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Uma conversa com Sulak Sivaraksa, por Donald Rothberg

ReVision, Vol. 15, Nº. 3, Inverno 1993, p. 121-128

Sulak Sivaraksa de Bangkok, Tailândia (ou Sião, como ele prefere chamar seu país), é provavelmente o mais proeminente crítico e ativista social desse país e um dos maiores expoentes contemporâneos do Buddhismo socialmente engajado. Agora, aos sessenta anos de idade, pelos últimos trinta anos ele combinou trabalhos intelectuais provocantes e inovadores com contínua organização popular. Fundou projetos de desenvolvimento rural bem como muitas organizações não governamentais dedicadas a explorar modelos alternativos de desenvolvimento sustentável, enraizados tradicionalmente, e de desenvolvimento baseado na ética e espiritualidade.

Periodicamente, Sulak (como ele é conhecido por seus amigos) foi perseguido; a Tailândia foi governada principalmente por ditaduras desde 1932. Em 1976, Sulak foi forçado ao exílio por dois anos. Em 1984, ele foi preso pelo governo por “lese-majeste” (difamação da monarquia), mas depois de uma campanha internacional em seu nome, foi libertado. Em setembro de 1991, ele foi novamente acusado de lese-majeste e também com a declamação do comandante do exército, Sulak foi exilado imediatamente. Em dezembro de 1992 ele retornou para ser julgado. Em março de 1993 ele foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Em junho de 1993, seu julgamento, previsto para durar vários meses, começou.

As principais obras de Sulak incluem “Siamese Resurgence” (1985), “Religion and Development” (1986), “A Socially Engaged Buddhism” (1988,), “Siam in Crisis” (1990), and “Seeds of Peace” (1992a).

Esta conversa ocorreu entre Sulak Sivaraksa e Donald Rothberg, em Berkeley, Califórnia, em julho de 1992.

OBRAS E PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS

 

Rothberg: Como o seu trabalho no Sião se desenvolveu?

Sivaraksa: Comecei muito pequeno. Em 1961, voltei para o meu país, depois de ter morado na Inglaterra por oito ou nove anos, e, em seguida, em 1962, comecei a trabalhar com a University Press, em Bangkok. Comecei um jornal chamado “Social Science Review” em 1963 e consegui muitas pessoas para escreverem para ele. Naquela época meu país estava sob uma ditadura desde 1947, que havia se tornado muito mais severa desde 1957; a maioria dos estudos sociais disponíveis não passava de propaganda do governo dominado pelo capitalismo e militarismo americano. Da noite para o dia, o jornal se tornou o principal jornal intelectual. Os jovens foram atraídos por ele, embora eu o tivesse inicialmente direcionado para meus colegas e para aqueles com formação no exterior. Comecei a fazer encontros para jovens, usando um templo em Wat Bovornives [um monastério em Bangkok, que também abriga uma universidade buddhista]. [1] Nós exploramos formas alternativas de pensamento, e estes jovens começaram a se tornar políticos; muitos deles tiveram êxito em mudar o governo em 1973. Também comecei uma livraria, que também se tornou um local de encontros. Em todo lugar que eu ia, eu começava publicações, prelos, revistas e livros. Dei palestras e fiz muito amigos, bem como muitos inimigos. Essa é a forma como eu trabalho.

Comecei em meu próprio país com os buddhistas, em seguida, trabalhei com os cristãos, muçulmanos e agnósticos. Mais tarde, eu o expandi para meus países vizinhos – Sudeste Asiático, sul da Ásia, Japão e EUA. Meu trabalho tem se desenvolvido por interconexões com base na amizade.

Organizei a Fundação Keemthong Komol em 1971, a fim de promover o idealismo dos jovens; ela foi nomeada em homenagem a um dos jovens que trabalhava comigo e que eu admirava muito, que foi morto pelos comunistas. Sem dúvida, essa noção de promoção do idealismo jovem é muito abstrata; nós realmente usamos um número de ideias concretas tomadas a partir de muitos lugares – de Thich Nhat Hanh, Ivan Illich, Paulo Freire, Dr. Ariyaratne do Sri Lanka. Nós ainda trabalhamos frequentemente com essa fundação. Também criei a Fundação Sathirakoses-Nagapradipa, nomeada em homenagem a dois dos meus professores, que trabalham em questões ambientais, em questões de conservação e recursos naturais, e que também tentam ajudar os artistas e poetas. No Ashram Wongsanit fora de Bangkok, associado a essa fundação, os jovens e artistas podem ir para retiros, para períodos de reflexão e aprendizagem, bem como para a meditação.

Também fundei organizações ecumênicas, como a TICD [Thai Inter-Religious Commission for Development], em que trabalhamos com cristãos e muçulmanos em questões de desenvolvimento alternativo, e os CGRS [Coordinating Group on Religion and Society]. Sou bom em começar organizações; esta é a minha força. Gosto de dar ideias para as pessoas; eu encontro pessoas compromissadas e, muito rapidamente, muitas vezes, eu termino tendo pouco a ver com a organização!

Rothberg: Quais foram as principais influências em sua ligação do Buddhismo com a ação social?

Sivaraksa: Pessoalmente tenho sido muito influenciado por Thich Nhat Hanh. Ele sofreu mais do que a maioria dos monges e tem se envolvido mais com justiça social. No Vietnã, nos anos de 1950 e 1960, ele estava muito exposto aos jovens, e sua sociedade estava em desordem, em crise. Ele estava realmente em uma posição difícil, entre o demônio e o profundo mar azul – os comunistas de um lado e a CIA do outro. Diante de tal situação ele foi muito honesto – como um ativista, como um monge contemplativo (não diferente de Thomas Merton), como um poeta (mais uma vez como Merton), e como um claro escritor. O mais importante para mim foram os seus ensinamentos sobre “interser” (Nhat Hanh, 1987a), e poemas como “Please Call Me By My True Names” (Nhat Hanh 1987b, 63-64). Sem dúvida, seu trabalho realmente se baseia sobre o ensinamento buddhista tradicional de paticcasamuppada [“origem dependente”, o inter-relacionamento de todos os fenômenos], trazido num arranjo muito contemporâneo.

Também fui muito influenciado por Gandhi e pelos quakers. Gandhi experimentou e respondeu ao sofrimento terrível relacionado com a ocupação britânica do subcontinente. Sua abordagem radical era estar com os pobres e a utilização de abordagens não violentas, usar a força espiritual. Mais tarde conheci os quakers. Estava especialmente interessado nos quakers radicais e na ideia de uma sociedade religiosa de amigos. Os quakers consideravam a amizade como fundamental, assim como fez o Buddha. Também fui muito atraído pelas noções quaker da sacralidade do ser humano e de não violência. Achei os quakers mais articulados do que os buddhistas sobre a necessidade de questionar e resistir aos poderes do Estado, de questionar o status quo; buddhistas tem coexistido com o Estado por tempo demais.

Os novos buddhistas ocidentais e grupos como a Buddhist Peace Fellowship realmente foram bons para mim. Particularmente úteis foram pessoas que tiveram antecedentes radicais (e algumas vezes marxistas) antes que se tornarem buddhistas, que vêm para o Buddhismo com uma consciência social crítica. Para mim, a análise marxista sistêmica da sociedade, das sementes da opressão, é muito útil, desde que seja colocada em um contexto não violento. Talvez radicais (incluindo marxistas) possam aprender com os buddhistas a serem mais humildes, mais vigilantes, e a terem alguma espiritualidade.

Johan Galtung, [2] um europeu que se tornou buddhista, foi o primeiro que me levou a pensar seriamente que os buddhistas deveriam focar no sistema em vez dos indivíduos. Schumacher (1973) nos ajudou em particular a pensar sobre o desenvolvimento dos sistemas econômicos não baseados na cobiça e consumismo. Aqui, os radicais e marxistas também podem aprender conosco; nós odiamos o terrível sistema, não as pessoas. Na linguagem cristã, nós odiamos o pecado, não os pecadores.

Uma Abordagem Buddhista para a Ação Social no Mundo Contemporâneo

 

Rothberg: Em seu ensaio “Buddhism and Contemporary International Trends” (Sivaraksa 1992b), você escreveu que as abordagens e categorias tradicionais buddhistas ainda não foram adequadamente traduzidas em termos modernos. O que você acha que deve ser feito para tornar o Buddhismo relevante para os problemas sociais modernos?

Sivaraksa: Ao tornar o Buddhismo mais relevante para o mundo contemporâneo é importante não comprometer seus pontos essenciais, como os preceitos éticos (sīla). No entanto, estes preceitos éticos precisam ser repensados, a fim de terem sentido de existir nas sociedades contemporâneas. Os buddhistas tradicionalmente viveram em sociedades bastante simples, principalmente agrárias, como ainda é frequentemente o caso nas regiões sudeste e sul da Ásia. Em tais sociedades as questões éticas também podem ser simples. Pode-se dizer: “Sou uma boa pessoa. Eu não mato. Eu não roubo. Eu não cometo adultério. Eu não minto.” Mas, quando a sociedade se torna muito mais complexa, essa interpretação simples das normas éticas não funciona tão bem.

Por exemplo, seguir o primeiro preceito ético buddhista, abster-se de matar seres vivos, não é tão simples agora, a realidade social no mundo moderno se tornou muito mais complexa e interligada. Temos de fazer perguntas como estas: nós permitimos que o dinheiro dos nossos impostos vá para armamentos? Nós nos mantemos separados do campo político e não desafiamos o governo? Devemos criar animais para o consumo?

Nossa compreensão do segundo preceito, de abster-se de tomar o que não nos é dado, também deve ser estendido. Podemos não roubar literalmente nas nossas interações cara-a-cara, mas devemos nos perguntar: nós permitimos que os países ricos explorem os países pobres por meio do funcionamento do sistema financeiro internacional e da ordem econômica mundial? Nós permitimos que as sociedades industriais explorem as sociedades agrárias? O Primeiro Mundo explora o Terceiro Mundo? O rico explora o pobre em geral?

Podemos fazer perguntas semelhantes sobre o terceiro preceito, abster-se de comportamento sexual impróprio. Precisamos pensar não apenas sobre adultério e ferir os outros, mas também a pensar mais amplamente sobre outras questões sexuais e de gênero, sobre a dominação masculina e da exploração das mulheres. Por exemplo, nós usamos as mulheres na publicidade de forma a promover o sexismo, luxúria e cobiça.

Na verdade, participar no sistema do consumismo já é violar o primeiro, segundo e terceiro preceitos. Seguir o quarto preceito, abster-se de linguagem imprópria, é também muito difícil. Pense em toda a publicidade e toda a propaganda política, todas as mentiras e exageros na mídia e na educação. Temos que desafiar todas essas coisas, mesmo quando estão de acordo com a lei. Os Buddhistas na Ásia muitas vezes tem gostado de conviver lado a lado com o sistema estatal e legal. Acho que temos de nos reexaminar.

Tradicionalmente a ética social buddhista tem sido inteiramente pessoal. Nós não olhamos para o sistema que é violento, que é opressivo, que, de fato, envolve roubo.

A noção buddhista de iluminação e entendimento [ou sabedoria, pāli: paññā] também deve ser estendida de forma que iluminação não seja sempre a iluminação interna; esse também tem sido um ponto fraco do Buddhismo. Paññā deve envolver uma real compreensão de si mesmo e da sociedade. Se a sua sociedade é injusta, exploradora, violenta, como você reage? Com todos os paramitas [ou “perfeições”] de um Bodhisattva, alguém dedicado à libertação de todos os seres: humilde, seriamente, sem muito apego, com consciência, com vigor, com paciência, com um grande voto para mudar as coisas. [4] Mas os buddhistas têm sido muitas vezes bajuladores dos poderosos e não tem respondido a todo o sofrimento na sociedade.

Precisamos também de um entendimento diferente do sofrimento e das causas do sofrimento (as duas primeiras “Nobres Verdades” ensinadas pelo Buddha). O sofrimento na época do Buddha era, certamente, muitas vezes terrível, mas era mais simples de entender; o inter-relacionamento de todos os fenômenos, que é um dos principais ensinamentos do Buddha era mais simples e, agora, é muito mais complexo. Nós buddhistas precisamos da ajuda dos cientistas sociais como sociólogos, psicólogos, antropólogos, etc. Devemos ser muito abertos e traduzir os resultados dessas disciplinas em entendimentos buddhistas. Sem dúvida, é preciso ter a visão correta das coisas e usar essas ciências para ajudar a eliminar a cobiça, ódio e ilusão, caso contrário, todas essas metodologias e ciências podem nos desencaminhar. Mas sem o trabalho dessas disciplinas, podemos nos tornar iludidos e pensarmos que a prática buddhista pode resolver tudo. Ela não pode. Sem transformar o sentido buddhista de sabedoria para trazer a compreensão e uma resposta à realidade social, o Buddhismo não será tão relevante e poderia ser somente do interesse da classe média. Se não formos cuidadosos, isso se tornará uma espécie de escapismo.

Rothberg: Algumas vezes, quando leio textos buddhistas ou falo com buddhistas, mesmo com buddhistas muito interessados social e politicamente, eles frequentemente parecem sugerir que o problema básico é a cobiça, ódio e ilusão internos, como se o trabalho no indivíduo fosse o mais importante. De acordo com essa maneira de pensar, quaisquer problemas existentes com sociedades ou sistemas são apenas uma expressão do que é “interior”. Há pouco sentido de uma relação mais “dialética” do indivíduo e do sistema, de como a cobiça, o ódio e a ilusão são gerados por sistemas, enquanto que os sistemas se sustentam através de mais cobiça, ódio e ilusão. Sem dúvida, há muita ênfase tradicional buddhista na Sangha [comunidade] e ética, mas a suposição comum é que a transformação interior leva à transformação exterior. Como podemos desenvolver uma visão do Buddhismo socialmente engajado de forma a integrar o trabalho interno e externo de forma mais completa para que um fortaleça o outro?

Sivaraksa: Ambedkar, o líder dos intocáveis na Índia, que se tornou buddhista no final de sua vida, desafiou o Buddha de uma maneira maravilhosa. [5] Ele disse que não era o suficiente falar que a causa do sofrimento era a cobiça, ódio e ilusão; isto é, só falar de mais causas mais “internas”. A estrutura social também é uma causa de sofrimento; como um intocável, ele podia ver isso claramente.

A intenção do Buddha era certamente mudar os indivíduos; o objetivo último era a libertação. No entanto, ele tinha a intenção de ajudar a libertar não só indivíduos, mas toda a sociedade. Seu método consistia em criar a Sangha, a comunidade, como uma espécie de sociedade alternativa dentro de uma sociedade maior, que iria influenciar a sociedade maior de forma indireta.

Mas também devemos nos lembrar de passagem que a sociedade maior daquela época não era de forma alguma perversa. O sistema não era muito rígido. Um indivíduo transformado poderia causar um grande impacto. Um homem rico, uma espécie de banqueiro no tempo do Buddha, Supata, que se tornou Anathapindika, tornou-se o patrocinador de todos os pobres na região. No nosso tempo, você pode se tornar um bom banqueiro e nada mudar em particular. Agora você tem que mudar todo o sistema bancário! Temos que ser muito exigentes na transformação de nós mesmos, mas acho que estaríamos iludidos a menos que também tenhamos uma clara compreensão de como mudar a sociedade opressora.

O voto de Bodhisattva de salvar todos os seres sencientes é um desafio especial para todos os buddhistas. Sem esse voto podemos nos tornar muito egoístas. Podemos não ser capazes de mudar o mundo nesse exato momento, mas podemos começar a encontrar, entender e compartilhar o sofrimento dos outros, e desejar ajudar. Sem dúvida, devemos fazer isso com equanimidade e desapego. Isso é compaixão, karuna, nossa atitude básica guiando tanto o nosso trabalho mais interno quanto o mais externo. Deve haver um equilíbrio do interno com o externo; enfatizar um em detrimento do outro é para mim uma traição em relação ao Buddhismo.

Rothberg: Quando visitei no início deste ano o monastério de Pah Ban That (no nordeste da Tailândia), fundado por Ajahn Maha Boowa, tive várias conversas com Bhikkhu Pannavaddho, um monge inglês que é provavelmente o monge ocidental mais sênior na Tailândia. Ele questionou se era realmente possível para pessoas socialmente engajadas viverem plenamente a vida espiritual, independentemente de quão úteis eles pudessem ser. Para ele, viver esta vida é trabalhar pela libertação arrancando as “impurezas” que bloqueiam o amor e entendimento fundamentais de uma pessoa. Entretanto, isto tem como requisito viver em um ambiente altamente favorável, similar ao de um Wat [monastério]. A vida de engajamento social muito provavelmente não terá a profundidade espiritual que é possível para um monge em um ambiente como um monastério.

Esta é uma grande preocupação para muitas pessoas no Ocidente. Nossa intenção é trabalhar socialmente de uma forma que traga muita profundidade espiritual, bem como profundidade social, em vez de agir de uma forma superficial em ambas as dimensões.

Sivaraksa: Sem dúvida, é um grande perigo que aqueles que estejam socialmente engajados careçam de profundidade espiritual, calma interior e paz; alguns monges buddhistas ativistas (por exemplo, no Sri Lanka e Birmânia) algumas vezes se tornaram até violentos. Mas o que Pannavaddho disse é aplicável apenas a uma pequena minoria de monges, se aplica àqueles que estão convencidos de que seu dever mais importante é se libertar das impurezas. É irrealista esperar que todos os monges tenham essas mesmas intenções. Mesmo na época de Buddha, muitos monges não tinham. Monges deveriam atuar entre o mínimo (seguir os preceitos éticos básicos) e o máximo (praticar pela libertação); a maioria está nessa faixa. Além de seguir os preceitos éticos mínimos, o monge deveria fazer alguma contribuição. Na tradição buddhista Theravāda, há a tradição de ter monges da cidade, que ajudam e lideram as pessoas de várias maneiras, por exemplo, na educação e na medicina; essa é a expressão tradicional da espiritualidade socialmente engajada.

Entretanto, sem a dimensão espiritual, aqueles que trabalham socialmente vão se esgotar. Temos que ter alegria, paz e descanso em nós mesmos, em nossas famílias, entre nossos vizinhos. Se formos conectar as normas éticas e de justiça social, precisamos de tempo para o desenvolvimento espiritual, tempo para meditar, tempo para integrar a cabeça e o coração, e depois tempo de renovação e retiro várias semanas por ano, algumas vezes com professores que nos ajudam e nos questionam. Essa é a razão porque centros de renovação como Suan Mokkh de Buddhadasa, o “Jardim da Libertação” [no sul da Tailândia], o Plum Village de Thich Nhat Hanh [perto de Bordeaux, França], e o centro que comecei, o ecumênico Ashram Wongsanit, são tão importantes.

Sem esse tipo de questionamento e prática, aqueles que tentam transformar a sociedade serão provavelmente cobiçosos, vão querer ser os mandachuvas; ou cheios de ódio, querendo o poder; ou enganados, almejando uma sociedade ideal impossível ou sendo benfeitores ingênuos. Meditação e autoconsciência crítica ajudam a enxergar essas motivações questionáveis, ou pelo menos se perguntar: “Estou fazendo isso por cobiça ou ódio?” mesmo que não haja uma resposta clara.

Mas a meditação sozinha não é suficiente – porque as pessoas sofrem muito. É preciso também agir; é preciso fazer o que está ao nosso alcance.

Os entendimentos básicos dos três patronos fundadores da International Network of Engaged Buddhists [INEB, fundada por Sulak], o Dalai Lama do Tibete, Thich Nhat Hanh do Vietnã e Buddhadasa Bhikkhu da Tailândia, são todos muito relevantes. [6] Cada um deles, representando uma das três principais tradições buddhistas (Vajrayāna, Mahāyāna e Theravāda), medita regularmente e está muito preocupado com desenvolver sociedades “dhâmmicas”, sociedades baseadas na sabedoria e compaixão. Cada um deles enfrentou o sofrimento muito diretamente e respondeum de forma completa, através de meios a partir dos quais podemos aprender.

O Dalai Lama foi exilado por mais de trinta anos do Tibete. Ele usa a meditação e a compaixão, nos ensinando a amar o governo chinês e os indivíduos chineses que muitas vezes cometeram atrocidades contra os tibetanos, matando, destruindo templos, e assim por diante. Seu ensinamento é muito relevante para os meus jovens bhikkhus [monges] no Sri Lanka, no meio de uma guerra civil; como eles podem aprender a amar os tâmils? Eu ainda não consegui ser bem sucedido. Mas muitos desses monges estão agora começando a meditar e participar de práticas monásticas tradicionais, como esmolar alimentos.

Thich Nhat Hanh também tem sido uma grande ajuda. Na Tailândia, por exemplo, ele ajudou os refugiados vietnamitas, que muitas vezes foram muito mal tratados pelos tailandeses em seus campos de refugiados; alguns refugiados foram estuprados por piratas tailandeses. Thich Nhat Hanh trabalhou com eles, ensinando-os a não odiar os tailandeses. Ele também ajudou os refugiados quando eles se estabeleceram nos EUA e na Austrália, ajudou-os especialmente com suas mágoas de guerra. Para Thich Nhat Hanh, ajudar os outros é ajudar a si mesmo. Aqueles de nós que já foram a Plum Village, comunidade espiritual na França fundada por Thich Nhat Hanh, podem ver como tanto a meditação como a consciência social florescem lá.

Buddhadasa pode não ter sido tão perseguido como os outros dois líderes, mas ele foi frequentemente atacado. Ele foi chamado de comunista por alguns; alguns monges do Sri Lanka o chamaram de “cabra” e de propagandista para os cristãos. Um conhecido estudioso buddhista criticou-o como não sendo um buddhista e o chamou, um monge sênior (na época com 87 anos), de todos os tipos de nomes, em grande parte porque ele estava aberto a abordagens externas à tradição buddhista. Buddhadasa está, sem dúvida, muito baseado na tradição buddhista; ele é muito rigoroso em seguir os preceitos éticos Theravāda. Ao mesmo tempo, ele aceitou o Buddhismo Vajrayāna e Mahāyāna como caminhos válidos. Sua Santidade o Dalai Lama foi visitá-lo. Ele também admirava o trabalho de Thich Nhat Hanh.

A Importância da Comunidade

 

Rothberg: Uma vida integrando engajamento social e trabalho espiritual no Ocidente é bastante difícil por muitas razões, especialmente porque não há tantas estruturas de apoio. No Buddhist Peace Fellowship Summer Institute, em julho de 1992, você falou sobre a comunidade como uma importante forma de resistência não violenta, como um suporte para questionar o consumismo e as estruturas de dominação e opressão.

Sivaraksa: É importante que a vida cotidiana seja vivida em comunidade. A vida diária atual nas sociedades industrializadas, tão baseadas na separação, no individualismo e no consumo, não é conducente à espiritualidade socialmente engajada. A tradição buddhista, por outro lado, enfatiza a centralidade da vida comunitária baseada na simplicidade. Há uma antiga tradição de que os monges não deveriam ter mais do que três mantos, uma tigela, agulha e linha, e um par de sandálias. Somos também ensinados a não nos apegarmos ou darmos grande importância ao dinheiro, mesmo que nós leigos precisemos de dinheiro para nossa sobrevivência. Quanto mais comemos de forma autossuficiente, cultivando nossa própria comida, e assim por diante, menos importante o dinheiro se torna. Tudo que cultivamos nós estamos dispostos a compartilhar com os outros. É por isso que eu acho que você precisa viver próximo à natureza e estar com as pessoas. Em nossa sociedade tradicional, sempre foi assim. Tudo o que você cozinha você compartilha com os outros. Seria bom que essa abordagem voltasse. Eu acho que isso é possível, se as pessoas pensarem seriamente e questionarem o consumismo, promovendo a não-cobiça, não-ódio e não-ilusão, educando as pessoas sobre alternativas ao materialismo e sobre como tornar o capitalismo mais sensato.

Em nossa sociedade, especialmente na zona rural, ainda temos famílias grandes na maior parte do país, com exceção em Bangkok, que é como qualquer outra cidade ocidental. Nós ainda respeitamos nossos pais e avós, e temos sentimentos para com os pobres, os cegos e deficientes mentais; não sentimos vergonha de ter pessoas com deficiências mentais na família. Temos que reforçar o que é positivo na abordagem tradicional (em áreas como agricultura, medicina, alimentação e vestuário); caso contrário, as tendências modernas vão destruir tudo.

Rothberg: Nos Estados Unidos, o Buddhismo é muitas vezes interpretado de forma muito individualista. Gary Snyder (Ingram, Gates, e Nisker 1988, 5) disse certa vez que a Sangha é a menos desenvolvida das “Três Joias” do Buddhismo [as “Três Joias” são o Buddha, ou o exemplo da pessoa liberta; o Dhamma, ou os ensinamentos básicos sobre a libertação; e a Sangha].

Sivaraksa: Quando meu professor, Ajahn Buddhadasa, atingiu a idade de 84 anos, o fim do sétimo ciclo de sua vida de acordo com nosso costume, escrevi o livro “Radical Conservatism” (Sivaraksa, Hutanuvatra, Chaemduang, Sobhanasiri e Kholer 1990). Eu acho que o título é importante. Como buddhista, se alguém não é radical e não trabalha para eliminar o sofrimento, pode-se terminar pegando apenas um pouquinho de Buddhismo para seu ego individual. Mas o Buddhismo não é frequentemente radical; ele coexiste com muita facilidade com o capitalismo e o consumismo. Se o Buddhismo não for radical aqui nos Estados Unidos, algum dia ele vai simplesmente se tornar uma espécie de americanismo e não gerar muitas contribuições, assim como o Buddhismo é, muitas vezes, uma mera decoração no Japão.

Muitas intenções de criar uma comunidade neste país falharam, principalmente porque o individualismo se tornou tão forte e porque as comunidades não foram firmemente baseadas em diretrizes éticas. Penso em Locke e sua Declaração de Independência, que tornaria possível “vida, liberdade e a busca da (daquilo que chamam) felicidade”. Muitas vezes, sem dúvida, a busca pela felicidade é realmente uma busca por posses. O membro tradicional da Sangha buddhista não tem nenhuma posse que seja. Todos os membros são iguais economica e socialmente. Os leigos podem olhar para a Sangha como um exemplo e tentarem ter menos posses, não serem tão apegados às coisas que possuem e trabalharem para uma maior igualdade econômica e política.

A comunidade também deve ser baseada em preceitos éticos. Sem dúvida, a ética não é apenas sobre não matar, roubar e abusar sexualmente do outro; é também sobre respeitar os outros, compartilhar nossos recursos, ver como podemos contribuir, vivendo harmoniosamente, e assim por diante. Se pudermos desenvolver comunidades buddhistas que repousam sobre uma vida simples, próximas da natureza, que estimulam o pensamento sério que desafia o consumismo e o status quo, isso seria uma importante contribuição.

O Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo: Trabalhando e Aprendendo Juntos

 

Rothberg: Nos tempos atuais há muito mais interação dos buddhistas socialmente engajados do “Primeiro Mundo” e do “Terceiro Mundo”. Como podemos trabalhar melhor juntos? O que podemos aprender juntos?

Sivaraksa: Novamente, o ponto essencial é que cada pessoa deve desenvolver uma autoconsciência crítica, humildade, sementes de paz, e então o diálogo é possível, ouvir é possível, bons amigos são possíveis. Uma vez que trabalhemos juntos, principalmente em relação ao sofrimento, então o fosso entre ricos e pobres, entre o Primeiro Mundo e Terceiro Mundo, norte e sul, já se foram; tornamo-nos parceiros e amigos. Sozinho você não consegue fazer muita coisa, mas com seus amigos você consegue fazer muito mais. Se você quiser ganhar a atenção do sul, então você precisa de pessoas do sul para ajudá-lo. Se eu quiser ir para o Sri Lanka ou para a Birmânia, então preciso de amigos desses países para me ajudar, de forma que eu possa aprender com eles e eles possam aprender comigo. Preciso respeitá-los, ser genuíno e sincero, e estar no nível deles, não usar um grande boné.

As condições nos Estados Unidos para uma espiritualidade socialmente engajada são difíceis. O consumismo, a cobiça, a solidão, a manipulação do poder político e o ódio se tornaram muito fortes. O pior de tudo é que, na maioria das vezes, as pessoas estão muito iludidas sem saber. Trabalhar conosco na Ásia pode ser útil, trabalhar por um semestre ou um ano, ajudando os tibetanos, os ladakhis, os tailandeses ou os birmaneses. Mas isso não deve ser um escapismo. Você pode trabalhar na Ásia e ver que a fonte do sofrimento talvez esteja no Primeiro Mundo. Quando você voltar para cá, depois de ter vivido com eles em comunidade e próximo da natureza, você poderá ter mais motivação para viver assim em seu próprio país.

Também pode ser útil ser exposto a uma sociedade onde é mais claro que há ilusão, onde o poder é mais claro. Na minha sociedade, por exemplo, você pode ver que os generais matam pessoas abertamente. Neste país os generais nunca matam seu povo. Eles são muito mais inteligentes, e as pessoas enganadas; as guerras são todas supostamente justas, boas para a bandeira norte-americana, para a sociedade aberta, para o Ocidente liberal, e assim por diante.

Opressão, Reconciliação e o Caminho do Meio

 

Rothberg: Embora os buddhistas engajados possam identificar os sistemas de dominação e opressão, muitas vezes eles questionam a tendência comum entre muitos esquerdistas de polarizar opressores e oprimidos; os buddhistas com mais frequência enfatizam a reconciliação. Como podemos identificar os sistemas de opressão, bem como aquelas pessoas específicas que são, em muitos aspectos, responsáveis pela opressão, sem formar uma rígida distinção entre pessoas “boas” e “más”?

Sivaraksa: Essa é a pergunta mais difícil. Esse é o ponto onde você precisa de séria prática espiritual. É fácil condenar os opressores, mas na verdade quando você condena os outros, você também condena a si mesmo. Agora mesmo no meu país, esse problema difícil é central [após as manifestações e assassinatos de centenas nas ruas de Bangkok em maio de 1992]. Sem dúvida, é muito fácil julgar e acreditar nos certos de um lado e os errados do outro. Mas aqui você tem que ter uma compreensão mais profunda que muitas vezes é difícil de explicar, do karma e da interdependência ao longo de grandes períodos de tempo e espaço. Devemos cultivar essa compreensão mais profunda, pensando também sobre a natureza dos sistemas sociais, ao invés de apenas focarmos nas pessoas.

Se você ficar apegado ao certo e errado, você se torna tão cansado e cheio de ódio que, no final, você pode até matar; em termos cristãos, você se torna Deus. Devemos desenvolver mais misericórdia e compaixão. Nesse ponto, o Ocidente pode aprender com os buddhistas. Nossa habilidade de perdoar é a nossa força. Mas, sem dúvida, você tem que praticar, você tem que ir mais fundo e se radicalizar, indo além de pensar em “olho por olho”.

-ooOoo-

 Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Joyce Rybandt e Veronica Froelich por sua ajuda na transcrição dessa conversa e a Wim Aspeslagh por seus comentários úteis sobre o manuscrito.

Notas

1. Frases explicativas dentro de colchetes foram adicionadas pelo entrevistador.

2. Johan Galtung é atualmente um cientista político e buscador da paz na Universidade do Havaí.

3. Os cinco preceitos éticos básicos em Buddhismo Theravāda incluem diretrizes para abster-se de matar, de roubar, de linguagem “falsa”, de sexualidade inadequada, e dos intoxicantes que obscurecem a mente. Cf. Saddhatissa (1987).

4. Tradicionalmente, há seis paramitas: doação ou generosidade (pāli: dāna), integridade ética (sīla), paciência (khanti), vigor (viriya), meditação (samādhi), e sabedoria (paññā).

5. Dr. B. R. Ambedkar (1891-1956), depois de um cuidadoso estudo das religiões do mundo, chegou à conclusão de que o Buddhismo era o mais adequado para atender as necessidades éticas, sociais e espirituais, tanto dos intocáveis, em particular, como do mundo contemporâneo em geral. Ele se converteu publicamente pouco antes de sua morte, e desde então cerca de vinte milhões de prévios intocáveis na Índia se converteram ao Buddhismo. Para um breve relato da vida Ambedkar, consulte Queen (1993).

6. Para trabalhos representativos desses autores, ver Dalai Lama (1984, 1990), Nhat Hanh (1987b, 1992), e Swearer (1989). Buddhadasa (1906-) pode ser o menos conhecido dessas três figuras no Ocidente, mas ele é provavelmente o monge mais conhecido na Tailândia do século XX. Ele é o fundador de uma inovadora, bem como altamente tradicional comunidade de Monastério das Florestas e é conhecido por seu questionamento da ortodoxia religiosa, o seu profundo interesse tanto na meditação como na mudança social, e seus escritos prolíficos.

REFERÊNCIAS

Dalai Lama. 1984 Kindness, clarity, and insight. Ithaca, N.Y.: Snow Lion Press*

—–. 1990 A policy of kindness. Ithaca, N.Y.: Snow Lion Press.

Ingram, C., B. Gates, e W. Nisker. 1988. Chun on Turtle Island: A conversation with Gary Snyder. Inquiring Mind 4 (Winter): I, 4.-5, 25. Available from Inquiring Mind, P*O. Box 9999, Berkeley, Calif. 94709.

Nhat Hanh, T. 1987a. Interbeing: Commentaries on the Tiep Hien precepts* Berkeley: Parallax Press*

—–. 1987b. Being peace* Berkeley: Parallax Press.

—–. 1992. Touching peace:* Practicing the art of mindful living. Berkeley: Parallax Press*

Queen. C. 1993. The great conversion: Dr. Ambedkar and the Buddhist revival in India. Tricycle: The Buddhist Review 2 (Spring): 62-67.

Sadhatissa, H. 1987. Buddhist ethics: The path to nirvana. London: Wisdom Publications.

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Donald Rothberg é parte do corpo docente do Saybrook Insititute, em São Francisco e tem escrito sobre o Buddhismo socialmente engajado, teoria social crítica, psicologia transpessoal, epistemologia e misticismo. Ele atuou no conselho administrativo do Buddhist Peace Fellowship, onde ele ajudou a desenvolver o Summer Institute sobre Buddhismo engajado.

 


Traduzido por Raryel Souza
para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
© da tradução, 2012 Edições Nalanda