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por Ricardo Sasaki ~

As notícias recentes de que há uma onda de suicídios entre monges e monjas tibetanos que, assim, protestam contra a extrema ditadura chinesa em seu país, são em si mesmas preocupantes. É um ato político, sem dúvida, e ocasionado pelo grau de violência demonstrado pelo governo chinês há décadas. Neste sentido, apenas temos que nos solidarizar com este povo que não têm recebido apoio algum das nações do mundo, as quais se curvam ao poderio econômico e político da China.

À parte a questão política, uma pergunta de outra ordem tem também surgido com frequência: “É correto ou permitido aos monges se suicidarem?” Temos visto essa pergunta e mesmo recebido essa indagação que se justifica diante do contraste em relação aos preceitos tão associados ao Buddhismo de não-violência e preservação da vida. Afinal, consta logo do primeiro preceito de treinamento (pañcasīla) a determinação de se abster de tirar qualquer vida, e isso, é claro, inclui a própria. Nossa questão é, então, saber se haveria uma base doutrinal que possa justificar o suicídio no contexto religioso buddhista ou se tais atos devem ser compreendidos exclusivamente como aqueles de representantes religiosos de um povo desesperado diante da violência genocida empreendida pelo governo chinês.

Tal questão possui ainda duas peculiaridades. Primeiro, que a ação de protesto intensa é feita por monges, representantes por excelência da religião adotada pelo povo. Em segundo lugar, essa ação não é a primeira na história buddhista, pois podemos nos lembrar do suicídio no contexto religioso em pelo menos outras duas ocasiões bem conhecidas, qual seja, como forma de protesto também no Vietnam, e o suicídio no Japão, empreendido seja como ato de honra (harakiri) diante de uma situação percebida como vergonhosa, ou como justificativa religiosa para matar e se matar pela pátria nos casos de guerra (como no caso dos kamikazes).

Desta forma, podemos fazer nossa pergunta novamente, é doutrinal ou religiosamente justificável o suicídio em situações extremas? Parte da perplexidade provém da superficialidade doutrinal que anima até mesmo a população de adeptos buddhistas. Conhece-se pouco em nosso meio as bases doutrinais da prática buddhista. Por outro lado, a população em geral está muito pouco consciente das diferenças existentes entre as várias escolas nas quais o Buddhismo se divide. A partir disso, muito frequentemente a visão que se tem do Buddhismo se resume em noções vagas doutrinais, preceitos de compaixão e solidariedade, e técnicas meditativas variadas. Sua profunda riqueza e diversidade de expressão passa completa e lamentavelmente desapercebida.

Um primeiro ponto que chama a atenção é que nestes três países citados predomina uma forma particular de Buddhismo, que tem suas origens por volta do primeiro século d.C., e que recebe o nome genérico de Mahāyāna. Este nome, de abrangência extremamente larga, inclui textos e escolas surgidas em regiões e épocas muito diferentes. No tocante às escolas, elas incluem tanto aquelas autóctones da Índia, quanto aquelas surgidas séculos mais tarde em países como China, Japão, Tibete, Vietnam, Java, etc. No tocante a textos, eles se classificam desde os protomahāyānas, textos seminais que começam a ser escritos por volta do ano 100 a.C., até produções que se estendem, sob diversas inspirações, por vários séculos seguintes e originárias igualmente de diversas regiões da Índia e países vizinhos.

Apesar desta tão grande diversidade e, na verdade, a partir dela, creio ser possível singularizar algumas características dentro do movimento Mahāyāna que podem justificar, e foram de fato utilizadas para tanto no decorrer de sua história, o tirar a vida dentro do contexto religioso desse movimento. Para isso realçarei dois pontos nessa exposição:

1. O surgimento de uma forma extremada de Śūnyavāda após o segundo século d.C.
2. A expansão da doutrina dos bodhisattvas

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1. O surgimento de uma forma extremada de Śūnyavāda

A doutrina de que todas as coisas são impermanentes e desprovidas de uma realidade substancial, em outras palavras, de que as coisas são vazias de substrato permanente, não é algo novo no Buddhismo, estando presente no cânon antigo e, portanto, nas várias escolas buddhistas dos primeiros séculos. A vacuidade ou vazio foi algo ensinado explicitamente pelo Buddha, presente por todo o cânon e, como o resto de seus ensinamentos, amplamente conhecido e divulgado. Isso, porém, não faz com que este ensinamento seja menos difícil de ser digerido. Embora público, a massa da população buddhista, incluindo aí também muitos monges e monjas, geralmente sempre considerou que é mais fácil a compreensão e prática dos preceitos morais, das virtudes sociais e alguns exercícios mais simples de meditação. Doutrinas como da Cooriginação Dependente, do Vazio dos dharmas, dos Três Lakhanas, dos Modos e Planos de Consciência, etc., eram deixados para serem tratados de preferência por aqueles poucos que tinham a inclinação e o tempo para tratarem de temas mais profundos.

O incômodo com certas doutrinas mais abstrusas, o vazio dos dharmas em particular, não deixou de se manifestar de forma concreta no meio buddhista. Após alguns séculos da morte do Buddha, grupos começaram a surgir aqui e ali propondo emendas e interpretações que visavam de variadas formas lidar com o incômodo causado pela doutrina do vazio. Uma das formas foi propor que as várias “coisas” (uma tradução extremamente rude para “dharmas”, mas que no entanto tem uma abrangência conveniente) tinham em si um certo princípio transcendente e universal não explicitado pelo Buddha (uma forma de doutrina docética e transcendentalista); outra forma foi propor uma certa continuidade entre os dharmas do passado, presente e futuro, garantindo, assim, uma não queda num niilismo (uma forma de doutrina pan-realista); ainda outra forma foi propor um tipo de “pessoa” (pudgala) que não seria a mesma que os agregados (khandhas), mas também não seria inteiramente diferente (uma forma de doutrina personalista).

Com o tempo, cada uma dessas formas deu lugar à formação de escolas específicas no meio buddhista. As reações a elas também não tardaram a ocorrer. Uma corrente distincionista enfatizou a discriminação precisa de todos os dharmas e de suas intrincadas e dinâmicas relações, demonstrando assim o vazio na interdependência (posição adotada pela escola Theravāda). Uma outra corrente posterior também reagiu por meio da ênfase na doutrina em si do Vazio, principalmente como uma forma de se contrapor às posições realistas que adquiriam um número crescente de adeptos. Essa corrente veio a ser conhecida como Śūnyavāda.

Como todo remédio que quando usado além de seu propósito (nesse caso, a correção de um desequilíbrio), pode se tornar ele mesmo um elemento de desequilíbrio, o Śūnyavāda original gerou em sua continuidade também uma forma excessiva que começou a beirar o nihilismo. Ao afirmar o Vazio de forma excessiva, esta corrente em particular acabou por negar a validade da realidade convencional, destituir a existência de qualquer significado, e se aproximar perigosamente da antiga doutrina ucchedavāda (niilista) que o Buddha já em sua época criticava como extremamente perigosa. O Śūnyavāda extremista perdeu a lembrança do Śūnyavāda original enquanto expediente medicamentoso, idealizou o Vazio, e deu a este uma “existência independente”. Este tipo extremista de noção do Vazio foi provavelmente aquele criticado pelo mestre Theravāda do século V, Buddhaghosa, sob o nome de ‘mahasuññavadas’; e também pelo mestre Madhyamika chinês Seng-chao, também no mesmo século, quando disse que as formas são vazias porque não têm uma existência independente, mas também o vazio não tem esse tipo de existência. Os sunyavadas extremistas ignoraram a afirmação do Vimalakirtinirdeśa Sūtra, uma outra obra mahāyāna, de que “os dharmas não são nem ser nem nada; todos os dharmas têm origem em causas e condições”, que é, ademais, a posição clássica do Theravāda.

A posição śūnyavāda extremista, a qual se encontra em várias reverberações até nossos dias, cria uma série de novas posturas e problemas éticos. Ética, preceitos, convenções, tudo passa a poder ser quebrado, pois são uma ilusão no final das contas. Se este tipo de vazio é magnificado e todos os dharmas são em última análise um nada ou uma ilusão, então o ato de matar, como já expresso de diferentes formas no código guerreiro de alguns, não consiste nada mais que um passar a lâmina da espada em meio a átomos vazios. Matar um outro ou matar a si mesmo passam a ser atos que não precisam ser interpretados como portando qualquer significado ético (não são um karma nem têm consequências), pois não há realmente um ser ‘lá’ que possa ser morto. Os seres são ilusões, conglomerados vazios que podem ser destruídos, divididos, separados. Este mesmo tipo de pensamento, tão apropriado para fins militares, também foi utilizado no manual kṣatriya da realeza hindu, o Bhagavad Gita, onde Kṛṣṇa é apresentado como instruindo Arjuna a não desistir da batalha pelos mesmos motivos. Essa mesma concepção animou também os samurais e soldados japoneses, os quais se sentiram à vontade para se manter em suas atividades ao mesmo tempo que preservando suas crenças buddhistas.

O monge que tira sua própria vida não precisa considerar que está quebrando um preceito da própria religião. A visão (extremada) do Vazio, garante que não há forma, ou que toda forma é vazia. E isso pode permitir, pelo menos em sua mente, uma atenuação da ação de ir contra o primeiro preceito de não tirar a vida.

2. A expansão da doutrina dos bodhisattvas

O conceito de bodhisattva – o ser que decide adotar um curso de ação onde sacrifica sua iluminação pessoal em prol de desenvolver as virtudes no grau necessário para se tornar um Buddha Supremo capaz de ajudar inúmeros seres -, não é uma criação do movimento Mahāyāna. O conceito original já existia desde o tempo do Buddha, onde este é mostrado como o modelo por excelência de bodhisattva. Em termos canônicos, por suas excelsas virtudes, o Buddha não apenas foi capaz de atingir a libertação, mas o fez de forma a abrir um caminho em que muitos seres pudessem passar. A partir do Buddha, aqueles que se utilizaram desse caminho aberto atingiram a mesma libertação e a mesma sabedoria do Buddha, e foram chamados de Arahants. No cânon antigo, a diferença entre o Buddha e o Arahant (o Buddha também é um Arahant) não é de grau de libertação, mas apenas devido ao fato de o Buddha ter aberto o caminho e possuir uma versatilidade maior de conhecimento dos métodos a serem empregados na ajuda aos seres.

Aqueles que seguem o caminho de libertação proposto pelo Buddha almejam, assim, realizar a purificação da visão e se tornarem, então, Arahants. Enquanto trabalham nessa purificação e também depois de conclui-la, eles também ajudam os seres, cada qual dentro de suas capacidades.

A palavra bodhisattva, no cânon antigo, aparece circunscrita como referência apenas ao Buddha antes de sua Iluminação, e uma breve menção de que haverá um Buddha no futuro (Metteya ou Maitreya), que agora é, então, um bodhisattva (ou seja, um ser no caminho de se tornar um Buddha). O Buddha no cânon antigo original nunca incentivou que seus alunos almejassem se tornar bodhisattvas, o que implicaria que não completassem o curso de libertação enquanto discípulos do Buddha (se tornariam Buddhas apenas eras e eras após Maitreya). O Buddha tampouco indicou qualquer curso de ação para alguém se tornar um bodhisattva.

À medida que os séculos se passaram, porém, e a presença do mestre foi se tornando mais e mais tênue na memória de seus seguidores, dois novos fenômenos começaram a ocorrer.

Depois de sua morte, a tentação de especular o que teria ele feito para atingir o estado de Buddha era grande demais para não ser explorada. As descrições presentes em seus ensinamentos eram complexas e exigentes (pregavam diretamente a cessação da ganância, do ódio e da ignorância). Provavelmente em sua inteireza os ensinamentos apenas eram transmitidos dentro dos círculos de discípulos mais dedicados, em sua maioria, monges. Para estudar com detalhe a Cooriginação Dependente, praticar samatha e vipassana, atingir os estados meditativos requeridos para o conhecimento experiencial, seria necessário passar um longo tempo ouvindo o Dharma (lembremos que a tradição era oral, não haviam livros que alguém pudesse adquirir para levar para casa), e passar prolongados períodos dentro de mosteiros. Tudo isso estava muito além do que a maioria do povo podia se dedicar.

Para o povo, cada vez mais a ênfase era colocada na prática das virtudes, qualidades de doação, generosidade, abnegação, paciência, moralidade, etc., que o próprio Buddha teria tornado perfeitas antes de atingir o Despertar.

Esta foi a época do crescimento dos ensinamentos mais dirigidos ao povo, solidificando a presença buddhista em meio à população. Histórias de fundo moral, ressaltando tais virtudes e com um mínimo de instrução sobre os aspectos meditativos e de sabedoria mais avançada (presentes no cânon e nos comentários tradicionais) vieram à luz nessa época. O Dhammapada, os Jātakas e os Apadānas (Avadānas) se tornam muito populares como meio de instrução, uma forma também de enfrentar a crescente rivalidade vinda dos movimentos devocionais que cresciam no Hinduísmo nesta época.

Paralelamente, mais e mais alguns começaram também a perceber que o atingimento do estado de Arahant não era algo tão simples ou fácil de se realizar. O ideal do Arahant gradualmente foi sendo considerado mais difícil, implicando muitos sacrifícios imediatos, a adoção de uma disciplina estrita demais e um curso de estudo e prática além do que seria possível a um homem comum se submeter. Com o aumento do número de monges, que teve um imenso impulso a partir do patronato do imperador Asoka, a vida dentro do mosteiro também se tornou mais fácil, fazendo com que mesmo muitos monges pudessem passar a considerar os ideais originais muito difíceis. Atingir a iluminação nesta própria vida, ou mesmo em uma próxima, gradualmente foi sendo considerada uma tarefa por demais árdua, possível quando o Mestre ainda estava presente ou seus discípulos imediatos, mas aquelas épocas áureas já podiam ter passado. A possibilidade de gradualmente ir desenvolvendo virtudes, no seu próprio passo e no decorrer de várias vidas, foi cada vez sendo mais tentadora. Uma modificação do conceito original do bodhisattva poderia permitir isso.

Enquanto, porém, que a diferença entre Buddha e Arahant fosse apenas aquela entre mestre iniciador do caminho e discípulo iluminado (como constava do cânon), ambos entretanto com o mesmo grau de libertação, não se poderia propor um caminho gradual de desenvolvimento das virtudes ao longo de várias vidas, pois o caminho para se chegar ao estado de Buddha seria o mesmo que aquele para o atingimento do estado de Arahant.

Este período, então, vê o desenvolvimento de uma idealização da figura do Buddha, que irá aumentar cada vez mais no decorrer dos séculos até torná-lo numa figura completamente transcendental. Algumas escolas surgirão com especial ênfase nesses aspectos. Na verdade, diferentes escolas irão se distinguir justamente pelo grau de afastamento entre as definições de Buddha e Arahant. Almejar ser um bodhisattva e durante muitas e muitas vidas ir desenvolvendo gradualmente as virtudes passava a ser um caminho viável, além de menos árduo do que lidar com a cessação das impurezas mentais e o desenvolvimento da sabedoria nessa mesma vida, como o Buddha do cânon antigo incessantemente pregava.

A partir de então, estas duas vias (a do Arahant e agora a do Bodhisattva) estiveram presentes, com os seguidores buddhistas claramente conscientes de que o caminho do bodhisattva era um caminho para raríssimos (apenas para aqueles almejando se tornarem ‘Buddhas Supremos’ e, assim, poderem ajudar os seres de forma imensa), mas, curiosamente, menos exigente para a vida atual. A noção de caminho indicado pelo próprio Buddha, de outro lado, era o de se desenvolver as virtudes e a sabedoria na medida adequada para o atingimento da libertação (tornando-se Arahants). Durante todo esse processo se poderia, é claro, ajudar os seres da forma apropriada, e ainda mais depois de completado. Essas duas vias não foram uma criação do movimento Mahāyāna, mas estavam presentes numa época pré-Mahāyāna em várias escolas antigas, inclusive na Theravāda. Com o passar do tempo, entretanto, o caminho mais lento e gradual do Bodhisattva passou a ser cada vez mais estimado.

No Bodhirājakumara Sutta, por exemplo, quando perguntado pelo príncipe Bodhi quanto tempo alguém levaria para atingir a iluminação, caso encontrasse um Tathāgata que o instruísse, o Buddha apresenta sua resposta frequente de que possuindo tais e quais qualidades seria possível a um aluno dedicado completar o caminho em sete anos ou menos (uma posição que é a norma dentro do cânon antigo, irrespectivamente de pertencente a qual escola). Esse tipo de resposta é a antítese daquela que será dada nas novas doutrinas que farão uso crescente de um modelo de bodhisattva como o ser que escolhe o caminho longo do desenvolvimento imensurável das virtudes (pāramīs), nas quais jamais teremos o Buddha incentivando alguém a se iluminar rapidamente pois implicaria num fracasso no longo caminho do bodhisattva. Este deveria não apenas retardar sua iluminação, mas ainda, ajudar a todos os seres sencientes a se iluminarem antes dele, como aparecerá em algumas doutrinas posteriores. Todo o sentido de urgência (saṁvega) na realização desaparece. O tradicional verso “Appevanāmimassa kevalassa dukkhakkhandhassa antakiriyā paññāyethāti” (‘Possamos nós, nesta própria vida, completar a extinção de todas essa massa de sofrimento’) deixa de ter sentido.

A carreira do bodhisattva passou a implicar, dessa forma, um caminho diferente daquele ensinado pelo Buddha, pois para desenvolver as virtudes (pāramīs) no grau necessário para se tornar um Buddha supremo e dotado de inimagináveis qualidades transcendentais, um bodhisattva não poderia se iluminar imediatamente (ou seja, como discípulo do Buddha Sakyamuni). O caminho do bodhisattva deveria ser não o caminho que o Buddha ensinou, mas daquilo que o Buddha teria feito para atingir sua Iluminação. É um caminho para muito poucos, apenas para aqueles dispostos a cultivar as virtudes num grau extremo durante incontáveis eras. Mas ao mesmo tempo era um caminho para muitos, pois qualquer um poderia dar um pequeno passo agora mesmo. Esta doutrina está acompanhada de uma outra, a de que não há o surgimento de um novo Buddha enquanto que o ensinamento do anterior ainda esteja aberto. Escolher o curso do bodhisattva implica assim que não haverá iluminação para aquele ser enquanto que o Buddhismo do Buddha Sakyamuni existir e puder ser praticado.

Em termos práticos, no entanto, a rotina diária do aspirante a bodhisattva ou a arahant eram as mesmas. Ele ainda deveria seguir os preceitos morais, cultivar as virtudes do esforço, generosidade, doação, compaixão e disciplina e, havendo tempo e disposição, se engajar em práticas meditativas e estudo do Dharma. O Sāriputrakṣama Sūtra, um manual do começo do Mahāyāna (100-250 d.C.), por exemplo, incentiva a prática dos cinco preceitos (sīllas) e das seis virtudes (pāramīs). Os primeiros textos mahāyānas não diferem dos sūtras antigos no tocante ao que o praticante deve cultivar.

Por volta desse primeiro século d.C., o conceito de bodhisattva passou a ser usado mais ativamente também para incentivar os reis a apoiarem as iniciativas de sustentação do Buddhismo. Já no cânon, Siddhartha Gautama aparece como tendo dois destinos possíveis: o de rei universal, caso continuasse no palácio, ou de Buddha, caso optasse pelo abandono da vida no lar. Siddhartha optou pela segunda via, mas a possibilidade de alguém altamente desenvolvido poder assumir a regência do mundo era uma imagem forte demais para ser abandonada e continuou a inspirar os nobres das castas reais por muito tempo.

O cakravartin, rei universal, passou a ser o modelo de atuação para muitos reis, e textos (chamados também de sūtras, como os textos originais antigos) foram escritos para prover um apoio religioso para sua inspiração. O Karuṇāpuṇḍarika Sūtra, por exemplo, defenderá que um rei que se torna patrono do Buddhismo será capaz de ajudar enormemente a expansão do Buddhadharma, provendo condições materiais em um nível que pessoas comuns não têm condição de fazer. O rei é capaz de fazer a maior oferenda (dāna) de todas, se qualificando, assim, como um forte postulante no caminho do bodhisattva. No Mahāvaipulya Mahāsannipāta Sūtra, o rei passa a ser, por suas doações materiais, um doador do nirmāṇkāya do próprio Buddha. Daí vem a identificação crescente da figura do bodhisattva com as roupagens dos reis. Enquanto que no cânon antigo é justificável o bodhisattva ser imaginado com roupas reais, pois Siddhartha Gautama era um príncipe antes de abandonar a vida real, agora a iconografia do bodhisattva claramente passava a vesti-lo com essas roupas como modelo indicativo para todos os reis que decidissem sustentar o Buddhismo. Adotando esse modelo, tais reis efetivamente se sentiam como trilhando o caminho do bodhisattva e chegaram a construir estátuas de cakravartins nos templos e mosteiros buddhistas, uma prática generalizada nos séculos quatro e cinco d.C. Os diversos reis da Ásia Central e da China também se engajaram em traduzir e divulgar pelos quatro cantos de seus reinos os novos sūtras que divulgavam o conceito de cakravartin.

Os conceitos antigos e os conceitos já modificados em todas essas novas interações com pessoas e sociedades, com suas aspirações, desejos e planos pessoais, foram dando origem a ainda novos sūtras, escritos para lidar com as novas condições. Enquanto que no Vinaya (código monástico) deixado pelo Buddha e preservado pelas escolas antigas, as regras pārajikās indicavam as condições que envolviam a expulsão do monge que incorria em quatro ações (intercurso sexual, roubo, intencionalmente levar um ser humano à morte e mentir sobre a própria realização espiritual), o novo Bodhisattvaprātimokṣa que se apresentava como o código monástico para os que caminhavam na via do Bodhisattva, apresentava como pārajikās o não fazer a doação de ensinamentos e de recursos materiais. Doar e fazer sacrifícios pela divulgação do Dharma se tornaram as virtudes por excelência dos aspirantes a bodhisattva. Um relaxamento das regras monásticas foi favorecido para acomodar as necessidades dos postulantes a bodhisattvas provenientes da nobreza real, enquanto que assegurando que cumpririam seus deveres de suporte da religião.

Mas não apenas passa a haver um relaxamento das regras monásticas, mas o próprio objetivo do caminho começa a se modificar. Tal como apresentado em um dos fundamentais textos do Mahāyāna, o Mahāparinirvāṇa Sūtra, o aspirante do caminho deveria almejar ativamente a vida longa e a prosperidade material. Os motivos para isso são claros, pois esses dois fatores garantem que alguém possa continuar praticando atos de generosidade e apoio à religião por um longo tempo. Ao invés do incentivo em sair do saṁsāra (concebido enquanto o mundo de cobiça, ódio e ilusão) promulgado pelo Buddha e pelas escolas antigas (que implicava levar uma vida de maior simplicidade e contentamento), o novo ideal preconizava que o tempo no saṁsāra (agora concebido como o próprio mundo material das coisas e seres) deveria ser prolongado o quanto fosse possível. O Upāsakasīla Sūtra (um manual Mahāyāna para os laicos buddhistas) chega a dizer que a conquista material não é diferente da conquista espiritual, com a longevidade e a riqueza sendo um resultado do desenvolvimento dos pāramīs (virtudes transcendentais necessárias para a realização do estado de Buddha). Uma das consequências posteriores será a concepção corrompida, mas inextrincavelmente relacionada, de que aqueles que não têm condições financeiras para participarem de ensinamentos de dharma não desenvolveram ainda os pāramīs na medida necessária. Mas isso é uma corrupção posterior. No contexto do Mahāyāna antigo, o objetivo da conquista da riqueza não é de acumulação para si, mas de então revertê-la para o benefício dos seres.

Aqui podemos começar a antever a conexão desse desenvolvimento com a validação do suicídio. O aspirante a bodhisattva adquire todas essas coisas não para mantê-las para si, mas para ter mais para ofertar. E nesse conjunto de coisas está incluso não apenas suas posses materiais, mas também sua família e sua própria vida, como aponta o Upāsakasīla Sūtra.

Com a difusão, assim, do Mahāparinirvāṇa Sūtra e dos sūtras associados a ele, o suicídio por uma causa nobre passa a ter uma validação escritural – lembrando que para o Mahāyāna antigo tais sūtras não eram considerados como produções posteriores (como a historiografia atual sustenta), mas como palavras factuais do Buddha histórico, coisa que escolas antigas, como a Theravāda, nunca tiveram que lidar pois seu cânon foi fechado antes do aparecimento dos novos sūtras mahāyānas. Daí encontrarmos exemplos de suicídio religioso primariamente nos países influenciados por aquela corrente.

Não apenas o suicídio com o propósito de sacrifício pela causa do Dharma pode ser entendido agora, mas também a ocasional adoção de práticas de guerra envolvendo alguns mosteiros de denominação mahāyāna. A adoção do Mahāparinirvāṇa Sūtra e escrituras correlatas (como o Sūtra do Lótus, que diz que a melhor oferenda é aquela do próprio corpo) como textos autoritativos possibilita o pensamento de que também matar, se for para a defesa do Dharma, é permitido, o que facilita entendermos o aparecimento do samurai tanto quanto do kamikaze moderno, os quais mesmo que mantendo seus ideais buddhistas não sentem qualquer contradição com o matarem em nome da justiça ou morrerem na defesa de algum ideal nobre. O sacrifício em nome do Dharma tem um exemplo (que embora não tenha chegado ao suicídio, tem ainda a mesma tônica de sacrifício extremado de uma parte do corpo em nome do Dharma) na escola Zen em suas próprias origens, quando o segundo patriarca, Hui-k’o, diante da recusa de Bodhidharma de lhe ensinar o Dharma, corta seu braço como prova de sua determinação. Os monges e monjas do Tibete atual fazem parte de uma longa linhagem que vem desde monges chineses do século cinco d.C. que empreendiam o suicídio ritual como forma de protesto ou para a defesa dos ideais da religião. Já no Sūtra do Lótus, a autoimolação por meio do fogo (a prática adotada pelos monges e monjas tibetanas agora) é preconizada como exemplo maior da prática de um bodhisattva.

Devido ao isolamento dos monges e monjas tibetanas no solo chinês não podemos saber se suas ações são meros protestos políticos desesperados diante da opressão injusta e cruel, mesmo que indo contra os preceitos de preservação da vida pregados por sua religião, ou se suas ações podem conter em si uma adição doutrinal que lhes dão uma percepção maior do que seus atos significam. Mas se tiverem, a concepção extremista de um Śūnyavāda e o sacrifício da própria vida como parte de um caminho bodhisattvico poderiam bem servir para esse objetivo.

© 2011, Ricardo Sasaki


Ricardo Sasaki é diretor do Centro de Estudos Buddhistas Nalanda, entidade religiosa presente em várias cidades brasileiras, através do qual ministra cursos, workshops e retiros de meditação, ensinamentos buddhistas e religiões comparadas. É psicólogo e professor de dharma na tradição buddhista tanto pela linhagem theravāda quanto na mahāyāna, tradutor e escritor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior ligados à área de estudos religiosos.

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9 COMMENTS

  1. O pior de tudo é que a base doutrinal para essa barbaridade está no próprio Tipitaca!
    É só ver o Jataka onde o Buda, numa vida anterior, dá o corpo para alimentar uma tigresa faminta que iria comer os próprios filhotes…
    A questão é que, após o ato, o proto-buda vai ao Paraíso de Tutsita e a situação torna-se determinante para que ele alcance a Iluminação!
    Portanto…

  2. Eduardo, permita-nos te dar uma lição de casa para realizar. Ache-nos em qual Jataka presente realmente no Tipitaka esta estória está.

  3. Assim como no islamismo, no cristianismo, etc…, no budismo a relação com as instituições dos estados, dos impérios, ao longo da história, em pouco ou nada se diferem: seja aliando-se ao poder, como o zen no japão imperialista, seja atentando contra a própria vida como forma de atacar o império chinês. E se buscarmos mais profundamente na história, outros fatos corroboraram para esta afirmação. Neste aspecto, o budismo nada tem de especial…

  4. Oi, só vi hoje a resposta.
    Quer dizer que a história da tigresa e do Buda é mahayana? Ela não está no Jataka do Tipitaca? É isso mesmo? Desculpe-me pelo resquício de dúvida, já que pelo teor da colocação parece não haver margem para isso, mas fico muito surpreso, pois pelos textos que li eu tinha a certeza… Sendo a mais absoluta realidade, o que eu digo? Que é muito auspicioso! É realmente estimulante saber que o Tipitaca se protegeu de divulgar essas barbaridades!
    Por outra, qual o teor das histórias do Jataka de verdade?
    Ele usa animais, na tradição do panchatantra?
    Há uma forma de reconhecer no que é dito como Jataka entre o que é Theravada e as deformações posteriores?

    Eduardo Bettega

  5. Olá Eduardo, eu não disse que essa história está ou não em tal ou qual lugar. Apenas te pedi para falar onde está. Acho que quando fazemos afirmações taxativas sobre algo – veja sua afirmação: “O pior de tudo é que a base doutrinal para essa barbaridade está no próprio Tipitaca!” – é prudente saber exatamente de onde foi tirado, do contrário é dificil comentar qualquer coisa. Existem camadas e camadas de escrituras, em todas as escolas. Quanto à sua última pergunta: “Há uma forma de reconhecer no que é dito como Jataka entre o que é Theravada e as deformações posteriores?” o melhor é ter em mãos o próprio Jataka e aí saberemos o que está lá e o que não está. Além disso, é preciso estar consciente de que os Jatakas não são uma coleção de doutrina, mas de edificação moral, e portanto seu objetivo é outro. Junte-se a isso que apenas os versos dos Jatakas são canônicos, as estórias são apenas comentários posteriores.

  6. Eu tenho o costume de investigar sempre que possível no original, só que minha fonte confiável de lições do Tipitaca não tem essa tradução!
    E a questão é que eu pensei que o texto a que tive acesso num sítio alternativo era canônico…
    Portanto, agradeço pelo esclarecimento.
    De toda forma, você tem em português os versos que deram origem a essa historieta para que eu possa ler?

  7. Olá Eduardo. Foi por isso que sugeri a vc achar se esta estória é dos Jatakas do Theravada ou não. Do jeito que vc criticou parecia que sabia que sim. Então, se na “fonte” que vc leu houver o número de tal Jataka, ai sim podemos procurar e te dar o verso exato.

  8. Pontos para reflexão:
    1 – O ato do suicidio no budismo não é considerado nem negativo nem positivo em si mesmo. Para o Buda o que importa é a volição ou a intenção que está por trás do ato, não a ação em si mesma.
    2 – O apego a vida é considerado um obstáculo no Budismo.
    3 – O termo “Ahinsa” significa: não agressão intencional, “não violência” é uma tradução incorreta que partiu do meio teosofista.
    No contexto indiano tradicional um kshatrya (guerreiro), como um policial da P. choque, por exemplo, poderá usar da violência controlada para conter uma multidão enfurecida, desde que haja na intenção o bem do resto do povo em geral. Arjuna lutou sob as ordens de Krishna, sem alimentar o desejo de vingança ou ódio, apenas por uma questão de dever ou justiça social.
    3 – O Mahayana inicialmente foi um desenvolvimento de certas doutrinas já contidas no Tripitaka.
    4 – No budismo primitivo não há este falso pacifismo moderno, que fala de “paz e amor” mas usa material bélico pesado e armas de destruição em massa, nem o apego a vida judaico-cristão. Alguns discípulos do Buda que foram verdadeiros heróis do Dharma, usaram a faca para se suicidar na busca pela iluminação, colocando o caminho acima do apego à suas próprias vidas.
    Fontes canônicas: Samyutta Nikaya IV.23 (Godhika Sutta), Majjhima Nikaya 144 (Channovada Sutta).
    5 – A fonte para o suicidio heróico budista dos antigos, arahats, samurais e moges tibetanos é completamente canônica.
    6 – O monge theravada moderno Nanavira Thera cometeu o mesmo ato de suicidio baseado nos suttas do Tipitaka.
    Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Nanavira_Thera

  9. Tirar a vida por medo, para “escapar” das consequências de alguma má ação cometida contra os demais é covardia, mas fazê-lo por amor do caminho espiritual é um ato heróico. Como poderão ser covardes aqueles que deram suas vidas por amor de seu povo, de sua pátria e do Dharma? Covardes são a maioria dos falsos buscadores modernos, que cheios de falsos valores e de apego ao seu eu, a sua vidas mundanas e a sua forma carnal, não são capazes de dar até a última gota de sangue pelo caminho da iluminação:

    “Agora, naquela ocasião o venerável Godhika havia acabado de usar a faca. Então, o Abençoado, tendo compreendido, “Este é Mara, o Senhor do Mal,” respondeu em forma de versos:

    “Assim de fato é como os determinados agem:
    eles não têm apego à vida.
    Extirpando o desejo pela raiz,
    Godhika realizou o parinibbana.”

    Nessa ocasião, o Abençoado se dirigiu aos bhikkhus: “Venham, bhikkhus, vamos até a Rocha Negra na encosta do Isigili, onde Godhika usou a faca.”

    “Sim, venerável senhor”, aqueles bhikkhus responderam. Então, o Abençoado, juntamente com um grande número de bhikkhus, foi até a Rocha Negra na encosta do Isigili. O Abençoado viu à distância o venerável Godhika deitado na cama com os ombros virados.

    “Aquele homem determinado era decidido,
    um meditador sempre se deliciando com a meditação,
    dedicando-se dia e noite
    sem apego nem sequer à vida.

    “Com a conquista do exército da Morte,
    não retornou para uma nova existência,
    ao extirpar o desejo pela raiz,
    Godhika realizou o parinibbana.”

    Samyutta Nikaya IV.23 (Godhika Sutta)

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