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A temporada do retiro das chuvas começou. É hora de oferecer mantos aos monges por terem feito esforços especiais no sentido de ganhar um melhor entendimento sobre os valores buddhistas. Em Myanmar (Birmânia), olhamos para os membros da Sangha (a Ordem religiosa do Buddhismo) como professores que irão nos guiar ao longo do Nobre Caminho Óctuplo. Bons professores não dão meramente sermões cultos, eles nos mostram como devemos conduzir nossas vidas diárias de acordo com a compreensão apropriada, com o pensamento apropriado, com a fala apropriada, com a ação apropriada, com os meios de vida apropriados, com o esforço apropriado, com a vigilância (mindfulness) apropriada e com a concentração apropriada.
Não muito tempo atrás, antes de ter sido presa em 1989, foi concedida a mim uma audiência com o venerável U Pandita, um professor excepcional na melhor tradição dos grandes mentores espirituais cujas palavras agem constantemente como um suporte para uma melhor existência. U Pandita, o Professor Sagrado, falou sobre a importância da fala apropriada. Não apenas devemos falar a verdade, mas a fala deve indicar na direção de trazer harmonia entre os seres, ela deve ser gentil e agradável, e deve ser benéfica. Devemos seguir o exemplo do Buddha, que só dizia palavras confiáveis e benéficas, mesmo que essas palavras não fossem sempre agradáveis aos ouvidos de quem as ouvia.
O Professor Sagrado também me incentivou a cultivar a vigilância. Das cinco faculdades espirituais (fé, energia, concentração, sabedoria e vigilância), somente a vigilância nunca será demais. Fé excessiva sem sabedoria suficiente leva a uma fé cega, enquanto sabedoria excessiva sem energia suficiente leva à astúcia indesejável. Muita energia combinada a uma concentração fraca leva à indolência. Mas em relação à vigilância, nunca será em excesso. O Professor Sagrado U Pandita tentou me passar a verdade e os valores dos conceitos buddhistas, os quais, a duras penas, tornaram-se evidentes durante meus anos de prisão domiciliar. Como muitos dos meus colegas buddhistas, decidi dedicar meu tempo na detenção para o bem, praticando a meditação. Não foi um processo fácil. Eu não tinha um professor e minhas primeiras tentativas foram mais do que um pouco frustrantes. Havia dias em que o meu fracasso em tentar disciplinar a mente de acordo as práticas de meditação me deixava tão enfurecida que eu sentia que estava me fazendo mais mal do que bem. Acho que eu teria desistido se não fosse pelo conselho de um famoso professor buddhista: querendo ou não querendo praticar meditação, o praticante deve fazê-la para o seu próprio bem.
Então, eu rangi meus dentes e me mantive ali, às vezes desanimada. Então, meu marido me deu uma cópia do livro de Sayadaw U Pandita: “Nesta Própria Vida, os Ensinamentos Libertadores do Buddha”.
Estudando cuidadosamente o livro, aprendi como superar as dificuldades da meditação e a perceber seus benefícios. Aprendi como a prática da meditação levou a um aumento da vigilância na vida cotidiana, gerando um círculo virtuoso. Eu me lembro das palavras do Professor Sagrado sobre a importância da vigilância com apreço e gratidão.
Nos meus trabalhos políticos, eu venho sido ajudada e fortalecida pelos ensinamentos dos membros da Sangha. Durante minhas primeiras campanhas por Myanmar, eu recebi inestimáveis conselhos de monges em diferentes partes do país. I Prome, um professor sagrado, me disse para ter em mente o eremita Sumedha, que sacrificou a possibilidade de sua própria libertação para submeter-se a muitas vidas lutando para salvar outros do sofrimento. Então, precisamos estar preparados para lutar o quanto for necessário para alcançar o bem e a justiça, encorajou o professor sagrado.
Em um monastério em Pakokku, o conselho que um abade deu ao meu pai quando ele foi àquela mesma cidade 40 anos antes me foi repetido: “Não se assuste sempre que exista uma tentativa de te assustar, mas não fique totalmente sem medo. Não fique feliz sempre que te elogiam, mas não fique totalmente sem felicidade”.
Em outras palavras, ao manter a coragem e a humildade, não se deve abandonar a cautela e um saudável amor-próprio.
Quando visitei Natmauk, a cidade natal de meu pai, eu fui até o monastério em que ele estudou enquanto garoto.
Lá o abade me falou sobre as quatro causas do declínio e da decomposição: fracasso em recuperar aquilo que foi perdido; omissão em consertar aquilo que foi danificado; indiferença em relação à necessidade de uma economia justa e o levar à liderança aqueles sem moralidade e aprendizado. O abade continuou explicando como as visões tradicionais do Buddhismo devem ser interpretadas para nos ajudar a construir uma sociedade justa e próspera na era modera.
Das palavras de sabedoria que eu reuni nessa jornada por Myanmar, aquelas de um professor sagrado de 91 anos de idade em Sagaing são particularmente memoráveis. Ele esquematizou para mim como seria trabalhar por uma democracia em Myanmar.
“Você será atacada e insultada por se engajar em política honesta”, me disse o professor, “mas você deve perseverar. Sacrifique um investimento de sofrimento e você ganhará felicidade”.
Aung San Sun Kyi, Bangkok Post, Setembro de 1996.
para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
© da tradução, 2012 Edições Nalanda
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