus dentes, mas mesmo que ele possa corrigi-los, eles ainda, eventualmente, seguirão o seu caminho natural. Eventualmente, até mesmo o dentista tem o mesmo problema. Tudo desmorona no final.

Essas são coisas que devemos contemplar enquanto ainda temos algum vigor, devemos praticar enquanto somos jovens. Se você quiser adquirir mérito, então, apresse-se e o faça, não deixe apenas para velhice. A maioria das pessoas simplesmente espera até que fiquem velhos para então ir à um mosteiro e tentar praticar o Dhamma. Mulheres e homens dizem a mesma coisa… “Espere até eu ficar velho em primeiro lugar”. Eu não sei porque eles dizem isso, uma pessoa idosa tem muito vigor? Deixe-os tentar competir com um jovem e ver qual é a diferença. Por que eles esperam até ficar velhos? Como se eles nunca fossem morrer. Quando chegam aos cinquenta ou sessenta anos ou mais… “Ei, vovó! Vamos para o mosteiro!” “Vá em frente, meus ouvidos já não são tão bons mais”. Você vê o que eu quero dizer? Quando as orelhas eram boas o que ela estava ouvindo? “Sei lá!”… apenas divertindo-se com os afazeres diários. Finalmente, quando os ouvidos já se foram, ela vai para o templo. Não há esperança. Ela ouve o sermão, mas ela não tem ideia do que eles estão dizendo. As pessoas esperam até que fiquem esgotadas para então pensarem em praticar o Dhamma.

A palestra de hoje deve ser útil para aqueles de vocês que podem compreender isso. Essas são as coisas que vocês deveriam começar a observar, elas são a nossa herança. Elas vão gradualmente ficando mais e mais pesadas, um fardo para cada um de nós suportar. No passado, minhas pernas eram fortes. Eu podia correr. Agora, apenas caminhando em volta elas já sentem o peso. Antes, minhas pernas me carregavam. Agora, eu que tenho que carregá-las. Quando eu era criança, eu via as pessoas mais velhas se levantarem dos seus assentos… “Oh!” Quando se levantam, elas gemem: “Oh!” Sempre há esse “Oh!”. Mas, elas não sabem o que as faz gemerem assim.

Mesmo quando chega a esse ponto, as pessoas não veem a ruína do corpo. Nunca sabemos quando nos separaremos dele. O que está causando toda a dor são apenas condições naturais que chamamos de artrite, de reumatismo, de gota etc. O médico prescreve remédios, mas elas não saram por completo. No fim, o corpo se quebra, mesmo o do médico! Essas são condições avançando em seu curso natural. Esses são o caminho e o futuro delas.

Agora, olhe para isso. Se você vir tudo antecipadamente, será melhor para você. É como ter uma cobra venenosa no caminho a sua frente. Se a vir, você consegue sair do seu caminho sem ser picado. Caso contrário, pode continuar andando, pisar nela e ser picado.

Se o sofrimento surge, as pessoas não sabem o que fazer. Onde irão para tratá-lo? Elas querem evitar o sofrimento, elas querem viver sem o sofrimento, mas não sabem como tratá-lo quando ele surge. E elas vivem sem perceber isso até ficarem velhas… e doentes… e morrerem….

Antigamente, quando alguém morria se dizia no ouvido dele: “Bud-dho, Bud-dho”. O que vão fazer com Buddho? Qual o bem que Buddho vai fazer a elas quando já estiverem quase na pira funerária? Por que não aprenderam Buddho quando eram jovens e saudáveis? Agora, com as respirações ofegantes vocês dizem: “Mãe… Buddho, Buddho!” Por que desperdiçarem seu tempo? Vocês somente a confundirão; deixe-a partir pacificamente.

As pessoas não sabem como resolver problemas dentro dos seus próprios corações, não têm um refúgio. Irritam-se facilmente e têm muitos desejos. Por que isso acontece? Porque não têm refúgio.

Quando as pessoas estão recém-casadas dão-se bem juntas, mas depois dos cinquenta ou assim, não conseguem entender-se um com o outro. O que quer que seja que a esposa diga ao marido torna-se intolerável. O que quer que seja que o marido diga à esposa não é ouvido. Eles voltam as costas um ao outro.

Agora, estou apenas falando porque nunca tive uma família antes. Por não tive uma família? Só de olhar para a palavra [em inglês] “household” [2] [que em português seria “lar”, “estar em casa”] eu sabia do que se tratava. O que é um “household”? É um “hold” [em português, seguro ou preso]. Se alguém pegasse uma corda e nos amarrasse enquanto estamos sentados aqui, o que seria isso? Isso é chamado “ser aprisionado”. Seja lá do que se trata, “ser aprisionado” é assim. Há um círculo de confinamento. O homem e a mulher vivem dentro de seus círculos de confinamento.

Quando li a palavra “household”… ela é pesada. Não é algo superficial, mas bem forte. A palavra “hold” é símbolo de sofrimento. Você não pode ir a qualquer lugar, você tem de ficar dentro de seu círculo de confinamento.

Agora vamos à palavra “estar em casa” (“hosehold”). Isto significa “aquilo que importuna”. Alguma vez vocês já torraram pimentas? A casa inteira tosse e funga. Esta palavra “estar em casa” significa confusão, não vale a pena a confusão. Por causa dessa palavra fui capaz de receber a ordenação e não abandoná-la. “Estar em casa” é assustador. Você está encalhado e não consegue ir para nenhum lugar. Problemas com filhos, com dinheiro e todo o resto. Mas para onde você pode ir? Você é apegado a sua casa. Há filhos e filhas para cuidar, argumentos em quantidade até o dia em que você morre, e não há qualquer lugar para onde ir, não importando quanto sofrimento haja. As lágrimas jorram e continuam jorrando. As lágrimas nunca terminarão com este “estar em casa”, vocês sabem. Se não houvesse nenhuma casa, vocês poderiam ser capazes de parar com as lágrimas, mas não de outra maneira.

Considerando esse assunto. Se você não encontrou isso ainda, você pode encontrar depois. Algumas pessoas já têm experienciado isso em certa medida. Alguns já estão no fim das suas amarras… “Será que ficarei ou irei?” No Wat Pah Pong há cerca de setenta ou oitenta cabanas (kuti). Quando elas estão quase cheias, eu digo ao monge encarregado para manter algumas vazias, apenas para o caso de alguém ter uma discussão com a esposa… “Estou farto do mundo, Luang Por”. “Uau! Não diga isso. Tais palavras são realmente pesadas”. Então o marido chega e diz que ele também está farto. Depois de dois ou três dias no mosteiro esses seus cansaços do mundo desaparecem.

Eles dizem que estão fartos, mas estão apenas se enganando. Quando eles vão para um kuti e se sentam reclusos em silêncio, após algum tempo os pensamentos vêm… “Quando é que a esposa vai chegar e me pedir para ir para casa?” Eles não sabem realmente o que está acontecendo. O que é esse “cansaço do mundo” deles? Eles ficam irritados com alguma coisa e vêm correndo para o mosteiro. Em casa, tudo parecia errado… o marido estava errado, a mulher estava errada… depois de três dias de pensamento tranquilo … “Hmmm, a esposa estava certa, afinal, era eu que estava errado”. “Maridinho estava certo, eu não deveria ter ficado tão chateada”. Eles mudam de lado. É assim que são as coisas, é por isso que eu não tomo o mundo muito a sério. Eu já conheço os seus prós e contras, é por isso que escolhi viver como um monge.

Gostaria de apresentar a palestra de hoje a todos vocês como tema de casa. Se vocês estão no campo ou trabalham na cidade, escutem estas palavras e as considerem… “Por que nasci? O que eu posso levar comigo?” Perguntem-se mais e mais. Se vocês perguntarem a si próprios essas perguntas frequentemente vocês se tornarão sábios. Se vocês não refletirem sobre essas coisas vocês vão permanecer ignorantes. Ouvindo a conversa de hoje, vocês podem chegar a algum entendimento, se não for agora, então talvez quando chegarem em casa. Talvez esta noite. Quando estão ouvindo a conversa tudo é subjugado, mas talvez as coisas estejam esperando por vocês no carro. Quando entrarem no carro elas podem entrar com vocês. Quando vocês chegarem em casa tudo pode se tornar claro … “Ah, isso é o que Luang Por queria dizer. Eu não conseguia ver isso antes”.

Acho que é suficiente por hoje. Se eu falar muito este velho corpo fica cansado.

 

Notas:

[1] Ensinamento dado em Wat Tham Saeng Phet (Mosteiro da cavern da Luz de Diamante) a um grupo de visitants laicos durante o retiro das chuvas de 1981, pouco antes da saúde de Ajahn Chah de deteriorar.

[2] Há aqui um jogo de palavras na língua thailandesa baseado na palavra para ‘família’ – krorp krua – que significa literalmente “espaço de cozinha” ou “círculo de assar”. Na tradução inglesa optamos por uma palavra inglesa correspondente, ao invés de tentar uma tradução literal do thailandês.

 


 

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright

© 2012 Edições Nalanda


Nota: Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.

 


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