~ Ajahn Chah

Hoje vou dar um ensinamento particularmente para vocês como monges e noviços, então, por favor, determinem seus corações e mentes para ouvir. Não há mais nada para falarmos além da prática do Dhamma-Vinaya (Verdade e Disciplina).

Cada um de vocês deve entender claramente que agora vocês foram ordenados como monges e noviços buddhistas e devem conduzir a si mesmos apropriadamente. Todos nós já experimentamos a vida leiga, que é caracterizada pela confusão e falta de prática formal do Dhamma; agora, assumindo a forma de um samaṇa buddhista  [1], algumas mudanças fundamentais devem ocorrer em nossas mentes, de modo que nos diferenciemos dos leigos em nosso modo de pensar. Devemos tentar fazer todos os nossos discursos e ações – comer e beber, se movimentar, ir e vir – condizentes com alguém que tenha sido ordenado como um buscador espiritual, a quem o Buddha se refere como um samana. O que ele quis dizer foi alguém que é calmo e contido. Antigamente, como leigos, não entendíamos o que significava ser um samana, essa sensação de paz e contenção. Nós demos licença total aos nossos corpos e mentes para se divertirem e jogarem sob a influência do desejo sedento e das impurezas. Quando experimentamos o ārammana [2] agradável, isso nos colocava em um bom humor, objetos mentais desagradáveis nos colocavam em um mau humor – é assim quando estamos presos sob o poder dos objetos mentais. O Buddha disse que aqueles que ainda estão sob o domínio dos objetos mentais não estão cuidando de si mesmos. Eles estão sem um refúgio, um lugar verdadeiramente duradouro, e assim deixam suas mentes seguirem os humores da indulgência sensual e da busca de prazer e são apanhados no sofrimento, na tristeza, na lamentação, na dor, no pesar e no desespero. Eles não sabem como ou quando parar e refletir sobre sua experiência.

No buddhismo, uma vez que recebemos a ordenação e assumimos a vida do samana, temos que ajustar nossa aparência física de acordo com a forma externa do samana: raspamos nossas cabeças, aparamos nossas unhas e vestimos as vestes marrons dos bhikkhus [3] – a bandeira dos Nobres, do Buddha e dos Arahants [4] . Somos gratos ao Buddha pelas fundações saudáveis ​​que ele estabeleceu e nos transmitiu, que nos permitem viver como monges e encontrar apoio adequado. Nossos alojamentos foram construídos e oferecidos como resultado das ações saudáveis ​​daqueles com fé no Buddha e em Seus ensinamentos. Nós não temos que preparar nossa comida porque estamos nos beneficiando das raízes estabelecidas pelo Buddha. Da mesma forma, herdamos os medicamentos, vestes e todos os outros requisitos que usamos do Buddha. Uma vez ordenados como monásticos buddhistas, no nível convencional, somos chamados de monges e recebemos o título de “Venerável” [5]; mas simplesmente ter assumido a aparência externa dos monges não nos torna verdadeiramente veneráveis. Ser monge no nível convencional significa que somos monges no âmbito de nossa aparência física. Simplesmente raspando nossas cabeças e vestindo vestes marrons somos chamados de “Veneráveis”, mas aquilo que é verdadeiramente digno de veneração ainda não surgiu dentro de nós – ainda somos apenas “Veneráveis” no nome. É como quando moldam o cimento ou bronze em uma imagem do Buddha: chamam-no Buddha, mas não é realmente. É só metal, madeira, cera ou pedra. É assim que a realidade convencional é.

É o mesmo para nós. Uma vez que tenhamos sido ordenados, recebemos o título de ‘Venerável bhikkhu’, mas isso, por si só, não nos torna veneráveis. No nível da realidade suprema – em outras palavras, na mente – o termo ainda não se aplica. Nossas mentes e corações ainda não foram totalmente aperfeiçoados, através da prática, com qualidades como mettā (bondade), karunā (compaixão), muditā (alegria apreciativa) e upekkhā (equanimidade). Nós não atingimos a pureza total por dentro. Ganância, ódio e ilusão ainda estão barrando o caminho, não permitindo que aquilo que é digno de veneração surja.

A nossa prática começa por destruir a ganância, o ódio e a ilusão – impurezas que podem ser encontradas dentro de cada um e em cada um de nós. É isto que nos mantém na roda do “tornar-se” e renascer, nos prevenindo de alcançar a paz mental. Ganância, ódio e ilusão impedem o samana – a paz – de surgir em nós. Tanto quanto esta paz não surge, não somos samana; noutras palavras, os nossos corações não experimentaram a paz que é livre da influência da ganância, ódio e ilusão. É por isto que praticamos – com a intenção de expurgar a ganância, ódio e ilusão dos corações. Somente quando estas impurezas são removidas é que podemos alcançar a pureza que é realmente venerável.

Internalizar aquilo que é venerável dentro do seu coração não envolve atuar apenas com a mente, mas com seu corpo bem como com sua linguagem. Eles devem funcionar juntos. Antes de praticar com seu corpo e linguagem você deve estar praticando com a sua mente. Contudo, se você simplesmente pratica com a sua mente, negligenciando corpo e linguagem, ambos não funcionam. Eles são inseparáveis. Praticar com a mente, até que ela seja tranquila, refinada e bela, é como produzir uma lâmina ou pilar de madeira acabada. Antes que possa obter um pilar que esteja nivelado, envernizado e atrativo, você deve primeiro, ir cortar a árvore. Então, você deve eliminar as partes grosseiras – as raízes e galhos – antes você deve separá-las, serrá-las e trabalhá-las. Praticar com a mente, é o mesmo que trabalhar com a árvore. Você tem de trabalhar primeiro com as coisas mais grosseiras. Você deve destruir as partes grosseiras: destruir as raízes, destruir a casca e tudo que não seja atraente para que se possa obter aquilo que é atraente e agradável aos olhos. Você deve trabalhar através do grosseiro para atingir a suavidade. Com a prática do Dhamma é o mesmo. Você foca na pacificação e purificação da mente, mas é difícil de se fazer. Você deve começar praticando no exterior – corpo e fala – trabalhando seu caminho para o interior até que você alcance aquilo que é suave, brilhante e bonito. Você pode compará-lo a um móvel acabado, como estas mesas e cadeiras. Elas podem ser atraentes agora, mas anteriormente eram somente pedaços grosseiros de madeira com galhos e folhas, os quais tiveram que ser aplainados e trabalhados sobre. É assim que você obtém móveis que são bonitos ou uma mente que seja perfeita e pura.

Portanto, o caminho certo para a paz, o caminho que o Buddha estabeleceu, que leva a paz mental e a pacificação das contaminações, é sīla (contenção moral), samādhi (concentração) e paññā (sabedoria). Este é o caminho da prática. É o caminho que direciona você à pureza e direciona você à percepção e incorporação das qualidades do samana. É o caminho para o abandono total da ganância, do ódio e da ilusão. A prática não se difere disso independentemente de que você a veja interna ou externamente.

Este modo de treinar e amadurecer a mente – que envolve os cânticos, a meditação, as palestras sobre o Dhamma e todas as outras partes da prática – lhes forçam a ir na direção contrária às impurezas. Vocês devem ir contra as tendências da mente, pois normalmente gostamos de levar as coisas tranquilamente, de ser preguiçosos e evitar qualquer coisa que nos cause atrito ou envolva sofrimento e dificuldade. A mente simplesmente não quer se esforçar ou se envolver. É por isso que vocês devem estar prontos para suportar dificuldades e gerar esforço para a prática. Vocês devem usar o dhamma da persistência e realmente se esforçar. Anteriormente seus corpos eram simplesmente veículos para diversão, e tendo construído vários tipos de hábitos não-saudáveis, é difícil para vocês começar a praticar com eles. Antes vocês não restringiam a fala, então agora é difícil começar a contê-la. Mas assim como a madeira, não importa o quão difícil ou problemático pareça: antes que possam transformá-la em mesas e cadeiras, precisam encontrar algumas dificuldades. Isso não é o mais importante; é apenas algo que devem experimentar ao longo do caminho. Vocês devem trabalhar através da madeira bruta para produzir a mobília acabada.

O Buddha ensinou que é assim que a prática é para todos nós. Todos os seus discípulos que haviam terminado o seu trabalho e se tornado totalmente iluminados, tinham sido (quando vieram pela primeira vez para ser ordenados e praticar com ele) primeiro puthujjanas (mundanos comuns). Todos eles tinham sido seres não iluminados comuns como nós, com braços e pernas, olhos e ouvidos, ganância e raiva – assim como nós. Eles não tinham qualquer característica especial que os tornasse particularmente diferentes de nós. Foi assim que o Buddha e os seus discípulos foram no começo. Eles praticavam e produziam a iluminação a partir dos não-iluminados, a beleza a partir da fealdade, e grande benefício a partir daquilo que era virtualmente inútil. Esse trabalho tem continuado através de sucessivas gerações até aos dias atuais. São os filhos de pessoas comuns – fazendeiros, comerciantes e empresários – que, antes envolvidos nos prazeres sensuais do mundo, avançam para a ordenação. Aqueles monges no tempo do Buddha foram capazes de praticar e treinar-se, e você deve entender que você tem o mesmo potencial. Você é constituído pelos cinco khandhas [6] (agregados), da mesma forma. Você também tem um corpo, sensações agradáveis e desagradáveis, memória e percepção, formações mentais e consciência – assim como uma mente errante e prolífera. Você pode estar consciente do bem e do mal. Tudo igual. No final, essa combinação de fenômenos físicos e mentais presentes em cada um de vocês, como indivíduos separados, difere pouco daqueles encontrados nos monásticos que praticaram e se tornaram iluminados por meio do Buddha. Todos eles haviam começado como seres comuns e não iluminados. Alguns até tinham sido gangsteres e delinquentes, enquanto outros tinham bons antecedentes. Eles não eram diferentes de nós. O Buddha os inspirou a prosseguirem e praticarem para o atingimento do magga (o Caminho Nobre) e phala (Realização) [7], e atualmente, de forma similar, pessoas como vocês são inspiradas a adotar a prática de sīla, samādhi e paññā .

Sīla, samādhi e paññā são os nomes dados aos diferentes aspectos da prática. Quando você pratica sīla, samādhi e paññā, significa que você pratica consigo mesmo. A prática correta acontece dentro de você. O sīla certo existe aqui, o samādhi certo existe aqui. Por quê? Porque seu corpo está bem aqui. A prática de sīla envolve todas as partes do corpo. O Buddha nos ensinou a ter cuidado com todas as nossas ações físicas. Seu corpo existe aqui! Você tem mãos, você tem pernas bem aqui. Este é o lugar onde você pratica sīla. Se suas ações estarão de acordo com sīla e Dhamma, depende de como você treina seu corpo. Praticar com o seu discurso significa estar ciente das coisas que você diz. Isso inclui evitar tipos errados de fala, ou seja, fala divisiva, fala grosseira e discurso desnecessário ou frívolo. Ações corporais erradas incluem matar seres vivos, roubar e conduta sexual inadequada.

É fácil contar a lista de tipos errados de comportamento como são encontrados nos livros, mas a coisa importante de entender é que o potencial para elas todas está dentro de nós. Seu corpo e fala estão com você bem aqui e agora. Você pratica contenção moral, que significa tomar cuidado para evitar as ações inábeis de matar, roubar e má conduta sexual. O Buddha nos ensinou a cuidar de nossas ações em seus níveis mais grosseiros. Na vida leiga você pode não ter tido uma conduta moral muito refinada e frequentemente transgrediu os preceitos. Por exemplo, no passado, você pode ter matado animais ou insetos esmagando-os com um machado ou um punho, ou talvez você não cuidou muito da sua fala: falso discurso significa mentir ou exagerar a verdade: discurso grosseiro significa que você está constantemente sendo abusivo ou rude com os outros – “seu estúpido”, “seu idiota”, e assim por diante: discurso frívolo significa tagarelice sem objetivo, falar estupidamente sem propósito ou substância. Nós nos entregamos a tudo isso. Sem restrição! Resumindo, manter sīla significa vigiar a si mesmo, observando suas ações e fala.

Então, quem estará vigilante? Quem assumirá a responsabilidade por suas ações? Quando você mata algum animal, quem é que sabe? É a sua mão que sabe ou é outra pessoa? Quando você rouba o que é propriedade de alguém, quem está ciente do ato? A sua mão é que sabe? É aqui que você precisa desenvolver a vigilância. Antes de você cometer algum ato de má conduta sexual, onde está sua vigilância? Seu corpo é que sabe? Quem é aquele que sabe antes de mentir, jurar ou dizer algo frívolo? A sua boca está plenamente atenta ao que diz ou aquele que sabe está nas próprias palavras? Contemple isto: aquele que sabe é aquele que tem que assumir a responsabilidade por seu sīla. Traga essa vigilância para monitorar suas ações e fala. Esse conhecimento, essa vigilância é o que você usa para monitorar sua prática. Para manter sīla, você usa aquela parte da mente que dirige suas ações e que o leva a fazer o bom e o mau. Você pega o vilão e o transforma em xerife ou prefeito. Controle a mente desobediente e faça-a servir e tomar responsabilidade por todas as suas ações e falas. Olhe para isso e contemple. O Buddha ensinou-nos a cuidar de nossas ações. Quem é que toma cuidado? O corpo não conhece nada; ele apenas fica parado, anda e assim por diante. As mãos, igualmente; elas não conhecem nada. Antes de elas tocarem ou agarrarem algo, deve haver alguém que dá as ordens. Enquanto elas levantam as coisas e as põem no chão, deve haver alguém dizendo o que fazer. As mãos por si sós não são conscientes de nada; tem de haver alguém dando as ordens. A boca, igualmente – o que quer que ela diga, se fala a verdade ou mentiras, se é rude ou gera discórdia, deve haver alguém dizendo o que ela fala. 

A prática envolve estabelecer sati, mindfulness, dentro desse “aquele que sabe”. O “aquele que sabe” é aquela intenção da mente, que previamente nos motivou a matar seres vivos, roubar pertences de outras pessoas, desfrutar de sexo ilícito, mentir, difamar, dizer tolices e coisas frívolas e dedicar-se em qualquer tipo de comportamento desenfreado. O “aquele que sabe” nos leva a falar. Isso existe dentro da mente. Foque sua vigilância ou sati – o constante relembrar-se – nesse “aquele que sabe”. Deixe que o entender tome conta de sua prática.

Na prática, as diretrizes mais básicas de conduta moral estipuladas pelo Buddha eram: matar é nocivo, uma transgressão de sīla; roubar é uma transgressão; má conduta sexual é uma transgressão; mentir é uma transgressão; a fala vulgar e frívola é uma transgressão de sīla. Vocês devem guardar isso na memória. É o código de disciplina moral, conforme estabelecido pelo Buddha, que lhe encoraja a ser cuidadoso com aquele dentro de você que é responsável pelas transgressões aos preceitos morais já cometidas. Aquele que foi responsável por dar a ordem para matar ou ferir outros, por roubar, por ter relações sexuais ilícitas, dizer coisas mentirosas ou nocivas e ser descontrolado de várias maneiras – cantando e dançando, festejando e curtindo por aí. Aquele que estava dando as ordens para ceder a todos esses tipos de comportamentos é aquele que você traz para observar a mente. Use sati, ou vigilância, para manter a mente recordando no momento presente e mantenha o autocontrole mental dessa maneira. Faça com que a mente vigie a si mesma. Faça isso bem.

Se a mente realmente conseguir cuidar de si, não será tão difícil refrear a fala e as ações, uma vez que ambas são supervisionadas pela mente. Observar sīla – em outras palavras, tomar conta das ações e da fala – não é algo tão difícil. Você mantém a consciência em cada momento e em cada postura, seja em pé, andando, sentando ou deitando. Antes de realizar qualquer ação, falar ou envolver-se numa conversa, garanta a consciência primeiro – não aja ou fale primeiro; estabeleça a vigilância e então aja ou fale. Você deve ter sati, fazer a rememoração, antes de qualquer coisa. Não importa o que vai dizer, primeiro faça uma rememoração na mente. Pratique isso até ficar fluente. Pratique até que você fique a par do que se passa em sua mente, a ponto de a vigilância não requerer esforço e você ter consciência antes de agir, antes de falar. É dessa forma que você estabelece a vigilância no coração. É com o “aquele que sabe” que você cuida de si porque todas as ações nascem daqui.

É aí que as intenções de todas as suas ações se originam e é por isso que a prática só é eficaz se você não tentar delegar o trabalho a alguma outra pessoa. A mente precisa se cuidar. Se ela não souber se cuidar, ninguém poderá fazer isso por ela. É por isso que o Buddha ensinou que não é tão difícil sustentar sīla, que nada mais é que cuidar da própria mente. Quando a vigilância é plenamente estabelecida, você saberá imediatamente sempre que disser ou fizer algo que prejudique a si mesmo ou aos outros. Você simplesmente sabe distinguir o certo do errado. É assim que você sustenta sīla. Você pratica com seu corpo e com sua fala começando no nível mais básico possível.

Ao observar sua fala e ações, estes se tornam amáveis e prazerosos aos olhos e ouvidos, enquanto você mesmo se mantém confortável e em paz com a contenção. Todo seu comportamento, maneiras, movimentos e fala tornam-se belos, porque você está tomando cuidado ao refletir a seu respeito, ajustar e corrigir seu comportamento. Você pode comparar isso com o lugar onde vive ou a sala de meditação. Se você está regularmente limpando e cuidando do lugar onde mora, então ambos, o interior e os arredores, causarão prazer aos olhos, ao contrário de uma bagunça perturbadora. Isso se deve ao fato de que há alguém cuidando dele. O mesmo ocorre com suas falas e ações. Se você está tomando conta deles, eles se tornam belos, e aquilo que é ruim ou impuro será impedido de surgir.

Ādikalyāna, majjhekalyāna, pariyosānakalyāna: belo no início, belo no meio e belo no final, ou harmônico no início, harmônico no meio e harmônico no final. O que isto significa? Precisamente que a prática de sīla, samādhi e paññā é bela. A prática é bela no início. Se o início é belo, então segue que o meio será belo. Se você praticar vigilância e a contenção até que se torne confortáveis e naturais para você – de forma que haja vigilância constante – a mente tornar-se-á firme e resoluta na prática de sīla e contenção. Ela estará consistentemente prestando atenção à prática e então se tornará concentrada. Esta característica de ser firme e inabalável na forma e disciplina monástica, e estável na prática da vigilância  e da contenção, pode ser referida como “samādhi”.

Esse aspecto da prática caracterizado por um cuidado contínuo, em que você está consistentemente cuidando de suas ações e fala, e assumindo a responsabilidade por todo seu comportamento externo, é referido como sīla. A característica de ser inabalável na prática da vigilância e da contenção ou cuidado é chamada samādhi. A mente está firmemente concentrada nesta prática de sīla e contenção ou cuidado com a mente. Estar firmemente concentrado na prática de sīla significa que há uniformidade e consistência na prática da vigilância e da contenção. Essas são as características do samādhi como um fator externo na prática, usado para manter sīla. De qualquer forma, também tem um lado interno mais profundo. É essencial que você desenvolva e mantenha sīla e samādhi desde o começo – você tem que fazer isso antes de qualquer outra coisa.

Uma vez que a mente esteja voltada para a prática e sīla e samādhi estejam firmemente estabelecidos, você será capaz de investigar e refletir sobre o que é saudável e insalubre – perguntando a si mesmo … ‘Isto está certo?’ … ‘Aquilo está errado?’ – à medida que experimenta diferentes objetos mentais. Quando a mente faz contato com diferentes formas, sons, odores, sabores, sensações táteis ou ideias, ‘aquele que sabe’ surgirá e estabelecerá a consciência de gostar e não gostar, felicidade e sofrimento e os diferentes tipos de objetos mentais que você experimenta. Você irá ver claramente, e ver muitas coisas diferentes.

Se você está atento, você verá os diferentes objetos que passam para dentro da mente e a reação que ocorre ao experimentá-los. Aquele que automaticamente os assumirá como objetos para a contemplação. Uma vez que a mente esteja alerta, e a atenção vigilante esteja firmemente estabelecida, você notará todas as reações exibidas através do corpo, da fala ou da mente, na medida em que os objetos mentais sejam experimentados. Aquele aspecto da mente que identifica e seleciona o bem do mal, o certo do errado, dentre todos os objetos mentais dentro do seu campo de consciência, é paññā. Esta é a paññā em seus estágios iniciais e amadurecerá como resultado da prática. Todos esses diferentes aspectos da prática surgem de dentro da mente. O Buddha se referiu a essas características como sīla, samādhi e paññā. É assim que são, como praticados no início.

À medida que você continua a prática, novos apegos e novos tipos de ilusão começam a surgir na mente. Isso significa que você começa a se apegar ao que é bom ou saudável. Você fica com medo de quaisquer defeitos ou falhas na mente – receoso de que seu samādhi seja prejudicado por eles. Ao mesmo tempo, você começa a ser diligente e a trabalhar duro e a amar e nutrir a prática. Sempre que a mente entra em contato com objetos mentais, você fica com medo e tenso. Você se torna consciente das falhas das outras pessoas também, até mesmo as pequenas coisas que fazem de errado. É porque você está preocupado com a sua prática. Isso é praticar sīla, samādhi e paññā em um nível – no lado de fora – baseado no fato de que você estabeleceu seus pontos de vista de acordo com a forma e os fundamentos da prática estabelecidos pelo Buddha. De fato, essas são as raízes da prática e é essencial que elas sejam estabelecidas na mente.

Vocês continuam praticando assim tanto quanto possível até que, eventualmente, cheguem ao ponto em que estejam constantemente julgando e criticando todos que encontrem, onde quer que vão. Vocês estarão constantemente reagindo com atração e aversão ao mundo ao seu redor, tornando-se cheios de todos os tipos de incertezas e continuamente se fixando a visões certas ou erradas do caminho para praticar. É como se ficassem obcecados com a prática. Mas vocês não precisam se preocupar com isso ainda – nesse ponto é melhor praticar muito do que pouco. Pratiquem muito e dediquem-se a cuidar do corpo, da fala e da mente. Vocês, na verdade, não podem praticar mais que o necessário. É dito para praticar sīla num nível; mas de fato, sīla, samādhi e paññā estão todos juntos.

Se você descrever a prática de sīla neste estágio, em termos de pāramī (perfeições espirituais) [8], isso seria dāna pāramī (a perfeição espiritual da doação), ou sīla pāramī (a perfeição espiritual da contenção moral). Esta é a prática em um nível. Tendo desenvolvido tudo isso, você pode ir mais fundo na prática até o nível mais profundo de dāna upapāramī [9] e sīla upapāramī. Estas surgem das mesmas qualidades espirituais, mas a mente está praticando em um nível mais refinado. Você simplesmente concentra e foca seus esforços para obter o refinado do grosseiro.

Uma vez bem estabelecida a sua prática, irá surgir no coração um profundo sentido de vergonha e medo por má conduta. Seja qual for o tempo ou lugar – em público ou privado – este medo por má conduta estará sempre na sua mente. Você fica realmente com medo de qualquer ação errônea. Essa é uma qualidade da mente que você mantém ao longo de cada aspecto da prática. A prática de mindfulness e contenção com o corpo, fala e mente e a consistente distinção entre certo e errado são aquelas coisas você mantém como objeto mental. Dessa maneira, você se torna focado e por firme e inabalável fixação a essa maneira de praticar, a mente se torna em sīla, samādhi e paññā – as características da prática como descritas nos ensinamentos convencionais.

Na medida em que você continua a desenvolver e manter a prática, essas diferentes características e qualidades são aperfeiçoadas simultaneamente na mente. Entretanto, praticar sīla, samādhi e paññā nesse nível ainda não é o suficiente para produzir os fatores para os jhanas [10] (absorção meditativa) – a prática ainda é pouco aperfeiçoada. Porém, a mente já está bastante refinada – na parte refinada, claro! Para uma pessoa comum, não iluminada (ou ignorante), que não zelava por sua mente ou praticava muita meditação e vigilância, somente este tanto já é algo bem refinado. É como uma pessoa pobre – possuir duas ou três libras pode significar muito, mesmo que para um milionário seja quase nada. É assim que as coisas são. Pouco dinheiro é muito quando se está na miséria e ansioso por dinheiro, e da mesma forma, mesmo que nos estágios iniciais da prática você somente seja capaz de libertar-se das impurezas mais grosseiras, isso parecerá bastante profundo para aquele que não é iluminado e que nunca praticou ou libertou-se das impurezas antes. Neste nível, você pode sentir satisfação em ser capaz de praticar até os limites máximos da sua habilidade. Isso é algo que você pode ver por si mesmo, é algo que pode ser vivido dentro da mente do praticante.

Se assim for, significa que você já está no caminho, isto é, praticando sīla, samādhi e paññā. Esses devem ser praticados juntos, pois se houver a falta de algum, a prática não se desenvolverá corretamente. Quanto mais sua sīla se aprimorar, mais estável a mente se torna. Quanto mais estável a mente fica, mais nítida se torna paññā e assim por diante. Cada um dos elementos da prática suportando e reforçando todos os outros. Finalmente, porque os três aspectos da prática são muito estreitamente relacionados um com o outro, esses termos se tornam praticamente sinônimos. Isso é característico de sammā patipadā (prática correta), quando você está praticando continuadamente, sem afrouxar seu esforço.

Se vocês estão praticando desta maneira, isto significa que entraram no caminho correto da prática. Vocês estão viajando através dos primeiros estágios do caminho – o nível mais grosseiro – que é algo bastante difícil de sustentar. À medida que aprofundam e refinam a prática, sīla, samādhi e paññā amadurecerão juntas a partir de um mesmo lugar – refinadas a partir da mesma matéria bruta. É como os nossos coqueiros. O coqueiro absorve água da terra e a leva para o alto através do tronco. Quando a água chega até o côco, ela já se tornou limpa e doce, mesmo que seja derivada da simples água do solo. O coqueiro é nutrido essencialmente pelos elementos grosseiros da terra e da água, que ele absorve e purifica, transformando-os em algo mais doce e mais puro do que antes. Da mesma maneira, a prática de sīla, samādhi e paññā – em outras palavras, Magga – possui inícios grosseiros, mas, como resultado do treinamento e do refinamento da mente através da meditação e reflexão, ela se torna progressivamente sutil.

À medida que a mente se torna mais refinada, a prática da vigilância torna-se mais focada, concentrando-se em uma área cada vez mais restrita. A prática realmente se torna mais fácil à medida em que a mente se volta mais e mais para o interior, concentrando-se em si mesma. Você não comete mais grandes erros ou caminha de maneira errante. Agora, sempre que a mente for afetada por um assunto específico, surgirão dúvidas – por exemplo, se agir ou falar de de um modo está certo ou errado – você simplesmente continua a deter a proliferação mental e, intensificando o esforço na prática, continua transformando sua mente, voltando sua atenção mais e mais profundamente para dentro. A prática do samādhi se tornará progressivamente mais firme e mais concentrada. A prática de pañña é aprimorada para que você possa ver as coisas mais claramente e com maior facilidade.

O resultado final é que você é claramente capaz de ver a mente e os seus objetos, sem ter que fazer qualquer distinção entre a mente, o corpo ou a fala. Você não precisa mais separar absolutamente nada – quer esteja falando sobre a mente e o corpo, ou a mente e seus objetos. Você vê que é a mente que dá ordens ao corpo. O corpo tem que depender da mente antes de poder funcionar. No entanto, a mente em si está constantemente sujeita a diferentes objetos que a contactam e a condicionam antes que ela possa ter algum efeito no corpo. Enquanto vocês continuam a dirigir a atenção para dentro e refletem sobre o Dhamma, a faculdade da sabedoria gradualmente amadurece, e eventualmente você fica contemplando a mente e os objetos mentais – o que significa que você começa a sentir o corpo, rūpadhamma (material), como arūpadhamma (imaterial). Através do seu insight, você não está mais tateando ou incerto na sua compreensão do corpo e do modo como ele é. A mente experiencia as características físicas do corpo como arūpadhamma – objetos sem forma – que entram em contato com a mente. Em última análise, você está contemplando apenas a mente e os objetos mentais – aqueles objetos que entram na sua consciência.

Agora, examinando a verdadeira natureza da mente, você pode observar que, em seu estado natural, não existem preocupações ou questões que prevalecem sobre ela. É como um pedaço de pano ou uma bandeira que foi amarrada na ponta de um mastro. Enquanto se mantiver sozinha e sem perturbações, nada acontecerá a ela. Uma folha em uma árvore é outro exemplo – normalmente ela permanece quieta e imperturbada. Se ela se move ou balança, isso deve ser por causa do vento, uma força externa. Normalmente, nada acontece com as folhas; elas permanecem imóveis. Elas não procuram se envolver com nada ou com alguém. Quando elas começam a se mover, isso deve ser por causa da influência de algo externo, como o vento, que as faz balançar para frente e para trás. Em seu estado natural, a mente também é assim – nela não existe amor ou ódio, nem busca por culpar outras pessoas. É independente, existindo em um estado de pureza que é verdadeiramente claro, radiante e imaculado. Em seu estado puro, a mente é pacífica, sem felicidade ou sofrimento – certamente, sem nunca experimentar qualquer vedanā (sensação). Este é o verdadeiro estado da mente.

O propósito da prática, então, é buscar interiormente, procurando e investigando até alcançar a mente original. A mente original também é conhecida como mente pura. A mente pura é a mente sem apego. Ela não é afetada por objetos mentais. Em outras palavras, ela não persegue os diferentes tipos de objetos mentais agradáveis e desagradáveis. Em vez disso, a mente está em um estado de contínuo conhecimento e vigília – completamente atenta a tudo o que experiencia. Quando a mente é assim, nenhum objeto mental agradável ou desagradável que ela experiencie será capaz de perturbá-la. A mente não “se torna” nada. Em outras palavras, nada pode abalá-la. Por quê? Porque existe conscientização. A mente se conhece como pura. Ela desenvolveu sua própria e verdadeira independência; ela alcançou seu estado original. Como ela é capaz de fazer surgir esse estado original? Por meio da faculdade da vigilância, sabiamente refletindo e vendo que todas as coisas são meramente condições surgindo da influência dos elementos, sem que nenhum indivíduo as controle. 

É assim que é com a felicidade e o sofrimento que experimentamos. Quando esses estados mentais surgem, eles são apenas “felicidade” e “sofrimento”. Não há um dono da felicidade. A mente não é a dona do sofrimento – estados mentais não pertencem a mente. Observe por você mesmo. Na realidade estes não são assuntos da mente, eles são separados e distintos. Felicidade é apenas o estado de felicidade: sofrimento é apenas o estado de sofrimento. Você é apenas o conhecedor deles. No passado, porque as raízes da ganância, ódio e da ilusão já existiam na mente, sempre que se visse o mais leve ou desagradável objeto mental, a mente reagiria imediatamente – você se apoderaria dela e teria de experimentar a felicidade ou o sofrimento. Você estaria continuamente se entregando a estados de felicidade e sofrimento, É assim que é enquanto a mente não se conhece – enquanto não é brilhante e iluminada. A mente não é livre. É influenciada por quaisquer objetos mentais que experimenta. Em outras palavras, é sem refúgio, incapaz de depender verdadeiramente de si mesma. Você recebe uma impressão mental agradável e fica de bom humor. A mente se esquece de si mesma.

Em contraste, a mente original está além do bom e do mau. Essa é a natureza original da mente. Se você se sente feliz por experimentar um objeto mental agradável, isso é ilusão. Se você se sente triste por experimentar um objeto mental desagradável, isso é ilusão. Objetos mentais desagradáveis o fazem sofrer, e agradáveis o fazem feliz – assim é o mundo. Objetos mentais vêm com o mundo. Eles são o mundo. Eles dão origem a felicidade e sofrimento, bom e mau, e a tudo o que está sujeito a impermanência e incerteza. Quando você se separa da mente original, tudo se torna incerto – há somente nascimento e morte intermináveis, incerteza e apreensão, sofrimento e dificuldade, sem qualquer modo de parar ou cessar isso. Isso é vatta (a roda interminável de renascimento).

Por meio de sábia reflexão, você pode perceber que está sujeito a velhos hábitos e condicionamentos. A própria mente na verdade é livre, mas você deve sofrer por conta dos seus apegos. Considere, por exemplo, orgulho e criticismo. Suponha que outra pessoa diga que você é burro: por que isso faz com que você sofra? É porque você sente que está sendo criticado. Você “pega” essa partícula de informação e preenche a mente com isso. O ato de “pegar”, acumulando e recebendo o conhecimento sem vigilância completa, dá origem a uma experiência que é como apunhalar-se. Isso é upādāna (apego). Uma vez que você tenha sido apunhalado, há bhava (vir-a-ser). Bhava é a causa para jāti (nascimento). Se você se treina para não notar ou atribuir importância para algumas coisas que outras pessoas dizem, tratando essas coisas meramente como sons que entram em contato com seus ouvidos, não haverá nenhuma forte reação e você não terá que sofrer, já que nada é criado pela mente. É como escutar um cambojano xingando você – você ouviria o som da sua fala, mas seria apenas som porque você não entenderia o significado das palavras. Você não estaria atento ao que está sendo dito a você. A mente não receberia aquela informação, seria meramente ouvir o som e permanecer relaxada. Se alguém criticou você em outro idioma que você não entendeu, você apenas ouviria o som da voz deles e permaneceria imperturbado. Você não absorveria o significado das palavras e se machucaria com elas. Uma vez que você tenha praticado com a mente em relação a esse ponto, isso torna mais fácil reconhecer o surgir e cessar da consciência momento a momento. Assim que você refletir desta maneira, penetrando cada vez mais profundo no interior, a mente se torna progressivamente mais refinada, indo além das impurezas mais grosseiras.

Samādhi significa a mente que está firmemente concentrada, e quanto mais você pratica, mais firme a mente se torna. Quanto mais firmemente a mente está concentrada, mais resoluta na prática ela se torna. Quanto mais você contemplar, mais confiante ficará. A mente se torna verdadeiramente estável – a ponto de não poder ser influenciada por nada. Você está absolutamente confiante de que nenhum único objeto mental tem o poder de abalá-lo. Objetos mentais são objetos mentais; a mente é a mente. A mente experimenta estados mentais bons e ruins, felicidade e sofrimento, porque é iludida por objetos mentais. Se não for iludida  por objetos mentais, não haverá sofrimento. A mente não-iludida não pode ser abalada. Este fenômeno é um estado de consciência, onde todas as coisas e fenômenos são vistos inteiramente como dhātu [11] (elementos naturais) surgindo e desaparecendo – apenas isso. Pode ser possível ter essa experiência e ainda assim ser incapaz de deixar passar completamente. Se você pode ou não pode deixar passar, não deixe que isso o incomode. Antes de mais nada, você deve pelo menos desenvolver e manter esse nível de consciência ou determinação fixa na mente. Você tem que continuar aplicando a pressão e destruindo impurezas por meio de um esforço determinado, penetrando mais e mais profundamente na prática.

Tendo detectado o Dhamma dessa maneira, a mente se recolherá a um nível menos intenso de prática, o que o Buddha e as escrituras buddhistas subsequentes descrevem como gotrabhū citta [12], que faz referência à mente que vivenciou ir além dos limites da mente humana comum. É a mente do puthujjana (indivíduo comum não iluminado) rompendo o reino do ariya (O Nobre) – no entanto, esse fenômeno ainda acontece dentro da mente do indivíduo comum não iluminado como nós mesmos. Gotrabhū puggala é alguém que, tendo progredido em sua prática até conquistar a vivência temporária de Nibbāna (iluminação), abstém-se dela e continua praticando em outro nível porque ainda não eliminou completamente todas as impurezas. É como alguém que está no meio da travessia de um riacho com um pé na margem próxima e o outro no ponto mais distante. Ele certamente sabe que há dois lados no riacho, mas não consegue atravessá-lo completamente e então dá um passo para trás. O entendimento de que há dois lados no riacho é similar àquele do gotrabhū puggala ou do gotrabhū citta. Isso significa que você sabe o caminho para ir além das impurezas, mas ainda não consegue chegar lá, por isso, volta. Uma vez que descobre por si mesmo que esse estado realmente existe, esse conhecimento permanece com você constantemente enquanto você continua a praticar meditação e a desenvolver seu pāramī. Você está certo do objetivo e da maneira direta de alcançá-lo.

Falando simplesmente, esse estado que surgiu é a própria mente. Se você contemplar de acordo com a verdade de como as coisas são, você pode ver que existe apenas um caminho e é seu dever segui-lo. Isso significa que você sabe desde o início que os estados mentais de felicidade e sofrimento não são o caminho a seguir. Isso é algo que você precisa saber por si mesmo – é a verdade das coisas como elas são. Se você se apega à felicidade, você está fora do caminho porque se apegando à felicidade isso causará sofrimento. Se você se apegar à tristeza, pode ser uma causa para surgir o sofrimento. Entenda isto – você já possui vigilância com a visão correta, porém ao mesmo tempo, ainda não é capaz de se libertar completamente de seus apegos.

Então, qual o modo correto para a prática? Você deve percorrer o caminho do meio, o que significa ter em mente os vários estados mentais de felicidade e de sofrimento, enquanto ao mesmo tempo mantendo-os a distância, fora de qualquer proximidade. Este é o modo correto de praticar – você mantém o estado de vigilância e de alerta apesar de ainda ser incapaz de abrir mão. É o modo correto, porque quando quer que a mente se prenda a estados de felicidade e sofrimento, o estado de alerta em relação ao apego está sempre lá. Isso significa que quando quer que a mente se agarre a estados de felicidade, você não os dá importância ou valor, e quando quer que ela se agarre a estados de sofrimento, você não critica. Dessa maneira, você pode observar a mente como ela realmente é. Felicidade não é correto, sofrimento não é correto. Há um entendimento de que nenhum destes é o caminho correto. Você está consciente, a consciência deles está sustentada, mas ainda você não consegue abandoná-los completamente. Você é incapaz de largá-los, mas você pode ter vigilância em relação a eles. Com a vigilância alcançada, você não dá valor indevido a felicidade ou ao sofrimento. Você não dá importância a nenhuma daquelas duas direções que a mente pode tomar, e você não tem dúvidas sobre isso; você sabe que seguir qualquer um daqueles caminhos não é o caminho correto da prática, então em todas as vezes você toma esse caminho do meio da equanimidade como o objeto da mente. Quando você pratica até o ponto onde a mente vai atrás da felicidade ou do sofrimento, a equanimidade vai necessariamente surgir como o caminho a seguir, e você precisa gradualmente percorrê-lo, pouco a pouco – o coração sabendo o caminho a seguir além das impurezas, mas, não estando ainda pronta para finalmente transcendê-los, ela retira-se e continua praticando.  

Sempre que a felicidade surge e a mente se apega, você tem que levar essa felicidade para a contemplação, e sempre que ela se liga ao sofrimento, você tem que levar isso para a contemplação. Eventualmente, a mente alcança um estágio no qual está plenamente consciente da felicidade e do sofrimento. É aqui que você será capaz de deixar de lado felicidade e sofrimento, prazer e tristeza, e deixar de lado tudo que é o mundo e assim tornar-se lokavidū (conhecedor dos mundos). Uma vez que a mente – “aquele que sabe” – possa se desapegar, ela se estabelecerá nesse ponto. Por que isso acontece? Porque você fez a prática e seguiu o caminho até aquele ponto. Você sabe o que tem que fazer para chegar ao fim do caminho, mas ainda é incapaz de realizá-lo. Quando a mente se apega à felicidade ou ao sofrimento, você não se deixa iludir por nenhum deles e se esforça para arrancar o apego de seu lugar.

Isso é praticar no nível do yogāvacara, aquele que está percorrendo o caminho da prática – esforçando-se para cortar as impurezas, mas não alcançado ainda o objetivo. Você se concentra nessas condições e na maneira como isso é momento a momento em sua própria mente. Não é necessário ser entrevistado pessoalmente sobre o estado da sua mente ou de qualquer coisa especial. Quando há apego à felicidade ou ao sofrimento, devemos ter um entendimento claro e certeiro de que qualquer apego a ambos os estados é uma ilusão. É apego ao mundo. É estar preso no mundo. Felicidade significa apego ao mundo, sofrimento significa apego ao mundo. É assim que o apego mundano é. O que é que dá origem ao mundo? O mundo é criado e estabelecido por meio da ignorância. É porque não estamos conscientes de que a mente atribui importância às coisas, formando e criando sankhāras (formações) o tempo todo.

É aqui que a prática se torna realmente interessante. Onde quer que haja apego na mente, você continua batendo naquele ponto, sem esmorecer. Se há apego à felicidade, você continua batendo, não deixando a mente se empolgar pelo hábito. Se a mente se apega ao sofrimento, se você se agarra a isso, efetivamente se atenha a isso e o contemple diretamente. Você está no processo de terminar o trabalho; a mente não deixa um único objeto mental passar sem refletir sobre ele. Nada pode resistir ao poder da sua vigilância e sabedoria. Mesmo que a mente seja presa de um estado mental insalubre, você o reconhece como insalubre e assim a mente não cede à negligência. É como pisar em espinhos: é claro, você não procura pisar em espinhos, tenta evitá-los, mas mesmo assim às vezes você pisa em um. Quando pisa em um, você se sente bem com isso? Você sente aversão quando pisa num espinho. Uma vez que você conheça o caminho da prática, significa que você sabe o que é o mundo, o que está sofrendo e o que nos liga ao ciclo interminável de nascimento e morte. Ainda que você saiba disso, você é incapaz de parar de pisar nesses ‘espinhos’. A mente ainda segue vários estados de felicidade e tristeza, mas não se entrega completamente a eles. Você sustenta um esforço contínuo para destruir qualquer apego na mente – para destruir e limpar tudo o que é o mundo da mente.

Você deve praticar neste preciso momento. Meditar agora mesmo; construir o seu pāramī já aqui. Este é o coração da prática, o coração do seu esforço. Você mantém um diálogo interno, discutindo e refletindo sobre o Dhamma dentro de si mesmo. É algo que toma lugar bem dentro da mente. Do mesmo modo que os apegos mundanos devem ser arrancados, a vigilância e a sabedoria penetram incansavelmente, e “aquele que sabe” mantém a conscientização com equanimidade, vigilância e clareza, sem se envolver com, ou tornar-se escravo de quem quer que seja ou qualquer coisa. Não ficar envolvido com as coisas significa conhecer sem apego – conhecer mantendo as coisas afastadas, deixando-as passar. Você ainda experienciará a felicidade, ainda experienciará o sofrimento, ainda experienciará os objetos mentais e estados mentais, mas não se agarrará a eles.

Uma vez que você vê as coisas como na verdade elas são, você conhece a mente como ela é, e você compreende objetos mentais como eles são. Você conhece a mente enquanto separada dos objetos mentais, e os objetos mentais enquanto separados da mente. A mente é a mente, objetos mentais são objetos mentais. Uma vez que você compreende esses dois fenômenos como eles são, sempre que eles apareçam juntos, você estará consciente deles. Quando a mente experiencia objetos mentais, a vigilância estará lá. Nosso professor descreveu a prática do yogāvacara como quem é capaz de manter tal consciência, seja caminhando, de pé, sentado ou deitado, como sendo um ciclo contínuo. Isso é sammā patipadā (prática correta). Você não se esquece de si mesmo, nem se torna negligente.

Você não observa simplesmente as partes mais rudes de sua prática, mas também a mente internamente, em um nível mais refinado. O que está no exterior, você deixa de lado. A partir daí, você está apenas observando o corpo e a mente, apenas observando esta mente e seus objetos surgindo e desaparecendo, vai entendendo que surgem e passam. Conforme passam, elas surgem novamente – nascimento e morte, morte e nascimento; cessação seguida de surgimento, surgimento seguido de cessação. Em última análise, você está simplesmente observando o ato de cessação. Khayavayam significa degeneração e cessação. Degeneração e cessação são o caminho natural da mente e seus objetos – isso é khayavayam. Uma vez que a mente esteja praticando e experienciando isso, ela não precisa seguir adiante ou procurar por qualquer outra coisa – ela estará se mantendo a par das coisas com vigilância. Ver é apenas ver. Saber é apenas saber. A mente e os objetos mentais são exatamente como são. É assim que as coisas são. A mente não está proliferando ou criando algo além disso.

Não fique confuso ou incerto em relação à prática. Não se deixe alcançar pela dúvida. Isso se aplica da mesma forma à prática de sīla. Como mencionei anteriormente, você tem que olhar para ela e contemplar se está certa ou errada. Tendo-a contemplado, então deixe-a lá. Não duvide dela. Praticar samādhi é a mesma coisa. Continue praticando, acalmando a mente pouco a pouco. Se você começar a pensar, isso não importa; se você não está pensando, isso não importa. O importante é ganhar uma compreensão da mente.

Algumas pessoas querem tornar a mente pacífica, mas não sabem o que é realmente a verdadeira paz. Elas não conhecem a mente pacífica. Existem dois tipos de tranquilidade – um é a paz que vem através de samādhi, o outro é a paz que vem através de paññā. A mente que é pacífica através de samādhi ainda está iludida. A paz que vem através da prática de samādhi por si só depende da mente estar separada dos objetos mentais. Quando não está experimentando nenhum objeto mental, então há calma e, consequentemente, a pessoa se apega à felicidade que vem com essa calma. No entanto, sempre que há impacto através dos sentidos, a mente cede imediatamente. Tem medo de objetos mentais. Tem medo da felicidade e do sofrimento; tem medo de elogios e críticas; medo de formas, sons, cheiros e gostos. Aquele que está em paz apenas através do samādhi é receoso de tudo, e não quer se envolver com nenhuma pessoa ou coisa externa. Aqueles que praticam samādhi dessa maneira querem apenas se isolar em uma caverna, onde podem experienciar a felicidade do samādhi sem sair de dentro dela. Onde quer que encontrem um local tranquilo, fogem sorrateiramente e se escondem. Esse tipo de samādhi envolve uma boa dose de sofrimento – essas pessoas têm dificuldade em sair do samādhi para estar com os outros. Não querem ver formas ou ouvir sons. Não querem experienciar coisa alguma! Devem viver em algum lugar silencioso especialmente preservado, onde ninguém irá perturbá-los com conversas. Têm de estar em um ambiente realmente sereno.

Este tipo de tranquilidade não trará resultado. Quando você tiver atingido o devido nível de calma, então se retire. O Buddha não ensinou a praticar o samādhi em ilusão. Se está praticando assim, então pare. Se a mente tiver atingido a calma, então use-a como base para a contemplação. Contemple a paz da concentração em si e use-a para se conectar à mente e refletir sobre os diferentes objetos mentais que ela vivencia. Utilize a calma do samādhi para contemplar imagens, cheiros, sabores, sensações táteis e ideias. Use essa calma para perceber diferentes partes do seu corpo, como o cabelo, os pêlos no corpo, unhas, dentes, pele e assim por diante. Contemple as três características do aniccam (impermanência), dukkham (sofrimento) e anattā (não eu). Reflita sobre todo esse mundo. Quando você tiver contemplado o suficiente, está tudo bem restabelecer a calma de samādhi. Você pode entrar novamente nessa calma por meio da meditação sentada e, posteriormente, com a calma restabelecida, continuar a contemplação. Use o estado de calma para treinar e purificar a mente. Use-o para desafiar a mente. Conforme você ganha conhecimento, use-o para lutar contra as impurezas, para treinar a mente. Se você simplesmente entra em samādhi e permanece lá você não ganha nenhum entendimento – você está simplesmente tornando a mente calma, e isso é tudo. No entanto, se você usa a mente calma para refletir, começando por sua experiência externa, essa calma gradualmente penetrará no interior mais e mais profundo, até que a mente experimente o estado mais profundo de paz.

A paz que surge através de paññā é diferenciada, porque quando a a mente retira-se do estado de calma, a presença de paññā faz com que ela seja destemida em relação a formas, sons, cheiros, sabores, sensações táteis e ideias. Isso significa que logo que houver senso de contato a mente está imediatamente atenta ao objeto da mente. Logo que houver senso de contado você coloca isso de lado; logo que houver senso de contado a vigilância é afiada o suficiente para abandonar imediatamente. Essa é a paz que vem através de paññā.

Quando você está praticando com a mente dessa forma, a mente se torna consideravelmente mais refinada do que quando você está desenvolvendo somente samādhi. A mente se torna muito poderosa e não tenta mais fugir. Com tal energia, você se torna destemido. No passado, você se assustava por experienciar qualquer coisa, mas agora você conhece os objetos mentais como eles são e não tem mais medo. Você conhece sua própria força mental e está sem medo. Quando você vê uma forma, você a contempla. Quando você ouve um som, você o contempla. Você se torna proficiente na contemplação de objetos mentais. Você está estabelecido na prática com uma nova ousadia, que prevalece em quaisquer condições. Quer sejam visões, sons ou cheiros, você os vê, os deixa passar, tais como ocorrem. O que quer que seja, você pode deixá-lo passar. Você claramente vê a felicidade e a deixa passar. Você claramente vê o sofrimento e o deixa passar. Onde quer que você os veja, você os abandona bem lá. Esse é o jeito! Continue abandonando-os e os colocando de lado ali mesmo. Nenhum objeto mental será capaz de manter um controle sobre a mente. Você os abandona lá e fica seguro em seu lugar de permanecer dentro da mente. Conforme você experimenta, você deixa de lado. Conforme você experimenta, você observa. Tendo observado, você deixa passar. Todos objetos mentais perdem seus valores e não são mais capazes de influenciar você. Este é o poder do vipassanā (meditação de insight). Quando essas características surgem dentro da mente do praticante, é apropriado mudar o nome da prática para vipassanā: claro conhecimento de acordo com a verdade. É tudo do que se trata – conhecimento de acordo com a verdade do jeito que as coisas são. Isso é paz no mais alto nível, a paz de vipassanā. Desenvolvendo paz através do samādhi sozinho é muito, muito difícil; constantemente se fica constantemente petrificado.

Então, quando a mente está na sua maior calma, o que você deve fazer? Treine isto. Pratique com isso. Use isto para contemplar. Não tenha medo das coisas. Não se apegue. Desenvolver samādhi para que você possa simplesmente sentar-se ali e se apegar a estados mentais felizes não é o verdadeiro propósito da prática. Você deve afastar-se disso. O Buddha disse que você deve lutar essa guerra, não apenas se esconder em uma trincheira tentando evitar as balas do inimigo. Quando é hora de lutar, você realmente tem que sair com armas em punho. Afinal, você tem que sair dessa trincheira. Você não pode ficar dormindo quando é hora de lutar. É assim que a prática é. Você não pode permitir que sua mente apenas se esconda, encolhendo-se nas sombras.

Sīla e samādhi formam a base da prática e é essencial desenvolvê-los antes de qualquer outra coisa. Você deve se treinar e investigar de acordo com a forma monástica e as formas de prática que foram transmitidas   

Seja como for, descrevi um esboço da prática. Os praticantes devem evitar se ater nas dúvidas. Não duvide do caminho da prática. Quando houver felicidade, observe a felicidade. Quando houver sofrimento, observe o sofrimento. Tendo estabelecido a consciência, faça o esforço para destruir ambos. Deixa eles passarem. Jogue-os de lado. Conheça o objeto que está na mente e deixe ele passar, desapegue. Se você quer fazer meditação sentada ou andando, isso não importa. Se você continuar pensando, não importa. O importante é manter a consciência da mente, momento a momento. Se você está realmente preso à proliferação mental, junte tudo isso e contemple considerando como um todo, interrompendo logo no início, dizendo: ‘Todos esses pensamentos, ideias e imaginações são simplesmente pensamentos de proliferação e nada mais. É tudo aniccam (impermanente), dukkham (sofrimento) e anattā (sem eu ). Nada disso significa nada’. Descarte isso ali mesmo.


[1] Recluso, monge ou santo – alguém que deixou a vida de casa para perseguir a Vida Superior.

[2] Objetos mentais; o objeto que é apresentado à mente (citta) a qualquer momento. Este objeto é derivado dos cinco sentidos ou direto da mente (memória, pensamento, sensações) . Não é o objeto externo (no mundo) , mas aquele objeto após ter sido processado pelas pré-concepções e predisposições de alguém.

[3] Bhikkhu: monge buddhista, mendicante.

[4] Arahant: digno de honrarias, alguém completamente iluminado.

[5] Venerável; em tailandês: ‘Phra’.

[6] Khandhas: Grupos ou agregados: forma (rūpa), sensação (vedanā), percepção (saññā), formações mentais (sankhārā) e consciências (viññāna). Esses grupos são os cinco grupos que chamamos de pessoa.

[7] Magga-phala: Caminho e fruição: os quatro caminhos transcendentes — ou, melhor, um caminho e quatro níveis diferentes de refinamento — que levam à “nobreza” (ariya) ou ao fim do sofrimento, ou seja, ao discernimento que rompe os grilhões (samyojana); e as quatro fruições correspondentes resultantes desses caminhos — referindo-se ao estado mental que penetra as impurezas e segue-se imediatamente à conquista de qualquer um desses caminhos.

[8] Pāramī: refere-se às dez perfeições espirituais: generosidade, contenção moral, renúncia, sabedoria, esforço, paciência, veracidade, determinação, gentileza e equanimidade.

[9] Upapāramī: refere-se às mesmas dez perfeições espirituais, mas praticadas em um nível mais profundo, intenso e pleno (praticadas no mais elevado grau, elas são chamadas de paramattha pāramī)

[10] Jhāna: Vários níveis de absorção meditativa. Os cinco fatores de jhāna são aplicação inicial e sustentada da mente, arrebatamento, prazer e equanimidade.

[11] Dhātu: Elementos, essência natural. As propriedades elementares que constituem a sensação interna do corpo e da mente: terra (material), água (coesão), fogo (energia) e ar (movimento), espaço e consciência.

[12] Gotrabhū citta: Mudança de linhagem (estado de consciência antes de jhāna ou Via).


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão dos detentores do copyright
© 2019 Edições Nalanda

Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem Theravada da Thailândia.


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