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[1] Alguns de nós começamos a praticar e, mesmo depois de um ou dois anos, ainda não sabemos o que é o quê. Ainda estamos pouco à vontade com a prática. Como estamos pouco à vontade, nós não vemos que tudo à nossa volta é puro Dhamma, e então nós no viramos para os ensinamentos dos Ajahns. Mas na realidade, quando conhecemos a nossa própria mente, quando existe sati (vigilância) para olhar de perto a mente, existe sabedoria. Todos os momentos e todos os locais se tornam ocasiões para nós ouvirmos o Dhamma.
Podemos aprender o Dhamma a partir da natureza, das árvores por exemplo. Uma árvore nasce devido a causas, e cresce seguindo um curso natural. Ao nosso redor uma árvore está a nos ensinar o Dhamma, mas nós não entendemos isso. No devido tempo, ela cresce e cresce até que floresce e frutas vão aparecer. Tudo o que vemos é a aparência das flores e frutas; somos incapazes de trazer isso para dentro de nós e apreciá-lo. Assim, não sabemos que uma árvore nos está a ensinar o Dhamma. A fruta aparece e nós limitamo-nos a comê-la sem investigar: doce, azeda ou salgada, é a natureza da fruta. E isso é o Dhamma: o ensinamento da fruta. Em seguida, as folhas envelhecem. Elas murcham, morrem e caem da árvore. Tudo o que vemos é que as folhas caíram. Pisamos nelas, varremo-las, e é tudo. Não investigamos profundamente e assim não sabemos o que a natureza nos está a ensinar. Mais tarde novas folhas vão surgir e apenas vemos isso sem tirar conclusões. Não trazemos essas coisas para a nossa mente de forma a contemplá-las.
Se pudermos trazer tudo isso para dentro e investigá-lo, vamos ver que o nascimento de uma árvore e nosso próprio nascimento não são diferentes. Este nosso corpo nasce e existe dependendo de condições, depende dos elementos terra, água, vento e fogo. Tem a sua comida, ele cresce e cresce. Cada parte do corpo muda e flui de acordo com sua natureza. Não é diferente da árvore; cabelos, unhas, dentes e pele – tudo muda. Se conhecermos as coisas da natureza, então vamos nos conhecer.
As pessoas nascem. No fim, morrem. Tendo morrido, nascem outra vez. As unhas, dentes e pele estão constantemente morrendo e crescendo de novo. Se compreendermos a prática, então, vemos que uma árvore não é diferente de nós. Se compreendermos os ensinamentos dos Ajahns, então, verificamos que o exterior e o interior são comparáveis. As coisas que têm consciência e aquelas que não têm não são diferentes. São a mesma coisa. E se compreendermos essa similaridade, então, quando vemos a natureza de uma árvore, por exemplo, saberemos que não difere dos nossos próprios cinco ‘khandhas’ [2] – corpo, sensações mentais, memória, pensamento e consciência. Se tivermos essa compreensão, então compreenderemos o Dhamma. Se compreendemos o Dhamma, então compreendemos os cinco ‘khandhas’, como eles constantemente trocam e mudam, nunca parando.
Por isso seja de pé, a andar, sentados ou deitados devemos ter sempre sati para observar e cuidar da mente. Quando vemos as coisas exteriores é como se víssemos as interiores. Quando vemos as interiores é como se víssemos as exteriores. Se compreendermos isso, então conseguiremos ouvir os ensinamentos do Buddha. Se compreendermos isto, então poderemos dizer que a natureza de Buddha, ‘aquele que sabe’ se estabeleceu. Ela conhece o exterior. Conhece o interior. Compreende todas as coisas que surgem.
Compreendendo dessa forma, depois escutamos os ensinamentos do Buddha sentados ao pé de uma árvore. Sentados, levantados, andando ou deitados, ouvimos o ensinamento de Buddha. Enxergando, ouvindo, cheirando, saboreando, tocando e pensando, ouvimos o ensinamento de Buddha. O Buddha é exatamente este ‘conhecedor’ interior a esta mesma mente. Conhece o Dhamma, investiga o Dhamma. Não é aquele Buddha que viveu a tanto tempo atrás que vem falar conosco, mas a natureza búddhica – surge o ‘conhecedor’. A mente torna-se iluminada.
Se estabelecermos o Buddha em nossa mente, então veremos tudo, contemplaremos todas as coisas, como não diferentes de nós mesmos. Nós vemos os diferentes animais, árvores, montanhas e videiras como não distintas de nós mesmos. Vemos pessoas pobres e ricas – elas não são diferentes de nós. Negros e brancos – nenhuma diferença! Todas elas têm as mesmas características. Alguém que entenda as coisas assim estará contente onde quer que esteja. Ele ouvirá os ensinamentos do Buddha o tempo todo. Se não entendermos isso, então, mesmo que passemos todo o nosso tempo ouvindo os ensinamentos dos Ajahns, nós ainda não entenderemos seu significado.
O Buddha disse que a iluminação do Dhamma é apenas conhecer a natureza, a realidade que está ao nosso redor, a natureza [3] que está aqui mesmo. Se não entendemos essa natureza nós experimentamos decepções e alegrias, ficamos perdidos nos humores, dando lugar à tristeza e ao arrependimento. Ficar perdido em objetos mentais é se perder na natureza. Quando nos perdemos na natureza, então não conhecemos o Dhamma. O Iluminado apenas apontou essa natureza.
Tendo surgido, todas as coisas mudam e morrem. Coisas que fazemos, como louça, taças e pratos, todos têm a mesma característica. Uma taça é moldada para a existência devido a uma causa, o impulso do homem para criar, e à medida que a usamos, envelhece, parte-se e desaparece. Com árvores, montanhas e vinhas passa-se o mesmo, até com animais e pessoas.
Quando Aññā Kondañña, o primeiro discípulo, ouviu o ensinamento do Buddha pela primeira vez, a compreensão que teve não foi nada complicada. Ele simplesmente viu que o que quer que nasça tem de mudar e envelhecer como uma condição natural, e finalmente terá de morrer. Aññā Kondañña nunca havia pensado nisso antes, ou se tinha não havia sido completamente claro, por isso ele ainda não se tinha libertado, ainda se apegava aos khandhas. Sentado a ouvir atentamente o discurso do Buddha, a natureza do Buddha surgiu nele. Ele recebeu um tipo de “transmissão” do Dhamma que era o saber que todas as coisas condicionadas são impermanentes. Tudo o que nasce tem envelhecimento e morte como um resultado natural.
Esse sentimento era diferente de qualquer coisa que ele já sentira antes. Ele verdadeiramente compreendeu sua mente e, assim, o ‘Buddha’ ergueu-se em seu interior. Nesse momento, o Buddha delcarou que Añña Kondañña recebera o Olho do Dhamma.
O que esse Olho do Dhamma vê? Esse olho vê que o que quer que nasça envelhece, e a morte é o resultado natural. “O que quer que nasça” significa todas as coisas. Seja material ou imaterial, tudo se subsume a esse “o que quer que nasça”. Essa expressão se refere à totalidade da natureza. Como este corpo, por exemplo – ele nasceu e então ruma à extinção. Quando ele é pequeno, ele “morre” dessa pequenez para a juventude. E após um tempo, ele “morre” da juventude e se torna adulto. Então, “morre” desse estado adulto e se torna velho, até que finalmente alcance o seu fim. Árvores, montanhas, vinhas, tudo tem essa característica.
Assim, a visão ou compreensão ‘daquele que sabe’ claramente entrou na mente de Añña Kondañña quando ele se sentou. Esse conhecimento de ‘tudo que nasce’ tornou-se profundamente arraigado em sua mente, permitindo-lhe desenraizar o apego ao corpo. Essa adesão era ‘sakkāyadiṭṭhi’. Isso significa que ele não tomou o corpo como sendo um eu ou um ser, ele não o viu em termos de ‘ele’ ou ‘mim’. Ele não se apegou a ele. Ele viu claramente, dessa forma desenraizando sakkāyadiṭṭhi.
E, então, vicikicchā (dúvida hesitante) foi destruída. Tendo removido o apego ao corpo ele não duvidou de sua realização. Sīlabbata parāmāsa [4] também foi removido. Sua prática tornou-se firme e reta. Mesmo que seu corpo estivesse com dor ou febre ele não se agarrava a ele, não duvidava. Ele não tinha dúvidas porque havia removido o apego. Esse apego ao corpo é chamado Sīlabbata parāmāsa. Quando se remove a visão do corpo como sendo o eu, o apego e a dúvida cessam. Se essa visão do corpo como sendo o eu surge na mente, então o apego e a dúvida começam imediatamente.
Assim que o Buddha expôs o Dhamma, Aññā Kondañña abriu o Olho do Dhamma. Esse olho é precisamente ‘aquele que sabe com clareza’. Ele vê as coisas de forma diferente. Ele vê esta verdadeira natureza. Vendo a natureza claramente, o apego foi cortado pela raiz e ‘aquele que sabe’ nasceu. Anteriormente, ele sabia, mas ainda tinha apego. Vocês poderiam dizer que ele conhecia o Dhamma, mas ainda não o tinha visto, ou ele tinha visto o Dhamma, mas ainda não era um com ele.
Nesse momento o Buddha disse: “Kondañña conhece”. O que ele conheceu? Ele conheceu a natureza. Normalmente nos perdemos na natureza, assim como com este nosso corpo. Terra, água, fogo e vento se juntam para fazer este corpo. É um aspecto da natureza, um objeto material que podemos ver com o olho. Ele existe na dependência de alimento, crescendo e se transformando, até que finalmente chega à extinção.
Vindo para o interior, aquele que zela pelo corpo é a consciência – apenas este ‘aquele que sabe’, esta consciência única. Se recebe através dos olhos, isso é chamado de visão. Se recebe através do ouvido é chamado de audição; através do nariz, olfato; através da língua, paladar; através do corpo, tato, e através da mente, pensamento. Essa consciência é apenas uma, mesmo quando atua em diferentes lugares, e nós a chamamos de coisas diferentes. Através dos olhos a chamamos de uma coisa, através do ouvido a chamamos de outra. Mas é somente uma consciência que age através dos olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo ou mente. De acordo com as escrituras, chamamos isso de as seis consciências, mas, na verdade, há apenas uma consciência surgindo dessas bases diferentes. Existem seis portas, mas uma única consciência, que é precisamente esta mente.
Essa mente é capaz de conhecer a verdade da natureza. Se a mente ainda tem obstruções, então dizemos que ela sabe por meio da ignorância. Ela sabe incorretamente e vê incorretamente. Saber incorretamente e ver incorretamente, ou entender e ver corretamente, é apenas uma única consciência. Chamamos isso de visão incorreta e visão correta, mas é apenas uma coisa. Ambos, correto e incorreto, surgem de um mesmo lugar. Quando há conhecimento incorreto dizemos que a ignorância oculta a verdade. Quando há conhecimento incorreto então há visão incorreta, intenção incorreta, ação incorreta, modo de vida incorreto – tudo está incorreto! E, por outro lado, o caminho da prática correta nasce neste mesmo lugar. Quando há o correto, então o incorreto desaparece.
O Buddha praticou suportando muitas dificuldades, torturando-se com o jejum e outras provações, mas ele investigou profundamente em sua mente até que finalmente desenraizou a ignorância. Todos os Buddhas eram iluminados na mente, porque o corpo não sabe nada. Você pode alimentá-lo ou não, não importa, o corpo pode morrer a qualquer momento. Todos os Buddhas praticavam com a mente. Eles eram iluminados na mente.
O Buddha, tendo contemplado sua mente, abriu mão dos dois extremos da prática – satisfação no prazer e satisfação na dor – e em seu primeiro discurso expôs o Caminho do Meio entre os dois. Mas ouvimos seus ensinamentos e eles incomodam nossos desejos. Estamos obsessivamente apegados ao prazer e conforto, apegados à felicidade, pensando que estamos bem, estamos ótimos – isso é satisfação no prazer. Não é o caminho certo. Insatisfação, desprazer, aversão e raiva – isso é satisfação na dor. Esses são os caminhos extremos que devem ser evitados por aquele que está no caminho.
Esses ‘caminhos’ são simplesmente a felicidade e a infelicidade que surgem. O ‘que está no caminho’ é esta própria mente, o ‘que conhece’. Se surgir o bom humor e nos apegamos a ele como bom, isso é indulgência no prazer. Se o mau humor surgir e nos apegamos a ele através da aversão – isso é indulgência na dor. Esses são os caminhos errados, não são os caminhos de um meditante. Tais caminhos são das pessoas mundanas, que buscam por divertimento e felicidade, evitando o desprazer e o sofrimento.
Os sábios conhecem os caminhos errados, mas renunciam a eles, desistem deles. Não são movidos pelos prazeres nem pela dor, nem pela felicidade nem pelo sofrimento. Essas coisas surgem, mas aqueles que entendem, não se agarram a elas, deixam-nas seguir a sua natureza. Essa é a visão correta. Quando alguém compreende isso profundamente, há libertação. Felicidade e infelicidade não têm significado para um Iluminado.
Buddha disse que os Iluminados estão afastados das impurezas. Isso não significa que fujam das impurezas, eles não fugiram para lugar algum. As impurezas estavam lá. Ele comparou isso a uma folha de lótus num lago. Tanto a folha como a água coexistem, estão em contacto, mas a folha não se torna úmida. A água é como as impurezas e a folha de lótus é a Mente Iluminada.
A mente de quem pratica é a mesma, não foge para qualquer lugar, ela permanece ali. Surge o bom, o mau, a felicidade, a infelicidade, o certo e o errado, e a pessoa reconhece todos eles. O meditante simplesmente os reconhece, eles não entram em sua mente. Ou seja, ele não tem apego. Ele é simplesmente o experimentador. Dizer que ele simplesmente experimenta é nossa linguagem comum. Na linguagem do Dhamma nós dizemos que ele deixa sua mente seguir o Caminho do Meio.
Essas atividades de felicidade, infelicidade e assim por diante estão constantemente surgindo porque elas são características do mundo. O Buddha se iluminou no mundo, ele contemplou o mundo. Se ele não tivesse contemplado o mundo, se ele não tivesse visto o mundo, ele não poderia tê-lo superado. A iluminação do Buddha foi simplesmente o despertar desse mesmo mundo. O mundo ainda estava lá: perda e ganho, elogio e crítica, fama e descrédito, felicidade e infelicidade, ainda estavam lá. Se não houvesse tais coisas não haveria nada para se iluminar! O que ele sabia era apenas o mundo, o que envolve os corações das pessoas. Se as pessoas seguirem essas coisas, procurando elogios e fama, ganhos e felicidade, e tentando evitar seus opostos, elas afundarão sob o peso do mundo.
Ganho e perda, elogio e crítica, fama e descrédito, felicidade e infelicidade – isso é o mundo. A pessoa que está perdida no mundo não tem caminho por onde escapar, o mundo a oprime. Este mundo segue a Lei do Dhamma de modo que chamamos de dhamma mundano. Aquele que vive dentro do dhamma mundano é chamado de ser mundano. Ele vive cercado pela confusão.
Por esse motivo o Buddha nos ensinou a desenvolver o caminho. Podemos então dividi-lo em moralidade, concentração e sabedoria – desenvolva-os até a realização. Esse é o caminho da prática pelo qual se destrói o mundo. E onde está esse mundo? Está apenas nas mentes dos seres encantados com ele. A ação de se agarrar ao elogio, fama, ganho, felicidade e infelicidade é chamada de ‘mundo’. Quando essas coisas estão na mente, então o mundo surge, nasce o ser mundano. O mundo nasce por causa do desejo. Desejo é o berço de todos os mundos. Para colocar um fim ao desejo é preciso colocar um fim ao mundo.
Nossa prática de moralidade, de concentração e de sabedoria é, de outra forma, chamada de Nobre Caminho Óctuplo, que se complementa com os oito dhammas mundanos. Como eles se complementam? Se falarmos conforme as escrituras, perda e ganho, elogio e crítica, fama e descrédito, felicidade e infelicidade são os oito dhammas mundanos. Compreensão correta, pensamento correto, linguagem correta, ação correta, meios de vida corretos, esforço correto, vigilância correta e concentração correta formam o Nobre Caminho Óctuplo. Essas duas formas óctuplas coexistem. Os oito dhammas mundanos estão bem aqui nesta mente, com “aquele que sabe”, mas que sofre impedimentos, portanto sabe de maneira errada e, dessa forma, torna-se o mundo. É apenas “aquele que sabe”, ninguém mais. A natureza de Buddha ainda não surgiu nessa mente, ela ainda não se retirou do mundo. Uma mente como essa é o mundo.
Quando praticamos o caminho, quando treinamos observar o nosso corpo e a nossa fala, é a nossa mente agindo em conjunto. Eles estão no mesmo lugar, portanto eles veem um ao outro; o caminho vê o mundo. Se praticarmos com essa nossa mente nós encontraremos este apego ao elogio, à fama, ao prazer e à felicidade, vemos o apego ao mundo.
Buddha disse: “Você deve conhecer o mundo. Ele brilha como a carruagem real de um rei. Os tolos são fascinados pela carruagem, mas os sábios não são enganados”. Não que o Buddha quisesse que saíssemos pelo mundo olhando para todas as coisas, estudando tudo sobre o mundo. Ele simplesmente desejou que olhássemos esta mente que se apega ao mundo. Quando o Buddha nos disse para ver o mundo, ele não quis que ficássemos emperrados nele, ele quis que nós o investigássemos, porque o mundo nasce somente nesta mente. Sentando à sombra de uma árvore você pode ver o mundo. Quando há desejo, o mundo nasce ali mesmo. O desejo é o lugar de nascimento do mundo. Extinguir o querer é extinguir o mundo.
Quando nos sentamos na meditação queremos que a mente fique pacífica, mas ela não fica muito pacífica. Por que isso acontece? Nós não queremos pensar, mas pensamos. Parecemo-nos com uma pessoa que vai se sentar em um formigueiro e as formigas apenas continuam nos mordendo. Quando a mente é o mundo, mesmo estando imóveis com os nossos olhos fechados, tudo que vemos é o mundo. Prazer, tristeza, inquietude, confusão – tudo isso surge. Por que é assim? É porque nós ainda não realizamos o Dhamma. Se a mente fica assim estabelecida no mundo, o meditante não consegue perceber os fenômenos mundanos, ele não investiga. É como se as formigas o estivessem mordendo o tempo todo na sua própria casa. Assim, o que ele deve fazer? Ele deve procurar um pouco de veneno ou fogo, e expulsá-las.
Mas a maioria dos praticantes do Dhamma não vê dessa forma. Se estão contentes, eles seguem o contentamento; se estão descontentes, continuam assim. Ao seguir os dhammas mundanos, a mente se torna o mundo. Algumas vezes, podemos pensar: “Oh, não consigo fazer isso, está além de mim”, e nem ao menos tentamos. Isso acontece porque a mente está cheia de impurezas, os dhammas mundanos não deixam o caminho surgir. Não resistimos no desenvolvimento da moralidade, da concentração e da sabedoria. É como aquele homem sentado no formigueiro. Ele nada pode fazer, as formigas mordem e sobem nele, ele está imerso na confusão e na agitação. Ele não consegue livrar o lugar onde se senta do perigo, por isso ele simplesmente continua lá, sofrendo.
Então, assim é com a nossa prática. Os dhammas mundanos existem nas mentes dos seres mundanos. Quando aqueles seres desejam encontrar a paz, os dhammas mundanos surgem exatamente ali. Quando a mente é ignorante, só há a escuridão. Quando o conhecimento surge, a mente está iluminada, porque ignorância e conhecimento nascem no mesmo lugar. Quando a ignorância surge, o conhecimento não pode entrar, porque a mente aceitou a ignorância. Quando o conhecimento surge, a ignorância não pode ficar.
Assim, o Buddha exortava seus discípulos a praticar com a mente, porque o mundo nasce nesta mente, os oito dhammas mundanos estão lá. O caminho óctuplo, isto é, investigação por meio da meditação da calma e do insight, nosso esforço diligente e a sabedoria que desenvolvemos, todas essas coisas afrouxam o apego ao mundo. Apego, aversão e ilusão, se tornam mais leves, e sendo mais leves, nós os conhecemos como tais. Se experimentarmos fama, ganho material, elogio, felicidade ou sofrimento nós estaremos atentos a isso. Devemos conhecer essas coisas antes de podermos transcender o mundo, porque o mundo está dentro de nós.
Quando estamos livres dessas coisas é algo como quando deixamos uma casa. Quando entramos em uma casa que tipo de sentimento nós temos? Nós sentimos que atravessamos a porta e entramos na casa. Quando saímos da casa sentimos que nós deixamos isso e fomos para a luz solar brilhante, não é escuro como era dentro da casa. A ação da mente ao entrar nos dhammas mundanos é como entrar na casa. A mente que destruiu os dhammas mundanos é como aquele que deixou a casa.
Assim, o praticante do Dhamma deve ser alguém que testemunhe o Dhamma por si próprio. Sabe por si mesmo se os dhammas mundanos o abandonaram ou não, se o caminho foi desenvolvido ou não. Se o caminho foi bem desenvolvido, ele expurga os dhammas mundanos. Torna-se cada vez mais forte. A visão correta aumenta à medida que a visão incorreta diminui, até que, finalmente, o caminho destrói as impurezas – ou é assim ou as impurezas destruirão o caminho!
Visão correta e visão errônea, só existem esses dois caminhos. A visão errônea tem seus truques, como também tem sua sabedoria – mas é uma sabedoria equivocada. O meditante que começa a trilhar o caminho experimenta uma separação. Acaba sendo como se fosse duas pessoas: um inserido no mundo e outro no caminho. Eles dividem e separam. Sempre que estão investigando há essa separação, e isso continua e continua até a mente alcançar o insight, vipassanā.
Ou talvez é vipassanū! [5] Tendo tentado estabelecer resultados saudáveis em nossa prática, vendo-os, nos apegamos a eles. Esse tipo de apego vem da nossa vontade de ganhar alguma coisa de nossa prática. Isso é vipassanū, a sabedoria das impurezas (ou “sabedoria impura”). Algumas pessoas desenvolvem bondade e se apegam a ela, elas desenvolvem pureza e se apegam a ela, ou elas desenvolvem conhecimento e se apegam a ele. A ação de se apegar ao que é bom ou conhecimento é a infiltração de vipassanū em nossa prática.
Portanto quando conseguir experimentar vipassanā, tenha cuidado! Esteja atento à vipassanū, porque elas são tão próximas que às vezes não conseguimos distingui-las. De posse da visão correta, podemos vê-las claramente. Se for vipassanū, por vezes o sofrimento surgirá como resultado. Se realmente é vipassanā, não haverá sofrimento. Haverá paz. Felicidade e infelicidade estão silenciadas. Isso você consegue enxergar sozinho.
Essa prática requer persistência. Algumas pessoas, quando vão praticar, não querem ser incomodadas por nada, elas não querem atrito. Mas há tanto atrito quanto havia antes. Nós temos que tentar encontrar um final para o atrito, através do próprio atrito.
Assim, se houver atrito na sua prática, então está certo. Se não há atrito, não está certo; você apenas come e dorme tanto quanto deseja. Quando você quer ir a qualquer lugar ou dizer qualquer coisa, você apenas segue os seus desejos. O ensinamento do Buddha incomoda. O supramundano vai contra o mundano. A visão correta se opõe à visão incorreta, a pureza se opõe à impureza. O ensinamento incomoda os nossos desejos.
Nas escrituras há uma história sobre Buddha antes de sua iluminação. Naquela hora, tendo recebido um prato de arroz, ele fez o prato flutuar na água de um riacho, determinando em sua mente: ‘Se estou para ser iluminado, que este prato flutue contra a correnteza da água’. O prato flutuou contra a corrente! O prato foi a visão correta do Buddha ou a natureza do Buddha que se tornou despertada. Não seguiu os desejos dos seres comuns. Flutuou contra o fluxo da sua mente, foi o oposto de todas as formas.
Nestes dias, da mesma maneira, o ensinamento do Buddha é contrário aos nossos corações. As pessoas querem contentar-se com ambição e ódio, mas Buddha não deixa que isso aconteça. Elas querem ser iludidas, mas Buddha destrói a ilusão. Então, a mente de Buddha é contrária à mente dos seres. O mundo diz que o corpo é bonito, ele diz que não é. Eles dizem que o corpo nos pertence, ele diz que não. Eles dizem que é substancial, ele diz que não. A visão certa está acima do mundo. Os seres deste mundo apenas seguem a corrente.
Continuando, quando o Buddha se levantou dali, ele recebeu oito mãos cheias de grama de um brāhmaṇa. O verdadeiro significado disso é que as oito mãos cheias de grama eram os oito dhammas mundanos – ganho e perda, elogio e critica, fama e descrédito, felicidade e infelicidade. O Buddha, tendo recebido essa grama, determinou sentar-se nela e entrar em samādhi. A ação de sentar-se na grama foi ela própria samādhi, ou seja, a sua mente estava acima dos dhammas mundanos, subjugando o mundo até ter realizado o transcendente.
Os dhammas mundanos se converteram em lixo para ele, eles perderam todo o significado. Ele sentou-se sobre eles, mas eles não obstruíram sua mente de forma alguma. Demônios vieram para tentar vencê-lo, mas ele apenas ficou lá em samādhi, subjugando o mundo, até que finalmente ele se tornou iluminado no Dhamma e derrotou Māra [6] completamente. Ou seja, ele derrotou o mundo. Assim, a prática de desenvolver o caminho é o que mata as impurezas.
Atualmente, as pessoas têm pouca fé. Após terem praticado por um ou dois anos elas já querem alcançar e chegar depressa. Não consideram que o Buddha, o nosso professor, saiu de casa por longos seis anos, antes de se tornar iluminado. É por isso que temos ‘liberdade em relação à dependência [7]’. De acordo com as escrituras, um monge precisa de pelo menos cinco ‘chuvas’ [8] antes de considerar que possa viver por si mesmo. Por essa altura ele terá praticado e estudado o suficiente, terá o conhecimento adequado, terá a fé e a sua conduta será boa. Alguém que pratique por cinco anos, digo, será competente. Mas deverá mesmo praticar, não apenas ‘carregar os mantos’ durante cinco anos. Uma pessoa deve realmente cuidar da prática, realmente fazê-lo.
Até completer cinco chuvas, você poderia se perguntar: “O que é esta ‘liberdade em relação à dependência’ da qual o Buddha fala?” Você deve realmente praticar por cinco anos e, então, saberá por si mesmo de quais as qualidades que estamos falando. Depois disso, você deveria ser competente, competente na mente, alguém que está seguro. No mínimo, após cinco chuvas, você deveria estar no primeiro estágio da iluminação. Isso não significa apenas cinco chuvas no corpo, mas cinco chuvas na mente também. Aquele monge tem medo da censura, um senso de vergonha e modéstia. Ele não ousa agir erroneamente seja em frente às pessoas ou pelas suas costas, à luz ou na escuridão. Por que não? Poruqe ele atingiu o Buddha, ‘aquele que sabe’. Ele toma refúgio no Buddha, Dhamma e Sangha.
Para confiarmos verdadeiramente no Buddha, no Dhamma e na Sangha temos de conhecer o Buddha. De que serviria refugiar-se sem saber o que é o Buddha? Se nós não sabemos ainda o que é o Buddha, o Dhamma e a Sangha, a nossa tomada de refúgio neles é apenas um ato do corpo e da fala, a mente ainda não os atingiu. Uma vez que a mente os alcança, sabemos o que são o Buddha, o Dhamma e a Sangha. Então, podemos realmente tomar refúgio neles, porque essas coisas surgem em nossas mentes. Onde quer que estejamos vamos ter o Buddha, o Dhamma e a Sangha dentro de nós.
Quem é desse jeito não ousa cometer maus atos. Daí dizermos que quem atingiu o primeiro nível de iluminação não mais renascerá em estados infelizes. Sua mente é resoluta, ele entrou no Fluxo, não há mais dúvida para ele. Se ele não alcançar hoje a iluminação completa, isso certamente ocorrerá no futuro. Ele pode se enganar, mas não o suficiente para ser mandado para o inferno, ou seja, ele não regride para más ações corporais e verbais, ele é incapaz disso. Assim, diz-se que essa pessoa entrou no Nascimento Nobre. Ele não pode retornar. Isso é algo que vocês devem ver e conhecer por si mesmos já nessa vida.
Nos dias atuais, aqueles que entre nós ainda têm dúvidas acerca da prática, escutam essas coisas e dizem: “Oh, como posso eu fazer isso?” Por vezes sentimo-nos felizes, outras vezes perturbados, satisfeitos ou descontentes. Por que razão? Porque não conhecemos o Dhamma. Que Dhamma? Apenas o Dhamma da natureza, a realidade que nos rodeia, o corpo e a mente.
Buddha disse: “Não se apeguem aos cinco khandhas, deixem-nos ir, desistam deles!” Porque não conseguimos deixá-los ir? Apenas porque não os vemos ou conhecemos plenamente. Vêmo-los como se fossem nós mesmos, vêmo-nos nos khandhas. Felicidade e sofrimento, vemos como nós mesmos, vêmo-nos na felicidade e no sofrimento. Não conseguimos separar-nos deles. Quando não os conseguimos separar significa que não conseguimos ver o Dhamma, não conseguimos ver a natureza.
Felicidade, infelicidade, prazer e melancolia – nenhum destes é nós mesmos, mas consideramos que sejam. Esses referenciais, em contato conosco, trazem uma noção de ‘attā’ ou eu. E onde quer que exista o eu você irá encontrar felicidade, infelicidade e tudo mais. Assim, o Buddha disse para eliminarmos essa porção do eu, ou seja, destruírmos sakkāyadiṭṭhī. Quando attā (self) é destruído, anattā (não-self) surge naturalmente.
Consideramos, em geral, que a natureza somos nós e que nós somos a natureza, sendo que não sabemos verdadeiramente o que seja a natureza. Se for boa damos risada, se for ruim, choramos. Mas a natureza nada mais é que ‘sankhāras’. Como repetimos nos cânticos: ‘Tesam vūpasamo sukho’ – pacificar os sankhāras é a verdadeira felicidade. Como podemos pacificá-los? Simplesmente eliminamos o apego e os contemplamos como realmente são.
Portanto, há verdade neste mundo. Árvores, montanhas e vinhas, todos vivem de acordo com sua própria verdade, eles nascem e morrem de acordo com sua natureza. Somos apenas nós, pessoas, que não são verdadeiras. Vemos a verdade e fazemos uma confusão sobre ela, mas a natureza é impassível, ela simplesmente é como é. Nós rimos, nós choramos, matamos, mas a natureza continua na verdade, ela é verdade. Não importa o quão felizes ou tristes nós somos, este corpo simplesmente segue sua própria natureza. Ele nasce, ele cresce e envelhece, mudando e ficando mais velho o tempo todo. Ele segue a sua natureza desse modo. Quem toma o corpo como sendo ele próprio e o carrega consigo, vai sofrer.
Assim, Aññā Kondañña reconheceu esse ‘tudo o que nasce’ em todas as coisas, seja material ou imaterial. Sua visão do mundo mudou. Ele viu a verdade. Tendo se levantado do seu assento, ele tomou essa verdade com ele. A atividade de nascimento e morte continuava, mas ele simplesmente olhava. A felicidade e infelicidade surgiam e desapareciam, mas ele simplesmente as notava. Sua mente estava constante. Ele não mais caiu em estados miseráveis. Ele não ficou excessivamente satisfeito ou indevidamente aborrecido com essas coisas. Sua mente estava firmemente estabelecida na atividade de contemplação.
Aí está! Aññā Kondañña recebeu o Olho do Dhamma. Ele viu a natureza, a que nós chamamos de sankhāras, de acordo com a verdade. Sabedoria é conhecer a verdade dos sankhāras. Essa é a mente que conhece e vê o Dhamma, que se rendeu.
Até que nós tenhamos visto o Dhamma, devemos ter paciência e moderação. Devemos perseverar, devemos renunciar! Devemos cultivar a perseverança e resistência. Por que devemos cultivar a diligência? Porque somos preguiçosos! Por que precisamos desenvolver a resistência? Porque não toleramos! É o modo como as coisas são. Mas quando já estamos estabelecidos em nossa prática, tendo acabado a preguiça, então não precisamos usar a diligência. Se já sabemos a verdade de todos os estados mentais, se nós não ficamos felizes ou infelizes por eles, não precisamos mais de resistência, porque a mente já é Dhamma. Quando ‘aquele que sabe’ viu o Dhamma, ele é o Dhamma.
Quando a mente é Dhamma, ela para. Ela alcançou a paz. Não há mais a necessidade de fazer algo em especial, porque a mente já é o Dhamma. O exterior é Dhamma, o interior é Dhamma. ‘Aquele que sabe’ é Dhamma. O estar é o Dhamma e aquele que conhece o estar é o Dhamma. É. É livre.
Essa natureza não nasce, não envelhece nem adoece. Essa natureza não morre. Essa natureza não é nem feliz nem triste, nem grande nem pequena, pesada ou leve, nem curta nem longa, preta ou branca. Não há com o que você possa comparar. Nenhuma convenção pode alcançá-la. É por isso que dizemos que Nibbāna não tem cor. Todas as cores são meras convenções. O estado que está além do mundo está fora do alcance das convenções mundanas.
Assim, o Dhamma é o que está além do mundo. É o que cada pessoa deve ver por si mesma. Está além da linguagem. Você não pode colocá-lo em palavras, você só pode falar sobre as formas e os meios de realizá-lo. A pessoa que o viu por si mesma, concluiu seu trabalho.
Notas
[1] Ensinamento dado no Wat Nong Pah Pong para uma assembleia de monges e noviços em outubro de 1968.
[2] ‘Khandhas’: os cinco ‘grupos que juntos chamamos de ‘pessoa’.
[3] Natureza aqui se refere a todas as coisas, mentais e físicas, e não apenas árvores, animais, etc.
[4] Sīlabbata parāmāsa é tradicionalmente traduzida como apego a ritos e rituais. Aqui, o venerável Ajahn a relaciona, juntamente com a dúvida, especificamente ao corpo. Estas três coisas: sakkāyaditthi, vicikicchā e sīlabbata parāmāsa, são os primeiros três ‘grilhões’ que são abandonados quando no primeiro vislumbre da Iluminação, conhecido como ‘Entrada no Fluxo’. Na total Iluminação, todos os dez ‘grilhões’ são transcendidos.
[5] Vipassanūpakkilesa – as impurezas sutis que surgem da prática meditativa.
[6] Māra (o Tentador), a personificação buddhista do mal. Para o meditante é tudo aquilo que obstrui a busca pela iluminação.
[7] É esperado de um monge júnior que tome ‘dependência’, isto é, que viva sob orientação de um monge sênior por pelo menos cinco anos.
[8] ‘Chuva’ refere-se aos períodos de retiro de três meses que ocorrem anualmente e pelos quais os monges contam a sua idade, assim, um monge de cinco chuvas foi ordenado a cinco anos.
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
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Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.
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