~Ven. Nyanaponika Thera ~
3. Parar e Desacelerar
Mantendo-se Sereno
Para um desabrochar completo e sem impedimentos das capacidades mentais, precisamos da influência de duas forças complementares: atividade e refreamento (controle). Essa dupla necessidade foi reconhecida pelo Buddha, o grande conhecedor da mente. Ele recomenda que mantenhamos as faculdades da energia (viriy’indriya) e da concentração (samādhi’indriya) igualmente fortes e equilibradas [1]. Além disso, ele recomenda três dos sete fatores da iluminação (bojjhanga) como apropriados para estimular a mente e outros três para acalmá-la [2]. Em ambos os casos, dentre as faculdades espirituais e os fatores da iluminação, é a vigilância que não apenas cuida em manter o equilíbrio, mas que também estimula aquelas faculdades indolentes e controla aquelas que são muito intensas.
A vigilância, embora tenha uma natureza aparentemente passiva, é na verdade uma força ativa. Ela torna a mente alerta, algo indispensável para toda atividade significativa. Na presente investigação, entretanto, devemos nos ater principalmente ao poder da vigilância em controlar. Devemos examinar como ela possibilita o desenredamento e o desapego, como ela ajuda positivamente no desenvolvimento das qualidades mentais necessárias para o trabalho da libertação.
Ao praticar a pura atenção, nos mantemos parados no local mental e espacial da observação, em meio às demandas ruidosas dos mundos interno e externo. A vigilância possui a força da tranquilidade, a capacidade de adiar a ação e frear a mesma, pois ela impede interferências apressadas e suspende o julgamento enquanto nos leva a uma pausa para que observemos os fatos e reflitamos sabiamente acerca dos mesmos. Ela também produz uma saudável desaceleração na impetuosidade de nosso pensamento, fala e ação. Acalmar e parar, pausar e desacelerar – essas serão as palavras-chaves enquanto estivermos falando do efeito de refreamento ou controle da pura atenção.
Um antigo livro chinês afirma: “Ao fazer as coisas acabarem e ao fazê-las iniciar, nada há de mais glorioso do que manter-se silencioso”.
À luz dos ensinamentos do Buddha, o verdadeiro fim das coisas é Nibbāna, que é chamado de “cessação das formações” (saṅkhāranam vupasamo), ou seja, sua cessação final ou fim derradeiro. Também é chamado de “extinção” (nirodha). As coisas ou formações aqui, se referem aos fenômenos condicionados e impessoais enraizados no desejo sedento e na ignorância. O fim das formações ocorre mediante o fim do processo de formar, ou seja, mediante o fim das atividades kâmmicas criadoras do mundo. Esse é o fim do mundo e do sofrimento que o Buddha proclamou não ser encontrado andando, migrando ou transmigrando, mas que apenas pode ser achado dentro de nós mesmos. Tal fim do mundo é prenunciado a cada ato nosso de silenciar, parar ou pausar. Manter-se sereno, nesse sentido mais elevado, significa parar a acumulação de kamma, abster-se dessa preocupação sem fim que temos com coisas evanescentes, abster-se de aumentar nosso emaranhamento no saṁsāra – o ciclo de repetidos nascimentos e mortes. Ao seguir o caminho da vigilância, ao treinar a nós mesmos para nos mantermos serenos e parados numa atitude de pura atenção, nos recusamos a aceitar o persistente desafio do mundo para com nossas disposições de cobiça ou ódio. Protegemo-nos contra julgamentos apressados e iludidos; paramos de mergulhar cegamente no redemoinho da ação que interfere com todos os seus inerentes perigos.
Aquele que se abstém de interferir, está seguro em todo lugar. Sutta-nipāta, v. 953
Aquele que sabe manter-se sereno
e onde parar não encontrará perigos. Tao Te Ching, capítulo 44.
O dito chinês citado anteriormente afirma em sua segunda parte que não há nada mais glorioso em fazer as coisas iniciarem do que manter-se parado ou sereno. Explicado em termos buddhistas, essas coisas que efetivamente se iniciam por manter-se sereno são “as coisas (ou qualidades) responsáveis pelo decréscimo da acumulação kâmmica”. Ao lidar com elas, devemos seguir a divisão tradicional do cultivo ou treinamento mental, a saber, moralidade (conduta), concentração (tranquilidade) e sabedoria (insight). Todas recebem ajuda decisiva da atitude de serenidade cultivada pela pura atenção.
1. Conduta: como podemos melhorar nossa conduta, sua qualidade moral e habilidade de tomar decisões acertadas? Caso desejemos sinceramente tal aprimoramento, será geralmente mais sábio de nossa parte escolher a linha de menos resistência. Caso escolhamos nos voltar precipitadamente contra aquelas falhas profundamente enraizadas em velhos hábitos ou em poderosos impulsos, podemos sofrer derrotas desanimadoras. Devemos primeiro prestar atenção naquilo do que somos culpados devido à ação e fala, bem como a nossos erros de julgamentos causados pela nossa negligência e descuido. Desses, existem muitos. Em nossas vidas existem numerosos exemplos nos quais um curto momento de reflexão teria prevenido um passo em falso, e dessa maneira prevenido uma longa cadeia de miséria ou culpa moral iniciadas com um único momento de negligência. Mas como podemos conter nossas reações apressadas, substituindo-as por momentos de vigilância e reflexão? Fazer isso depende de nossa capacidade de parar e pausar, de aplicar breques ou freios no momento certo. Podemos aprender isso mediante a prática da pura atenção. Nessa prática devemos treinar a nós mesmos para “olhar e esperar”, suspender reações ou retardá-las. Devemos aprender primeiro do modo mais fácil, em situações de nossa própria escolha, dentro do campo limitado das experiências que encontramos durante períodos de prática meditativa. Quando nos deparamos repetidamente com as impressões dos sentidos, sensações ou pensamentos dispersivos que interrompem a concentração; quando conseguimos repetidamente nos manter calmos diante deles – estaremos nos preparando para preservar essa calma interna no campo amplo e desprotegido da experiência cotidiana. Devemos ter adquirido uma presença de mente que nos habilite a parar e pausar, mesmo quando pegos de surpresa ou subitamente tentados ou provocados.
Essas observações se referem àquelas máculas de conduta capazes de surgir devido à negligência e precipitação, mas que podem ser mais ou menos contidos através da vigilância. A destreza desenvolvida ao lidar com elas irá também afetar aqueles desvios mais obstinados da conduta moral enraizados em fortes impulsos passionais ou em maus hábitos profundamente arraigados. A tranquilidade ampliada da mente, alcançada devido a prática de manter-se calmo para a pura atenção irá controlar a impetuosidade das paixões. O hábito adquirido de parar e pausar atuará como um freio para os hábitos arraigados de permitir ações prejudiciais.
Na medida em que nos tornamos capazes de manter a calma para a pura atenção ou pausamos para a reflexão sábia, é comum que a primeira tentação de luxúria, a primeira onda de raiva, as primeiras névoas de ilusão desapareçam sem causar grande enredamento ou confusão. Em que ponto a correnteza do processo de pensamento prejudicial para vai depender da qualidade da vigilância, se a série de pensamentos ou ações impuros é interrompida antes que nos carreguem para muito longe. Desse modo, as respectivas impurezas não irão além de sua força inicial, menos esforço será requerido para que elas parem e poucos ou nenhuns emaranhados kâmmicos se seguirão.
Vamos tomar, como exemplo, um objeto visual agradável que despertou nosso afeto. Inicialmente tal afeto pode não ser muito ativo e insistente. Se nesse ponto a mente já é capaz de se manter calma para uma observação ou reflexão desapegada, a percepção visual pode facilmente ser despida da presente, embora sutil, mistura de luxúria ou de cobiça. Registra-se o objeto como “apenas algo visto que causou uma sensação prazerosa”, ou a atração sentida torna-se sublimada num calmo prazer estético. Mas se essa primeira chance é perdida, o afeto irá crescer na forma de apego e desejo de posse. Se nesse momento conseguimos parar, o pensamento do desejo pode gradualmente perder sua força; não irá facilmente transformar-se num desejo sedento insistente e nenhuma tentativa efetiva de tomar posse do objeto desejado se seguirá. Mas, se o fluxo de luxúria ou cobiça não for parado, então o pensamento do desejo pode se expressar através da fala na forma de um pedido pelo objeto ou mesmo uma exigência com palavras impetuosas. Ou seja, kamma mental prejudicial é seguido por kamma verbal prejudicial. Se ocorrer uma recusa quanto aos pedidos, o fluxo original de cobiça irá se subdividir em várias correntezas adicionais de impurezas mentais, na forma ou de tristeza ou de raiva. Mas, mesmo nesse momento, é possível parar para uma reflexão calma ou pura atenção, aceitar a recusa e renunciar a realização do desejo, de modo que complicações futuras serão evitadas. Entretanto, se palavras clamorosas são seguidas por kamma corporal prejudicial, e se, guiado pelo desejo tenta-se tomar posse do objeto desejado mediante a força ou pelo furto, então o emaranhado kâmmico está completo e as consequências devem ser experimentadas de modo completo. Mas, se depois de feito o mal, a pessoa para e reflete, isso não é em vão. A vigilância que surge sob a forma de uma visão retrospectiva de remorso ou arrependimento irá impedir um endurecimento do caráter e pode evitar a repetição da mesma ação.
O Bem-Aventurado disse uma vez para seu filho, Rahula (Majjhima Nikaya 61):
Qualquer ação que você pretenda executar, pelo corpo, fala ou mente, você deve considerar tal ação… se, ao considerá-la você percebe: “Esta ação que eu pretendo executar será nociva para mim mesmo, ou nociva para outros ou para ambos; tal será uma ação prejudicial, que produz sofrimento, resulta em sofrimento” – desse modo certamente você não executará tal ação.
Também enquanto estiver executando uma ação, pelo corpo, fala ou mente, deve considerar tal ação… se, ao considerá-la, você percebe: “Esta ação que estou executando é nociva para mim, para outros ou para ambos; é uma ação prejudicial, que produz sofrimento, resulta em sofrimento” – então você deve desistir de tal ação.
Também, após ter executado uma ação, pelo corpo, fala ou mente, você deve considerar tal ação… se, ao considerá-la, percebe: “Esta ação que eu executei foi nociva para mim, para os outros ou para ambos; foi uma ação prejudicial, produtora de sofrimento, que resulta em sofrimento” – então, no futuro você deve abster-se de tal ação.
2.Tranquilidade: Vamos considerar agora como o parar fundado na pura atenção também pode ajudar a alcançar e fortalecer a tranquilidade (samatha) em seu sentido duplo: paz em geral da mente e concentração meditativa.
Mediante o desenvolvimento do hábito de pausar em função da pura atenção, torna-se cada vez mais fácil mergulhar em sua própria quietude, mesmo quando não for possível escapar fisicamente dos barulhos altos e insistentes do mundo externo. Será mais fácil evitar reações inúteis às falas e ações dos outros. Quando os ventos do destino forem particularmente duros e inclementes, uma mente treinada na pura atenção encontrará um refúgio na clareira da passividade aparente ou não-ação vigilante, posições a partir das quais ela será capaz de esperar pacientemente até que as tempestades tenham passado. Existem situações na vida nas quais é melhor permitir que as coisas cheguem ao seu fim natural. Aquele que for capaz de manter-se quieto e esperar, comumente será bem sucedido onde agressividade ou atividade excessiva tenham sido subjugadas. Não apenas em situações críticas, mas também no curso normal da vida, a experiência adquirida mediante observação e manutenção da calma nos convencerá que não precisamos responder ativamente a cada impressão que recebemos, ou considerar cada encontro com pessoas ou coisas como um desafio para nossa atividade de interferir.
Ao controlar nossa ocupação desnecessária com as coisas, as fricções externas serão reduzidas e as tensões internas que elas trazem irão ceder. Grande paz e harmonia pervadirão a vida do dia a dia, preenchendo o espaço entre a vida normal e a tranquilidade da meditação. Então teremos menos daquelas reverberações internas perturbadoras resultantes de nossas agitações diárias que, de forma grosseira ou sutil, invadem as horas de meditação, produzindo agitação física e mental. Consequentemente, o obstáculo da agitação, um dos grandes obstáculos à concentração, irá aparecer de modo menos frequente e será facilmente superado quando surgir.
Mediante o cultivo de uma atitude de pura atenção tão frequente quanto possível, as forças centrífugas da mente, responsáveis por sua distração, irão se exaurir; a tendência centrípeta, de voltar a mente para dentro e produzir concentração, ganhará força. O desejo sedento não mais irá correr livre em busca de uma variedade enorme de objetos mutáveis.
A prática regular de atenção sustentada a uma série contínua de eventos prepara a mente para a concentração sustentada num único objeto, ou número limitado de objetos, na prática estrita da meditação. Firmeza ou estabilidade mental, outro importante fator para a concentração, será igualmente cultivado.
Deste modo, a prática de manter-se calmo, pausar e parar devido à pura atenção, alimenta vários componentes proeminentes da tranquilidade meditativa: calma, concentração, firmeza e redução da multiplicidade de objetos. Tal prática eleva o nível médio da consciência normal e aproxima essa do nível da mente meditativa. Esse ponto é importante, pois frequentemente um abismo muito grande entre esses níveis mentais frustra de forma repetida tentativas de concentração mental e retarda a realização de uma suave continuidade na prática meditativa.
Na sequência dos sete fatores da iluminação, percebemos que o fator da iluminação da tranquilidade (passaddhi sambojjhanga) precede o da concentração (samādhi-sambojjhanga). Expressando o mesmo fato, o Buddha diz: “Se tranquilizada internamente, a mente irá se tornar concentrada”. Agora, à luz do que dissemos antes, devemos entender melhor tais afirmações.
3. Insight: Foi dito pelo Exaltado: “Aquele cuja mente é concentrada vê as coisas como elas na verdade são”. Portanto, todos os modos pelos quais a pura atenção fortalece a concentração também oferecem condições para o desenvolvimento do insight. Mas há também um auxílio mais direto e específico que o insight recebe das práticas da pura atenção em manter-se calmo.
Geralmente, estamos mais interessados em manusear e usar as coisas do que as conhecer em sua verdadeira natureza. Assim nos agarramos apressadamente aos primeiros poucos sinais oferecidos pela percepção. Então, através de hábitos profundamente arraigados, aqueles sinais evocam uma resposta padronizada mediante julgamentos como: bom-ruim, prazeroso-desprazeroso, benéfico-danoso, certo-errado. Esses julgamentos, pelos quais definimos os objetos em relação a nós mesmos, conduzem a reações correspondentes mediante palavras ou ações. Raramente a atenção recai sobre um objeto familiar ou comum por um tempo maior do que o necessário para receber os poucos primeiros sinais. Então, de modo geral, percebemos as coisas de modo fragmentário e consequentemente os concebemos erroneamente. Além disso, apenas a fase mais inicial da vida do objeto, ou pouco mais, torna-se foco de nossa atenção. Podemos mesmo não estar conscientes de que um objeto é um processo com uma extensão temporal – um começo e um fim; que ele tem muitos aspectos e relações além daquelas casualmente percebidas numa situação limitada; que, em resumo, ele tem um tipo de individualidade evanescente que lhe é própria. Um mundo percebido dessa maneira superficial consistirá de pequenos amontoados sem forma de experiências marcadas por poucos sinais ou símbolos subjetivamente selecionados. Os símbolos escolhidos são determinados principalmente pelo interesse individual; às vezes mesmo mal empregados. A “sombra” de mundo que resulta disso tudo inclui não apenas ambientes externos e outras pessoas, mas também boa parte de nossos processos físicos e mentais. Esses, também, são submetidos à mesma maneira superficial de conceituação. O Buddha aponta quatro concepções errôneas básicas que resultam de percepções distorcidas e da atenção sem método: considerar o impuro como puro, o impermanente como permanente, o doloroso e o que traz dor como sendo prazeroso, e o impessoal como sendo um eu ou algo pertencente a um eu. Quando o selo da autorreferência é assim estampado de novo e de novo no mundo da experiência diária, a concepção errônea básica “isto me pertence” (attaniya) irá enraizar-se prontamente em todos os fatores físicos e mentais de nosso ser. Como os capilares de uma planta, serão finos, mas firmes e espalhados – numa tal extensão que, de fato, as noções de “Eu” e “Meu” dificilmente serão sacudidas por meras convicções intelectuais sobre a não existência de um eu (anatta).
Tais consequências graves emergem daquela situação fundamentalmente perceptual: nosso ímpeto em reagir de modo apressado após receber poucos sinais de nossas percepções. Mas se ajuntarmos as tropas do controle, da vigilância e da pausa para cultivar a pura atenção, os processos mentais e materiais que formam os objetos da mente num dado momento irão se revelar para nós de modo mais completo e verdadeiro. Não mais arrastados pelo redemoinho da autorreferência, desdobrando-se completamente diante do olhar atento da vigilância, eles exibirão toda diversidade de seus aspectos e sua ampla rede de correlações e interconexões. A conexão com o interesse próprio, tão estreita e frequentemente enganadora, irá recuar para o segundo plano, encolhida pela visão ampla agora adquirida. Os processos observados exibem, em sua sucessão e em suas partes componentes um constante nascer e morrer, surgir e perecer. Portanto, os fatos da mudança e da impermanência são impressos na mente com intensidade crescente. O mesmo discernimento do surgir e perecer dissolve a falsa concepção de unidade criada sob influência de nossa atitude egocêntrica. A autorreferência acriticamente se sobrepõe à diversidade; agrupa coisas sob o preconceito de ser um eu ou pertencer a um eu. Mas a pura atenção revela a impostura dessas unidades mostrando como elas são na verdade impessoais e fenômenos condicionados. Assim, encarando regularmente a natureza impessoal, evanescente e dependente dos processos vitais internos e externos, descobriremos sua monotonia e natureza insatisfatória: em outras palavras, a verdade do sofrimento. Desse modo, usando o mecanismo simples de desacelerar, pausar e manter-se calmo no cultivo da pura atenção, as três características da existência – impermanência, sofrimento e não-eu – se abrirão para o insight penetrante (vipassana).
[1] Conferir O Caminho da Purificação, pgs. 135 f.
[2] Idem, pgs. 136 ff. Os três estimulantes são: investigação, energia e arrebatamento; os que acalmam são: tranquilidade, concentração e equanimidade.
Espontaneidade
Um hábito fortalecido ou adquirido de pausar vigilantemente antes de agir não exclui uma espontaneidade saudável na resposta. Ao contrario, mediante o treinamento, a prática de pausar, parar e manter-se calmo para cultivar a atenção pura irá ser tornar espontânea. Isso se converterá num mecanismo seletivo da mente que, com crescente confiança e rapidez de resposta, pode evitar o surgimento de impulsos maléficos ou não sábios. Desprovidos de tal habilidade, podemos perceber tais impulsos como prejudiciais, mas ainda assim sucumbiremos a eles devido a sua própria espontaneidade. A prática de pausar vigilantemente serve, portanto, para substituir a espontaneidade e hábitos prejudiciais pelas suas contrapartes saudáveis fundadas em nosso melhor conhecimento e intenções nobres.
Do mesmo modo que certos movimentos reflexos automaticamente protegem o corpo, a mente também precisa de autoproteção espontânea tanto espiritual quanto moral. A prática da atenção pura cumpre esse papel fundamental. Uma pessoa de pensamentos morais dentro dos padrões comuns instintivamente afasta-se de pensamentos de roubo ou assassinato. Com a ajuda do método da atenção simples, o espectro de tais freios morais espontâneos pode se estender vastamente e a sensibilidade ética será grandemente elevada.
Em uma mente destreinada, pensamentos corretos e tendências nobres são frequentemente acossados por súbitas erupções de paixões e preconceitos. Eles sucumbem ou resistem com dificuldade e após grande luta interior. Mas, caso a espontaneidade do prejudicial for monitorada ou grandemente reduzida, como descrito acima, nossos bons impulsos e reflexões sábias terão maior espaço para emergir e se expressar de modo livre e espontâneo. Seu fluxo natural nos dará grande confiança no poder do bem dentro de nós; também irá transmitir mais convicção para os outros. Tal espontaneidade da boa vontade não será errática, pois terá grandes e firmes raízes num treinamento metódico prévio. Temos aqui um caminho por meio do qual um bom pensamento premeditado (sasankharika-kusala) pode se converter num bom pensamento espontâneo (asankharikakusala-citta). De acordo com a psicologia do Abhidhamma, tal pensamento, se combinado com conhecimento, assume o primeiro lugar na escala dos valores éticos. Desse modo, devemos adquirir uma compreensão prática da frase presente no livro O Segredo da Flor Dourada [1]: “Se uma pessoa alcança intencionalmente um estado não-intencional tal pessoa tem compreensão”. Tal sentença nos convida a uma paráfrase em pāli: Sasankharena asankharikam pattabbam, “por esforços intencionais premeditados a espontaneidade pode ser conquistada”.
[1] Tratado chinês de Taoismo, fortemente influenciado pelo Mahāyāna.
Se os numerosos auxílios para o crescimento mental e libertação encontrados nos ensinamentos do Buddha forem utilizados sabiamente, de fato não há nada que possa se opor ao método de Satipaṭṭhāna; e tal método começa com a prática simples de aprender a pausar e parar para cultivar a pura atenção.
Desacelerando
Contra a impetuosidade, precipitação e negligência da mente sem treinamento, a prática de pausar e parar dá inicio a um processo de desaceleração. As demandas da vida moderna, entretanto, tornam tal desaceleração das funções rotineiras da vida de trabalho algo impraticável. Um antídoto para as consequências danosas da velocidade febril da vida moderna é o cultivo dessa prática em nossas horas livres, especialmente em períodos de pratica estrita de Satipaṭṭhāna. Tal prática irá também nos dotar dos benefícios mundanos como calma, eficiência e mais habilidade na rotina diária de trabalho.
Para o propósito de desenvolvimento meditativo, desacelerar serve como um treinamento efetivo em atenção, controle sensório e concentração. Mas a despeito disso, há um significado mais específico para a prática meditativa. No comentário ao Satipaṭṭhāna Sutta se diz que o desacelerar dos movimentos pode ajudar a recuperar a concentração perdida em um objeto escolhido. Um monge, assim lemos, havia dobrado seu braço rapidamente, sem manter a lembrança de seu objeto de meditação, como manda a regra de prática. Ao tomar consciência de sua omissão, ele pôs o braço na posição anterior e repetiu o movimento de modo vigilante. O objeto de meditação aqui referido, provavelmente é a “compreensão clara da ação”, como mencionado no Satipaṭṭhāna Sutta: “Ao dobrar e estender ele age com compreensão clara”.
A desaceleração de certos movimentos do corpo durante treinamento estrito de meditação é particularmente útil para que se adquira conhecimento de insight (vipassana-nana), especialmente a consciência direta da mudança e do não-eu. Em grande medida é a rapidez do movimento que fortalece a ilusão de unidade, identidade e substancialidade com relação aquilo que é de fato um complexo de processos evanescentes. Portanto, na prática estrita de Satipaṭṭhāna, o desacelerar de ações como caminhar, dobrar e estender os membros de modo a discernir as várias fases de cada movimento fornece um auxílio poderoso para o insight direto das três características de todos os fenômenos. A contemplação do meditante irá ganhar força e significado crescentes caso ele note claramente cada fase do processo à medida que ela surge e perece por si mesma, sem que nada persista ou “transmigre” para a fase seguinte.
Sob a influência da pausa na atenção pura, o ritmo médio de nossas ações, falas e pensamentos diários vai se tornar mais calmo e pacífico. Desacelerar o ritmo agitado da vida significa que pensamentos, sensações e percepções serão capazes de completar toda extensão de seu tempo de vida natural. A consciência completa irá se estender até sua fase final: suas últimas vibrações e reverberações. Muito frequentemente essa última fase é abreviada por nossa busca impaciente por novas impressões, ou por corrermos para o próximo estágio de uma linha de pensamento antes que a anterior seja claramente compreendida. Essa é uma das razões principais para o estado desordenado da mente comum, sobrecarregada por um vasto volume de percepções fragmentárias ou indistintas, emoções atrofiadas e ideias não digeridas. Desacelerar se mostrará um mecanismo efetivo para recuperar a completude e claridade da consciência. Um símile adequado e ao mesmo tempo um exemplo efetivo, é o procedimento exigido para a prática da vigilância por meio da respiração (anapanasati): a vigilância deve cobrir toda extensão da respiração, seu começo, meio e fim. É isto que quer dizer a passagem seguinte do sutta: “Experimentando todo o corpo (da respiração), eu devo inspirar e expirar”. De modo similar a “respiração” completa ou ritmo de nossas vidas irá se tornar mais profundo e completo caso, mediante a desaceleração, nos habituarmos à atenção sustentada.
O hábito de pular etapas prematuramente no processo de pensamento ou desconsiderá-las, assumiu sérias proporções no homem de nossa moderna civilização urbana. Incansavelmente ele clama por novos estímulos em crescente e rápida sucessão assim como demanda velocidade sempre maior de seus meios de locomoção. Esse rápido bombardeio de impressões gradualmente cegou sua sensibilidade e, assim, ele sempre precisa de novos estímulos, mais barulhentos e grosseiros e mais variados. Caso tal processo não seja observado, só pode terminar em desastre. Já percebemos em larga escala um declínio de refinada sensibilidade estética e uma crescente incapacidade para alegria natural e genuína. O lugar de ambas foi ocupado por uma excitação de curta duração e veloz, incapaz de oferecer verdadeira satisfação estética e emocional. “Fôlego mental superficial” é em grande medida o responsável pela crescente superficialidade do “homem civilizado” e pelo assustador crescimento das doenças nervosas no Ocidente. Isso pode muito bem ser o começo de uma deterioração geral da consciência humana em seu nível qualitativo, alcance e força. Esse perigo ameaça a todos aqueles que, tanto no Oriente quanto no Ocidente, não possuem a devida proteção espiritual contra o impacto da civilização técnica. Satipaṭṭhāna pode ser de grande ajuda para remediar as situações brevemente indicadas aqui. Dessa forma este método também oferece benefícios de um ponto de vista mundano.
Aqui, entretanto, estamos interessados primariamente nos aspectos psicológicos da vigilância e seu significado para o desenvolvimento meditativo. Atenção sustentada, auxiliada pelo desacelerar, irá afetar a qualidade da consciência de três modos principais: (a) intensificação da consciência; (b) esclarecendo os traços característicos dos objetos; (c) revelando as relações entre os objetos.
(a) Um objeto de atenção sustentada exercerá um impacto particularmente forte e de longa duração na mente. Sua influência será sentida não somente ao longo da série de pensamentos que seguem imediatamente a percepção particular, mas pode também se estender para longe no futuro. É esta eficácia causal o medidor da intensidade da consciência.
(b) A atenção sustentada conduz a uma imagem completa do objeto em todos os seus aspectos. Geralmente, a primeira impressão que temos de uma ideia ou objeto dos sentidos será seu traço mais marcante; aquele aspecto do objeto que captura nossa atenção até o ponto culminante do impacto. Mas o objeto exibe também outras características ou aspectos, e é capaz de exercer outras funções além daquelas previamente observadas. Essas podem ser menos óbvias para nós ou subjetivamente menos interessantes; mas ainda assim podem ser mais importantes. Podem ocorrer casos nos quais nossa primeira impressão é completamente enganadora. Somente se mantivermos nossa atenção para além do primeiro impacto do objeto em nossos sentidos, ele se revelará de modo mais claro. À medida que o impacto da primeira impressão diminui, a força do primeiro impacto reduz; somente aí, nesta fase final, o objeto oferece detalhes mais amplos, uma imagem mais completa de si mesmo. Portanto, somente mediante a atenção sustentada que podemos obter um entendimento mais claro dos traços característicos de um objeto qualquer.
(c) Entre os traços característicos de qualquer objeto, seja físico ou mental, há um grupo que sempre ignoramos devido a atenção apressada ou superficial e que, portanto, precisa ser tratado separadamente. Trata-se do aspecto relacional do objeto. Tal aspecto se estende em direção ao passado – para sua origem, causas, razões e precedentes lógicos; também se estende externamente, de modo a abarcar todo o contexto – seu pano de fundo, ambiente e influências ativas presentes. Nunca poderemos entender completamente as coisas se as percebemos num isolamento artificial. Temos de vê-los como parte de uma estrutura mais ampla, em sua natureza condicionada e condicionante; e isto só pode ser feito com o auxílio da atenção sustentada.
Influências Subliminares
Os três modos de aumentar a consciência descritos logo acima são de importância fundamental para o desenvolvimento do insight. Quando a consciência é intensificada e seu campo objetivo clareado e percebido em sua estrutura relacional, o solo está preparado para “ver as coisas de acordo com a realidade”. Mas além dessa influência direta evidente, esse processo triplo tem também uma influência indireta, não menos poderosa e importante: ele fortalece e aguça as faculdades subliminares da mente de organização subconsciente, memória e intuição. Essas, por seu turno, alimentam e consolidam o progresso do insight libertador. O insight, auxiliado por elas, é como o lago na montanha do símile canônico: não é alimentado apenas pelas chuvas que vem de fora, mas também pelas fontes que jorram de suas próprias profundezas. O insight nutrido por tais recursos subliminares “subterrâneos” da mente terá raízes profundas. Os resultados meditativos que ele traz não se perdem facilmente, mesmo com pessoas comuns não liberadas ainda sujeitas a recaídas.
1. Percepções ou pensamentos que são objetos de atenção sustentada produzem um impacto mais forte na mente e revelam seus traços característicos de modo mais distinto do que quando a atenção é fraca. Assim, quando eles mergulham no inconsciente, ocupam lá posição especial. Isto é verdade para todos os três modos de melhorar a consciência de um objeto.
(a) Em um processo de consciência, se a atenção é tão forte na fase final quanto nas fases anteriores, quando o processo termina e a mente retorna para a subconsciência, a última fase será mais acessível ao controle consciente.
(b) Se uma impressão ou ideia é marcada por várias características distintivas, quando ela desaparece da consciência imediata, não se perderá facilmente nos conteúdos vagos do subconsciente, nem será arrastada por preconceitos apaixonados rumo a falsas associações subconscientes.
(c) A compreensão correta do aspecto relacional do objeto de modo similar também protegerá a experiência de ser mesclada com material indistinto do subconsciente. Percepções ou pensamentos de ampliadas intensidade e clareza, absorvidas no subconsciente, permanecem mais articulados e acessíveis do que conteúdos originados de impressões obscuras e nebulosas. Será mais fácil convertê-las à completa consciência e elas serão menos inexplicáveis em seus efeitos ocultos sobre a mente. Se, mediante um melhoramento na qualidade e espectro da vigilância, o número de tais impressões maduras aumenta, o resultado pode ser uma sutil mudança na estrutura do próprio subconsciente.
2. Pelo que dissemos até agora, é evidente que tais impressões, que chamamos de “maduras” ou “mais acessíveis e convertíveis”, prestam-se de modo mais fácil e correto à recordação – mais facilmente devido a sua maior intensidade, mais corretamente devido a seus traços claramente marcados, que as protegem das distorções produzidas por falsas associações com imagens e ideias.
Relembrar tais impressões em seu contexto relacional trabalha em duas frentes – promove tanto uma rememoração mais fácil como mais correta. Dessa forma, sati, em seu sentido e função de vigilância, ajuda a fortalecer sati, em seu sentido e função de memória.
3. A influência da atenção sustentada no subconsciente e na memória produz um aprofundamento e fortalecimento da faculdade da intuição, particularmente o insight intuitivo que nos interessa aqui. Intuição não é um presente do desconhecido. Como qualquer outra faculdade mental, ela surge a partir de condições específicas. Neste caso, as condições primárias são memórias latentes de percepções e pensamentos armazenados no subconsciente. Obviamente, as memórias que fornecem solo fértil para o crescimento da intuição serão aquelas marcadas por maior intensidade, clareza e profusão de marcas características, uma vez que essas são as mais acessíveis. Aqui também, a conexão preservada das impressões contribuirá muito. Recordações desse tipo terão um caráter mais orgânico do que memórias de fatos simples ou isolados, e se enquadrarão mais facilmente em padrões de sentido e significação. Essas imagens mais articuladas da memória serão um forte estímulo e auxílio para a faculdade intuitiva. Silenciosamente, nas profundezas ocultas da mente subliminar, o trabalho de coletar e organizar o material subconsciente de nosso conhecimento e experiência prossegue até que esteja maduro para emergir como intuição. O aparecimento de tal intuição é, por vezes, ocasionado por eventos bastante comuns. Entretanto, embora aparentemente comuns, esses eventos podem ter um poder evocativo forte se previamente foram tornados objetos de atenção sustentada. Desacelerar e pausar para cultivar a simples atenção irá revelar a dimensão profunda das coisas simples do dia a dia e, assim, produzir estímulos para a faculdade intuitiva. Isso também se aplica à penetração intuitiva das Quatro Nobres Verdades que culmina na libertação (arahatta). As escrituras registram muitos casos de monges que não conseguiam atingir a intuição penetrante quando engajados na prática efetiva da meditação do insight. O lampejo de intuição os atingia em ocasiões bem diferentes: ao tropeçar em uma pedra ou ao ver uma floresta em chamas, uma miragem ou um amontoado de espuma em um rio. Encontramos aqui outra confirmação daquele dito aparentemente paradoxal segundo o qual “intencionalmente um estado não-intencional pode ser adquirido”. Mediante o voltar deliberado de toda a luz da vigilância para os menores eventos e ações do dia a dia, a sabedoria libertadora eventualmente pode surgir.
A atenção sustentada não apenas fornece o solo adequado para o crescimento da intuição, ela também torna possível uma completa utilização e mesmo repetição do movimento intuitivo. Homens de inspiração em vários campos de atividade criativa sempre lamentaram sua experiência comum; o relâmpago da intuição atinge tão subitamente e se esvanece tão rapidamente que a resposta lenta da mente capta tão somente vislumbres da mesma. Mas se a mente foi treinada no pausar vigilante, no desacelerar e na atenção sustentada, e se – como indicado acima – o subconsciente é também influenciado, então o momento intuitivo pode desenvolver um ritmo mais completo, forte e lento. Sendo esse o caso, seu impacto será forte e claro o bastante para permitir um uso completo daquele lampejo de insight intuitivo. Pode ser possível inclusive elevar suas vibrações finais a uma nova culminância, similar à repetição rítmica de uma melodia elevando-se mais uma vez num desenvolvimento harmonioso a partir das últimas notas de sua primeira aparição.
A completa utilização de um momento de insight intuitivo pode ser de importância decisiva para o progresso de uma pessoa rumo à completa realização. Caso a força mental da pessoa seja fraca de modo que ela permita que tais momentos esquivos de insight intuitivo se percam sem que sejam completamente utilizados para o trabalho da libertação, eles podem não ocorrer de novo a não ser depois de vários anos, ou mesmo nunca mais na presente existência. A habilidade da atenção sustentada, entretanto, permitirá um uso completo de tais oportunidades, e desacelerar e pausar durante a meditação é um importante auxílio para que se adquira tal habilidade.
Mediante nosso tratamento do pausar, parar e desacelerar, uma das definições tradicionais da vigilância encontrada nas escrituras em pāli tornou-se mais inteligível em suas implicações mais remotas, quais sejam, sua função de anapilapanata, literalmente significando “não se dispersar (ou não escapulir)”. “Como potes feitos de abóbora na superfície da água”, dizem os comentadores, e seguem: “A vigilância penetra profundamente no seu objeto, ao invés de percorrer apressadamente sua superfície”. Portanto, “não-superficialidade” seria uma tradução apropriada do termo pāli mencionado acima, e uma caracterização apropriada para a vigilância.
Traduzido por Derley Menezes Alves
para o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda
em acordo com os detentores do copyright
© da tradução, 2006 Edições Nalanda
Nota: “O Poder da Vigilância” é uma investigação acerca do objetivo da atenção pura e das principais fontes de sua força. Ele consiste de um ensaio a respeito de um dos conceitos fundamentais na prática da meditação buddhista, escrito pelo venerável Nyanaponika Thera, um dos primeitos monges ocidentais da era contemporânea
* Se você tem ‘habilidades linguísticas’ e gostaria de traduzir e dispor suas traduções em nossa sala de estudos para que mais pessoas possam ter acesso aos ensinamentos do Dhamma, nós o/a convidamos para entrar em contato conosco. Precisamos de tradutores do espanhol, inglês, alemão e outras línguas.
Grato pelo trabalho, Derley. Gasshô
Comments are closed.