~ Ajahn Chah ~ 

[1] Certa vez, havia um monge ocidental, um estudante meu. Sempre que ele via monges e noviços tailandeses abandonar o manto, ele dizia: “Oh, que pena! Porque eles fazem aquilo? Por que tantos monges tailandeses e noviços desistem?” Ele ficava chocado. Ele ficava triste com a desistência dos monges e noviços tailandeses, porque ele acabara de entrar em contato com o buddhismo. Ele estava inspirado, ele estava resoluto. Seguir adiante como um monge era a única coisa a fazer. Achava que ele nunca abandonaria o manto. Aquele que fazia isso era um tolo. Ele via os tailandeses pegando as vestes no início do Retiro das Chuvas como monges e noviços e depois se despindo no final… “Oh, que triste! Sinto muito por aqueles monges e noviços tailandeses. Como eles poderiam fazer uma coisa dessas?”

Bem, com o passar do tempo alguns dos monges do Ocidente começaram a deixar de ser monges, então ele passou a ver isso como algo não tão importante afinal de contas. Primeiramente, quando ele havia apenas começado sua prática, ele estava excitado sobre isso. Ele pensou que isso era uma coisa muito importante, tornar-se um monge. Ele pensou que seria fácil.

Quando as pessoas estão inspiradas tudo parece ser tão certo e bom. Não há nada para medir os sentimentos, então elas vão em frente e decidem por si mesmas. Mas elas não sabem realmente o que a prática significa. Aquelas que sabem terão uma fundação completamente firme dentro de seus corações – mas mesmo assim elas não precisam de anunciar isso.

Quanto a mim, quando fui ordenado, não praticava muito, mas tinha bastante fé. Eu não sei por que, talvez fosse assim desde o nascimento. Os monges e noviços que entraram comigo chegaram ao fim do período das chuvas tendo já abandonado seu manto. Eu pensava comigo: “Como? O que há com essas pessoas?” Entretanto, eu não ousava dizer nada a elas, pois não estava certo de meus próprios sentimentos. Eu estava muito agitado. Mas, em meu interior, eu sentia que elas foram tolas. “É difícil avançar, fácil abandonar os votos. Essas pessoas não têm muito mérito, elas acham que o caminho mundano é mais útil que o caminho do Dhamma”. Eu pensei assim, mas não disse nada. Apenas observei minha própria mente.

Eu via os monges que tinham se ordenado comigo abandonando os mantos um após o outro. Às vezes eles se vestiam e voltavam para o monastério para se mostrar. Eu os via e pensava que eles eram malucos, mas eles pensavam que se aparentavam legais. Quando você deixa o manto você tem que fazer isso e aquilo… Eu pensava comigo que aquele jeito de pensar estava errado. Eu não falava isso, no entanto, porque eu mesmo ainda era um pouco tímido. Eu não estava certo o quão longe minha fé duraria.

Quando meus amigos tinham todos abandonado o manto monástico e largado todo o interesse, não restava ninguém para me preocupar. Eu peguei o pātimokkha [2] e fiquei agarrado em aprender aquilo. Não restava ninguém para me distrair ou perder meu tempo, então eu coloquei meu coração na prática. Eu ainda não disse qualquer coisa porque eu senti que a prática na vida é uma só, talvez setenta, oitenta ou até noventa anos, e manter um esforço persistente, sem relaxar ou perder a determinação, parecia como uma coisa extremamente difícil de fazer.

Os que ordenavam-se ordenavam-se, os que abandonavam o manto a abandonavam. Eu apenas assistia a isso. Eu não me preocupava se eles ficavam ou deixavam. Eu assistia meus melhores amigos abandonarem, mas o sentimento que eu tinha é que essas pessoas não estavam vendo claramente. Aquele monge ocidental provavelmente pensava dessa forma. Ele via pessoas se tornarem monges por apenas um Retiro das Chuvas, e chateava-se.

Depois ele chegou a um estágio que chamamos… entediado; entediado com a vida santa. Ele abandonou a prática e eventualmente deixou o manto.

“Por que você está deixando a vida monástica? Antes, quando você via monges tailandeses deixando a vida monástica, você diria: ‘Oh, que pena! Que triste, que dó’. Agora, quando você próprio quer fazer isso, por que não fica sentido?”

Ele não respondeu. Ele apenas sorriu vergonhosamente.

Quando o assunto é o treinamento da mente, não é fácil encontrar um bom padrão se você ainda não desenvolveu uma “testemunha” dentro de si. Na maioria das questões externas nós podemos confiar nos outros para feedback, há padrões e precedentes. Mas quando se trata de usar o Dhamma como padrão… nós já temos o Dhamma? Estamos pensando corretamente ou não? E mesmo que esteja certo, sabemos como abrir mão da retidão ou ainda estamos apegados a ela?

O importante é contemplar até chegar ao ponto de desapego… até atingir aquele ponto em que não resta mais nada, em que o bem e o mal deixam de existir. Você se desfaz de tudo. Você joga tudo fora. Se você se livrar de tudo, não restará nada; se restar alguma coisa, é sinal de que você ainda não se livrou de tudo.

Tem quem diga que é fácil treinar a mente. É fácil dizer, mas é muito difícil fazer. É difícil porque não basta querer para conseguir. Às vezes pode até parecer que algum anjo [3] está nos ajudando. Parece que tudo dá certo, que tudo o que pensamos ou dizemos é acertado. Quando isso acontece, nos apegamos a fazer tudo certo até que pensamos ou dizemos a coisa errada e tudo parece dar errado. É aí que entra a dificuldade. Não temos um parâmetro para avaliar direito as coisas.

As pessoas que têm muita fé, que são dotadas de confiança e crença, mas que não possuem sabedoria, podem ser muito boas em samādhi mas, talvez, não tenham muita percepção. Elas veem apenas um lado das questões, e simplesmente seguem isso. Elas não refletem. Isso é fé cega. No buddhismo, chamamos isso de saddhā-adhimokkha, fé cega. Elas realmente têm fé, mas tal fé não nasce da sabedoria. Mas elas não veem isso no momento, elas acreditam que têm sabedoria, então elas não veem onde estão erradas.

Portanto, eles ensinam sobre os cinco poderes (bala): saddhā, viriya, sati, samādhi, paññā. Saddhā é convicção; viriya é esforço com sabedoria; sati é memória; samādhi é a concentração; paññā sabedoria. Não diga que pañña é simplesmente conhecimento – paññā é sabedoria, conhecimento consumado.

Os sábios nos deram esses cinco passos para que possamos nos relacionar com eles, primeiramente como objeto de estudo, então como medidor de como nossa prática está. Por exemplo, saddhā, convicção. Nós temos convicção, já a desenvolvemos? Viriya: temos esforço diligente com sabedoria ou desprovido de sabedoria? Está certo ou está errado? Devemos considerar isso. Todo mundo tem algum tipo de esforço, mas nosso esforço contém sabedoria ou não?

Com sati é o mesmo. Até um gato tem sati. Quando ele vê um rato, sati está lá. Os olhos do gato olham fixamente para o rato. Este é o sati de um gato. Todo mundo tem sati, os animais o têm, os delinquentes o têm, os sábios o têm.

Samādhi, fixação da mente – todos também têm isso. Um gato tem isso quando sua mente está concentrada em agarrar o rato e comê-lo. Tem intenção fixa. Essa sati do gato é um tipo de sati; samādhi, a intenção fixa sobre o que está fazendo, também está lá. Paññā, conhecimento, como o dos seres humanos. Ele sabe como um animal sabe, tem conhecimento suficiente para atrair ratos para comer.

Essas cinco coisas são chamadas de poderes. Esses cinco poderes surgiram a partir da visão correta, sammā-ditthi, ou não? Saddhā, viriya, sati, samādhi,paññā surgiram a partir da visão correta? O que é visão correta? Qual é nosso padrão para calibrar a visão correta? Devemos entender isso claramente.

Visão correta é a compreensão de que todas as coisas são incertas. Por isso, o Buddha e todos os Nobres não se apegam tão firmemente a elas. Eles se apegam, mas não tão forte. Eles não deixam que esse apego se torne uma identidade. O apego que não leva ao tornar-se é aquele que não é manchado pelo desejo. Sem a busca para tornar-se isso ou aquilo, há simplesmente a prática em si. Quando você se apega a alguma coisa, há prazer ou há desgosto? Se há prazer, você se apega a ele? Se há desgosto, você se apega a ele?

Algumas visões podem ser usadas como princípios para avaliar com mais precisão a nossa prática. Como, por exemplo, saber que visões como “este é melhor que os outros”, ou “igual aos outros” ou “mais tolo que os outros” são todas visões erradas. Podemos sentir, mas também podemos saber, com base em nossa sabedoria, que essas visões simplesmente surgem e desaparecem. Não é certo ver que somos melhores que os outros; não é certo ver que somos iguais aos outros; não é certo ver que somos inferiores aos outros.

A visão correta é aquela penetra tudo isso. Se pensarmos que somos melhores que os outros, surge o orgulho. Ele está lá, mas não o vemos. Se pensarmos que somos iguais aos outros, deixamos de demonstrar respeito e humildade nos momentos apropriados. Se pensarmos que somos inferiores aos outros, ficamos deprimidos, achando que somos inferiores, que nascemos marcados por um mau agouro e assim por diante. Continuamos apegados aos cinco khandhas [4], tudo não passa de um tornar-se e de um nascer.

Este é um padrão para nos avaliarmos. Outro é: se encontramos uma experiência agradável, nos sentimos felizes, se encontramos uma experiência ruim, somos infelizes. Poderemos observar as coisas que gostamos e as coisas de que não gostamos como tendo igual valor? Avalie-se em relação a este padrão. Na nossa vida cotidiana, nas várias experiências que encontramos, se ouvimos algo que gostamos, nossa humor muda? Se encontrarmos uma experiência que não é do nosso agrado, nosso humor muda? Ou a mente permanece imóvel? Olhando bem aqui, temos um indicador.

Apenas conheça a si mesmo, esta é sua testemunha. Não tome decisões baseadas na força de seus desejos. Os desejos podem nos fazer pensar que somos algo que não somos. Devemos ser circunspectos.

Há tantos ângulos e aspectos a considerar, mas o caminho certo é não seguir os seus desejos, mas a Verdade. Devemos conhecer tanto o bem como o mal, e quando conhecermos, então, abandoná-los. Se não abandonarmos, ainda estamos lá, nós ainda “existimos”, nós ainda “temos”. Se ainda “somos”, então há um resto, há um vir-a-ser e um nascimento em potencial.

Portanto, o Buddha disse para julgar apenas a si mesmo, não julgue os outros, independentemente do quão bom ou do mal que sejam. O Buddha apenas indica o caminho, dizendo: “A verdade é deste jeito”. Agora, nossa mente é assim ou não?

Por exemplo, suponha que um monge pegou algumas coisas pertencentes a outro monge, então este outro monge o acusa: “Você roubou minhas coisas”. “Eu não as roubei. Eu apenas as peguei”. Então perguntamos a um terceiro monge. Como ele deve decidir? Ele teria que pedir ao monge  transgressor para se apresentar diante da Sangha reunida. “Sim, eu peguei, mas não roubei”. Ou com referência a outras regras, tais como transgressões pārājika or sanghādisesa: “Sim, eu fiz, mas eu não tive a intenção”. Como você vai acreditar nisso? É complicado. Se você não acredita, tudo que pode fazer é deixar o ônus com o acusado, recai sobre ele.

Mas você deve saber que não podemos ocultar as coisas que surgem em nossas mentes. Você não pode encobri-las, nem os erros nem as boas ações. Se as ações são boas ou malignas, você não pode descartá-las simplesmente ignorando-as, porque essas coisas tendem a se revelar. Elas se escondem, se revelam, existem por si mesmas. Todas são automáticas. É assim que as coisas funcionam.

Não tente adivinhar ou especular sobre essas coisas. Enquanto ainda houver avijjā (ignorância), elas não estão finalizadas. O conselheiro-presidente principal me perguntou uma vez: “Luang Por, a mente de um anāgāmī  [5] já é uma mente pura?” “É parcialmente pura”.

“Ãh? Um anāgāmī abandonou o desejo sensorial, como assim sua mente não é ainda pura?”

“Ele pode abandonar desejos sensoriais, mas ainda há algo sobrando, não é mesmo? Ainda há avijjā. Se ainda há algo restante então ainda há algo restante. É como a tigela de esmola dos bhikkhus. Existe ‘grande tigela grande, uma tigela grande de tamanho médio, uma tigela grande de tamanho pequeno; então uma tigela grande de tamanho médio, uma tigela média de tamanho médio, uma tigela pequena de tamanho médio; então existe uma tigela pequena de tamanho grande, uma tigela pequena de tamanho médio e uma tigela pequena de tamanho pequeno’… Não importa quão pequena ainda há uma tigela, não está certo? É como isto está como isso…  sotāpanna, sakadāgāmī, anāgāmī… eles todos abandonaram certas impurezas, mas apenas em relação aos seus respectivos níveis. Qualquer coisa que reste, esses Nobres não veem. Se eles pudessem todos eles seriam arahants. Eles ainda não podem ver tudo. Avijjā é aquilo que não vê. Se a mente do anāgāmī fosse completamente corrigida ele não seria um anāgāmī, ele seria completamente realizado. Mas ainda há algo faltando”.

“A sua mente está purificada?”

“Bem, um pouco, mas não 100%”.

Como mais eu poderia responder? Ele disse que mais tarde voltaria e me perguntaria mais. Ele pode olhar para isso, o padrão está lá. Não seja descuidado. Esteja alerta. O Senhor Buddha nos exortou a estar alerta. Em relação a esse treino do coração, tive meus momentos de tentação também, você sabe. Fui frequentemente tentado a experimentar muitas coisas, mas elas sempre pareceram que me desviariam do caminho. É realmente um tipo de pavonear-se na própria mente, um tipo de presunção. Dītthi, opiniões, e māna, orgulho, estão lá. É bem difícil justamente estar consciente dessas duas coisas.

Havia uma vez um homem que queria se tornar monge aqui. Ele se vestia com seus mantos, determinado a se tornar um monge em memória de sua falecida mãe. Ele veio ao monastério, tirou suas vestes, e sem prestar cumprimentos aos monges, começou a meditar andando bem em frente do salão principal… para trás e para frente, para trás e para frente, como se realmente quisesse se mostrar.

Eu pensei: “Oh, então existem pessoas desse jeito por perto, também!” Isso é chamado saddhā adhimokkha – fé cega. Ele devia ter se determinado a ficar iluminado antes do pôr do sol ou algo do tipo, ele pensou que iria ser muito fácil. Ele não olhou para ninguém mais, apenas colocou sua cabeça para baixo e caminhou se sua vida dependesse daquilo. Eu apenas deixei ele continuar, mas pensei: “Oh, homem, você pensa que isso é fácil assim?” No final, eu não sei quanto tempo ele ficou, eu acho que ele nem mesmo foi ordenado.

Assim que a mente pensa em algo nós mandamos embora, todas as vezes. Nós não percebemos que é simplesmente a proliferação habitual da mente. Ela se disfarça de sabedoria e tagarela em mínimos detalhes. Essa proliferação mental parece muito esperta, se não soubéssemos que a confundiríamos com sabedoria. Mas quando chega o momento decisivo ela não é o suficiente. Quando o sofrimento surge onde estará aquela assim chamada sabedoria? Ela é de alguma utilidade? É somente proliferação afinal de contas.

Então, fique com o Buddha. Como eu disse várias vezes antes, na nossa prática precisamos nos voltar para dentro e encontrar o Buddha. Onde está o Buddha? O Buddha ainda está vivo até hoje, vá e o encontre. Onde ele está? Em aniccam, vá e o encontre lá, vá e se curve diante dele: aniccam, incerteza. Você pode parar aí, para começar.

Se a mente lhe disser: “Agora sou um sotāpanna”, vá e se curve diante do sotāpanna. Ele mesmo lhe dirá: “Tudo é incerto”. Se você encontrar um sakadāgāmī vá e preste homenagens a ele. Quando ele o vir, ele simplesmente dirá: “Não é algo certo!” Se há um anāgāmī vá e se curve diante dele. Ele lhe dirá apenas uma coisa… “incerto”. Se você encontrar até mesmo um arahant, vá e se curve diante dele, ele lhe dirá ainda mais firmemente: “Tudo é cada vez mais incerto!” Você ouvirá a palavra dos nobres… “Tudo é incerto, não se apegue a nada”.

Não veja apenas o Buddha como um simplório. Não se apegue às coisas, agarrando-se a elas sem abandoná-las. Olhe para as coisas como funções do aparente e depois envie-as para a transcendência. É assim que você deve ser. Deve haver aparência e deve haver transcendência.

Então, eu digo: “Vá ao Buddha”. Onde está o Buddha? O Buddha é o Dhamma. Todos os ensinamentos neste mundo podem ser contidos neste ensinamento: aniccam. Pense nisso. Procurei por mais de quarenta anos como monge e isso é tudo o que pude encontrar. Isso e persistência paciente. É assim que se aproxima dos ensinamentos do Buddha … aniccam: tudo é incerto.

Não importa o quão certo a mente queira estar, basta dizer: “Não é algo certo!”. Sempre que a mente quiser agarrar algo como algo seguro, apenas diga: “Não é algo certo, é passageiro”. Deixe-a, deixe de lado. Usando o Dhamma do Buddha, tudo se resume a isso. Não é que seja meramente um fenômeno momentâneo. Seja parado, caminhando, sentado ou deitado, você vê tudo desse modo. Se o gostar surge ou a aversão aparece, você vê tudo da mesma maneira. Isso é chegar mais perto do Buddha, próximo do Dhamma.

Agora eu percebo que essa é uma forma mais valiosa de praticar. Toda a minha prática desde os primeiros dias até o tempo presente tem sido assim. Na realidade, não confiei nas escrituras, mas afinal também não as desconsiderei. Eu não confiei em um professor, mas também não exatamente eu “segui sozinho”. Minha prática era sempre “nem isso nem aquilo”.

Sinceramente, é uma questão de “completar”, isto é, praticar até o final, por meio de assumir a prática e então levá-la até a conclusão, vendo o aparente e também o transcendente.

Já falei sobre isso, mas algum de vocês pode estar interessado em ouvir novamente: se você praticar consistentemente e considerar as coisas de maneira profunda, você eventualmente chegará a esse ponto… Primeiro você corre para ir adiante, corre para ir para trás, corre para parar. Você continua a praticar dessa forma até que você chega no ponto em que tudo parece que ir adiante não é assim, voltar não é assim, parar não é assim. Esse é o final. Não espere nada além disso, termina aí. Khīnāsavo – aquele que está completo. Ele não vai adiante, não recua e não para. Não há parada, não há ir adiante ou voltar. Está acabado. Considere isso, perceba isso claramente, na sua própria mente. Exatamente aí você descobrirá que nada há realmente.

Se isso é antigo ou novo para você, depende de você, da sua sabedoria e discernimento. Aquele que não tem sabedoria ou discernimento não poderá descobrir. Basta dar uma olhada em árvores, como mangueiras ou jaqueiras. Se elas crescem num arvoredo, uma árvore pode ficar maior primeiro e depois as outras se afastarão, crescendo para longe dessa maior. Porque aconteceu isso? Quem lhes diz para fazer aquilo? Isso é natureza. A natureza contém tanto o bem como o mal, o certo e o errado. Pode se inclinar para o certo ou se inclinar para o errado. Se plantarmos qualquer tipo de árvores muito juntas, as árvores que amadurecem mais tarde se afastarão da árvore maior. Como acontece isso? Quem o determina assim? Isso é natureza ou Dhamma.

Do mesmo modo, tanhā, o desejo, nos leva ao sofrimento. Agora, se o contemplarmos, isso nos levará para fora do desejo, superaremos tanhā. Ao investigar tanhā, vamos agitá-lo, tornando-o cada vez mais leve e mais leve até que todo desejo desapareça. Do mesmo modo que as árvores: alguém pede que cresçam da forma que elas fazem? Elas não conseguem falar ou se movimentar e, no entanto, elas sabem como se afastar dos obstáculos. Sempre que estiver num local apertado e cheio, crescer será difícil, elas então se dobram para fora.

Aqui está o Dhamma, não precisamos olhar muito. Aquele que é astuto verá o Dhamma nisso. As árvores, por natureza, não sabem nada, agem segundo as leis naturais, mas sabem o suficiente para se afastar do perigo, inclinar-se para um lugar mais adequado.

Pessoas reflexivas são assim. Nós seguimos na vida itinerante porque queremos transcender o sofrimento. O que é que nos faz sofrer? Se seguirmos a trilha para nosso interior, descobriremos. As coisas que gostamos e as coisas que não gostamos são sofrimento. Se elas são sofrimento, então não chegue tão perto delas. Você quer se apaixonar pelas condições, ou odiá-las?… Elas são todos impermanentes. Quando nos inclinamos na direção do Buddha, tudo isso chega ao fim. Não se esqueça disso. E pacientemente persista. Apenas esses dois são suficientes. Se você tem esse tipo de entendimento, isso é muito bom.

Na verdade, na minha própria prática, eu não tinha um professor para dar tantos ensinamentos quanto todos vocês recebem de mim. Eu não tinha muitos professores. Eu fui ordenado em um templo comum de aldeia e vivi em templos de aldeias por alguns anos. Na minha mente, eu concebi o desejo de praticar, queria ser proficiente, queria treinar. Não houve ninguém que desse ensinamentos nesses mosteiros, mas a inspiração para a prática surgiu. Viajei e olhei ao redor. Eu tinha ouvidos, então eu escutei, eu tinha olhos, então eu olhei. O que quer que eu ouvisse as pessoas dizerem, eu dizia a mim mesmo: “Não é algo certo!’”. Tudo o que vi, disse a mim mesmo: “Não é algo certo!”, ou quando a língua entrou em contato com sabores doces, azedos, salgados, agradáveis ou desagradáveis, ou sentimentos de conforto ou dor que surgiram no corpo, eu dizia a mim mesmo: “Esta não é uma coisa certa!” E então eu vivi com o Dhamma.

Na verdade é tudo incerto, mas nossos desejos querem que as coisas sejam certas. O que podemos fazer? Nós devemos ser pacientes. A coisa mais importante khanti, a constância paciente. Não atire ao Buddha, o que chamo de “incerteza” – não atire assim.

Às vezes eu via velhos locais religiosos com prédios monásticos antigos, projetados por arquitetos, construídos por artesãos. Em alguns locais eles estavam partidos. Talvez um dos meus amigos enfatizava: “Que vergonha, não é mesmo? Está quebrado”. Eu respondia: “Se não fosse o caso então não haveria algo como o Buddha, não haveria Dhamma. Está quebrado assim porque está perfeitamente em linha com os ensinamentos de Buddha”. Realmente dentro de mim eu também estava triste por ver aqueles prédios quebrados, mas eu jogava minha sentimentalidade de lado e tentava dizer alguma coisa que seria de bom uso aos meus amigos, e a mim mesmo. Embora eu também sentisse pena, ainda eu tendia em direção ao Dhamma.

“Se não estivesse em ruínas desse modo, então não haveria nenhum Buddha!”

Eu diria isso realmente para o benefício de meus amigos… ou talvez eles não estivessem ouvindo, mas eu estava.

Esse é um modo de considerar as coisas que é muito, muito útil. Por exemplo, digamos que alguém quisesse agitar e dissesse: “Luang Por! Você sabe o que o fulano disse sobre você?” ou “Ele disse isso e aquilo sobre você…” Talvez você começasse a ter raiva. Tão logo você ouve as críticas, você começa a sentir esses humores a cada passo do caminho. Tão logo ouvimos palavras como essas, podemos ficar prontos para retaliar, mas ao olhar para a verdade da questão, podemos achar que… não, eles disseram algo a mais, afinal.

E, então, é outro caso de “incerteza”. Então, por que devemos nos precipitar e acreditar nas coisas? Por que devemos colocar tanto nossa confiança no que outros dizem? Qualquer coisa que ouvirmos temos que tomar nota, ser pacientes, olhar dentro do assunto cuidadosamente… permaneça reto.

Não é qualquer coisa que aparece em nossas cabeças que escrevemos como algum tipo de verdade. Qualquer discurso que ignora a incerteza não é o discurso de um sábio. Lembre-se disso. Se é para sermos espertos, não estaremos mais praticando. Qualquer coisa que vemos ou ouvimos, seja isso prazeroso ou doloroso, apenas diga “Não é algo certo!” Diga isso. Esse é o ponto onde as impurezas morrem. Praticantes não devem dispensar isso.

Se você desconsidera esse ponto você pode esperar apenas sofrimento, esperar apenas enganos. Se você não faz disso uma fundação para a sua prática eventualmente você irá se enganar… mas então você voltará a acertar mais tarde, porque esse princípio é realmente muito bom.

Na realidade, o verdadeiro Dhamma, a essência do que estive falando hoje, não é tão misterioso. Tudo o que você experimenta é simplesmente forma, simplesmente sensação, simplesmente percepção, simplesmente volição e simplesmente consciência. Existem somente essas qualidades básicas, onde há qualquer certeza nelas?

Se compreendermos a verdadeira natureza das coisas dessa forma, luxúria, paixão e apego desaparecem. Por que eles desaparecem? Porque compreendemos, sabemos. Saímos da ignorância para a compreensão. Compreensão nasce da ignorância, saber nasce do desconhecer, pureza nasce da impureza. Funciona dessa forma.

Sem descartar aniccam, o Buddha – esse é o sentido de dizer que o Buddha continua vivo. Dizer que o Buddha entrou no Nibbāna não é necessariamente verdade. Em um sentido mais profundo, o Buddha continua vivo. É algo bem parecido com a nossa definição da palavra “bhikkhu”. Se definimos a palavra como “aquele que pergunta” [6], o significado é bastante amplo. Até podemos usar essa definição, mas não convém abusar dela porque corremos o risco de não saber quando parar de perguntar! Se quisermos definir essa palavra de uma maneira mais profunda, a definiríamos da seguinte maneira: “Bhikkhu – aquele que vê os perigos do samsāra”.

Isso não é mais profundo? Isso não vai na mesma direção da definição anterior, isso é muito mais profundo. A prática do Dhamma é dessa forma. Se você não entender isso profundamente, isso se tornará outra coisa novamente. Isso se torna sem preço, se torna uma fonte de paz. Quando temos sati nós estamos perto do Dhamma. Se tivermos sati nós veremos aniccam, o caráter transitório de todas as coisas. Nós veremos o Buddha e transcenderemos o sofrimento do samsāra, se não agora, em algum momento do futuro.

Se dispensamos os atributos do Nobres,  o Buddha ou o Dhamma, nossa prática se tornará estéril e infrutífera. Devemos manter nossa prática regularmente, quer estejamos trabalhando, assentados ou simplesmente deitados. Quando os olhos veem forma, os ouvidos ouvem sons, o nariz cheira um odor, a língua reconhece um sabor ou o corpo experiencia sensações… em todas as coisas, não dispense o Buddha, não se afaste do Buddha.

Isso é ser alguém que se tornou próximo do Buddha, que reverencia o Buddha constantemente. Nós temos as cerimônias para reverenciar o Buddha, tais como entoar de manhã Araham Sammā Sambuddho Bhagavā… Esta é uma maneira para reverenciar o  Buddha, mas não é reverenciar o Buddha de modo tão profundo quanto descrevi aqui. É o mesmo que ocorre com a palavra “bhikkhu”. Se a definirmos como “aquele que pergunta”, então, eles continuam perguntando… Porque está definido assim. Para definir da melhor maneira deveríamos dizer “Bhikkhu – aquele que vê o perigo do samsāra”.

Agora, reverenciar o Budhda é o mesmo. Reverenciar o Buddha apenas recitando as frases em pāli, como uma cerimônia nas manhãs e nas noites, é comparável a definir a palavra “bhikkhu” como “aquele que pede”. Se inclinarmos na direção de anicccam, dukkham e anattā [7] sempre que o olho vê a forma, o ouvido ouve, o nariz cheira a um odor, a língua prova um sabor, o corpo experimenta sensação ou a mente conhece as impressões mentais, em todos os momentos, isso é  comparável à definição da palavra “bhikkhu” como “aquele que vê os perigos do samsāra”. É muito mais profundo, atravessa muitas coisas. Se entendermos esse ensinamento, cresceremos em sabedoria e compreensão.

Isto é chamado patipadā. Desenvolva essa atitude na prática e você estará no caminho correto. Se você considera e reflete desse modo, mesmo que esteja afastado de seu professor, você ainda estará próximo a ele. Se você vive próximo dele fisicamente, mas sua mente não está conectada a ele,  você gastará seu tempo, ou procurando suas falhas ou bajulando-o. Se ele faz algo que seja apropriado a você, você diz que ele não é bom, e por fim até sua prática se enfraquece. Você não alcançará nada perdendo seu tempo procurando por outra pessoa. Mas se compreender esse ensinamento, você pode se tornar um “Nobre” no momento presente.

É por isso que neste ano [8] eu me distanciei dos meus discípulos, tanto velhos como novos, e não dei muitos ensinamentos: para que vocês possam todos olhar para as coisas por si próprios tanto quanto possível. Para os monges mais novos eu já estabeleci o cronograma e regras do mosteiro, tais como: “Não falem muito”. Não transgridam os padrões existentes, o caminho para a realização, fruição e Nibbāna. Qualquer um que transgrida esses parâmetros não é um praticante verdadeiro, nem mesmo quem tenha a pura intenção de praticar. O que essa pessoa pode esperar ver? Mesmo se ela dormisse perto de mim todos os dias ela não me veria. Mesmo se ela dormisse perto do Buddha ela não o veria, se ela não praticasse.

Então, conhecer o Dhamma ou ver o Dhamma depende da prática. Tenha confiança, purifique o seu próprio coração. Se todos os monges deste mosteiro colocassem conscientização nas suas respectivas mentes, não teríamos de repreender ou elogiar ninguém. Não teríamos que desconfiar ou favorecer ninguém. Se a raiva ou a aversão surgirem, apenas as deixem na mente, mas veja-as com clareza!

Continue observando essas coisas. Enquanto houver algo ali, significa que ainda temos que cavar e esmiuçar mesmo ali. Alguns dizem: “Eu não consigo cortá-lo, não posso fazê-lo” – se começarmos a dizer coisas dessas, haverá apenas um grupo de punks aqui, porque ninguém corta as suas próprias impurezas.

Você deve tentar. Se você ainda não puder cortá-las, mergulhe mais fundo. Cave nas impurezas, até arrancá-las. Cave-as, mesmo que pareçam difíceis e ágeis. O Dhamma não é algo a ser alcançado seguindo seus desejos. Sua mente pode ser de um jeito, a verdade pode ser de outro jeito. Você deve olhar para a frente e ficar atento ao passado também. É por isso que eu digo: “Tudo é incerto, tudo é transiente”.

Esta verdade da incerteza, esta curta e simples verdade, ao mesmo tempo tão profunda e sem falhas, as pessoas tendem a ignorar. Elas tendem a ver as coisas de forma diferente. Não se apegue a bondade, não se apegue à maldade. Estes são os atributos do mundo. Nós estamos praticando para ficarmos livres do mundo, então leve essas coisas para um fim. O Buddha ensinou a colocar de lado, abandoná-las, porque elas causam somente sofrimento.

Notas:

[1] Uma palestra informal que foi dada no kuti de Ajahn Chah, para alguns monges e noviços ao final de uma tarde em 1980.

[2] A parte central do código monástico, que é recitada a cada duas semanas na língua pāli.

[3] Devaputta Māra – Māra, ou Tentador, que surge de forma aparentemente benevolente.

[4] Os cinco khandhas: Forma (rūpa), sensação (vedanā), percepção (saññā), conceituação ou formações mentais (sankhārā) e consciência sensorial (viññāna). Estes compõem a experiência psicofísica conhecida como o “eu”.

[5] Anāgāmī (não-retornante): O terceiro “nível” da iluminação, que é alcançado pelo abandono dos cinco “grilhões inferiores” (de um total de dez) que conectam a mente à existência mundana. Os dois primeiros “níveis” são sotāpanna (”o que entrou na correnteza”) e sakadāgāmī (“o que retorna uma vez”), o último sendo arahant (“o honrado ou o realizado”).

[6] Isto é, quem vive dependente da generosidade dos outros.

[7] Transitoriedade, imperfeição e ausência de um dono.

[8] 2522 da Era Buddhista, ou 1979 EC.


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright
© 2017 Edições Nalanda

Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Tailândia.


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