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~ por Sita Arunthavanathan ~
Alguns críticos têm uma tendência para definir o Buddhismo como uma religião de metas supramundanas, destituído do conceito de amor e apreço pela vida neste mundo. Mas o Tipiṭaka nos fornece ampla evidência de provas de que o Buddha considerou a vida em harmonia e solidariedade (Samagga Sammodamana Avivadamana), baseada no amor (mettā ou generosidade amorosa envolvente, muito mais que mero amor) algo fundamental para o ser humano.
Etimologicamente a palavra mettā quer dizer a Essência da Amizade – (mittassa sabhavo). Ou seja, um espírito solidário que é baseado não só em amor, mas em generosidade amorosa. Atualmente, em nosso linguajar coloquial, a palavra “amor” perdeu muito de seu significado. Mas mettā, quando considerada de sua perspectiva original, envolve todos os sentimentos humanos mais nobres que uma pessoa poderia nutrir por outra. Mettā (generosidade amorosa), Karunā (compaixão), Mudita (alegria altruística) e Upekkha (equanimidade), que são conhecidos como Brahma Vihāra ou os Quatro Incomensuráveis, formam a verdadeira base de todo o comportamento buddhista em termos de conduta ética e relacionamento. O espírito de amor e amizade definido por eles cobre um espectro muito mais amplo que o mero amor que supostamente estaria ausente no Buddhismo.
É mencionado no Samyutta Nikāya que, uma vez, o Ven. Ānanda aproximou-se do Buddha e comentou que “metade do caminho está baseado em amizade, companhia e associação com o bem”. Para o que o Buddha respondeu “Ven. Ānanda, não diga isto. Não meio, mas todo o caminho é estabelecido em amizade, companhia e associação com o bem”.
A atmosfera de amizade entre os bhikkhus era tão admirável e contagiante que o rei Ajatasattu, que não era tão propenso para o Buddhismo, fez este comentário, de acordo com Samananaphala Sutta do Dīgha Nikāya: “Os monges viviam em tal unidade, dialogando com mútua cordialidade….. mesclando-se como leite e água e vendo-se uns aos outros com tamanha generosidade…”, (Dhuta piya cakkhuhi sampassaman nirodha ki annamannam). Foi até mesmo mais adiante e disse: “Como seria agradável se meu filho Udayabhadda pudesse possuir essas qualidades também”.
Novamente, é relatado no Majjhima Nikāya que uma vez o Buddha questionou o Ven. Anuruddha sobre como os bhikkhus estavam se relacionando, e o Venerável respondeu assim: “Senhor, nós temos corpos diversos, mas certamente uma só mente”. (Na na hi kho pan a bhante kayam ekam ca kho manne cittam).
Dois tipos de amigos
No escopo do interesse leigo, o Tipiṭaka abunda com exemplos mostrando que a orientação de bons amigos é essencial para vida presente e futura. O Buddha descreveu dois tipos de amigos, Kalyana Mitta (o bom amigo) e o Papa Mitta (o mau amigo). Uma estrofe famosa no Dhammapada diz: “Não valorize a companhia de maus amigos ou amigos pouco confiáveis. Associe-se com os amigos bons e corajosos” (Na bhaje papake mitte-na bhaje purisadhame, bhajetha mitta kalyane-bhajetha purisuttame). Todos os pais deveriam incutir nas mentes de seus filhos e filhas o nobre conselho que essa estrofe transmite. O Buddha nos aconselhou a cultivar a solidão no caso de não podermos achar um amigo decente, mas nunca mantermos a companhia de um tolo (Eka cariyam dalham kariya-natthi balo sahayaka). O Mahāmangala Sutta enumera 38 condições abençoadas para guiar a pessoa na jornada da vida. Evitar a companhia de tolos é a primeira.
A amizade é uma força sem paralelo. Nenhum outro poder pode gerar qualidades tão boas em uma pessoa como a amizade. Após a fase em que tem os pais como exemplo, os filhos passam para os amigos esse papel.
O conselho do Buddha relativo a amigos, pode ser melhor compreendido ao contemplarmos o conteúdo do Sigalovada Sutta. Sigala, que teve pais buddhistas muito devotos, era indiferente à religião. O Buddha explicou, entre outras coisas, a diferença entre o bom e o mau amigo: Um inimigo no disfarce de um amigo, ou um Papa Mitta, toma as possessões de um amigo, faz falsos elogios, dá pouco e pede muito, associa-se para proveito próprio, tenta ganhar favores através de palavras vazias e quando a oportunidade para um serviço surge, ele dará uma desculpa e expressará sua inabilidade para fazer qualquer coisa. Um mau amigo também louva e aprova as ações ruins dos amigos e desaprova suas boas ações, ou não as percebe e incentiva. Ele louva o amigo em sua presença e o reprova na ausência.
O Buddha explicou mais adiante como um inimigo disfarçado de amigo (mitta patirupaka) provoca a ruína de uma pessoa de quatro modos: – Ele é um companheiro no entregar-se ao uso de embriagantes, que induzem à obsessão e negligência, ele é um companheiro no ato de vagar pelas ruas em horas impróprias, ele é um companheiro em frequentar espetáculos públicos e ele é um companheiro no jogo, que causa a ruína da pessoa.
Em seguida, o Buddha expõe para Sigala os quatro tipos de amigos que poderiam ser considerados como de bom coração e queridos: – Ele que é prestativo, que é o mesmo na felicidade ou na tristeza, dá bons conselhos e se compadece. (Upakaro ca ya mitto-yo ca mitto sukhe dukkhe dtthakkhayi ca yo mitto-ya ca-mittanukampike). Uma pessoa sábia que compreendeu esses quatro tipos de amigos, deveria apreciá-los, associar-se a eles e cuidar deles como uma mãe cuida de seu único filho (Etepi mitte cattaro-iti vinnaya pandita, sakkaccani payiru paseyya mata puttamva orasam).
De acordo com o Nettippakarana, há sete qualidades pelas quais você pode julgar um amigo. Ele deveria ser agradável e amável, respeitoso, servir de bom exemplo, de conversação útil, tolerante a críticas, capaz de diálogo profundo e nunca disposto a futilidades.
Hoje, a geração mais jovem tem uma tendência para evitar bons conselhos e aversão pela constatação de suas faltas até mesmo vinda de seus pais. Com relação a isso, uma estrofe no Dhammapada detalha um excelente conselho. “Alguém que mostra teus enganos, os declara como fraquezas e os condena, pense em tal pessoa como um revelador de tesouros. Associe-se com pessoas sábias dessa natureza” (Midhinam va pavattaram-yam passe vajja dassinam; niggayhavadim medhavi tadisam pabditam bhaje). Isso mostra que um amigo não deve sempre falar de modo doce e suave, mas pode recorrer à crítica construtiva.
Como Conquistar Amizades
O Buddha explicou como conquistar e manter amigos. “Sendo generoso pode-se, certamente, conquistar amigos (dadam mittani ganthati) e também sendo cortês e benevolente. Regozije-se nas realizações de seu amigo, louve qualquer ato recomendável e pontos fortes”. Mas o Buddha diz que se você fala somente da bondade de seu amigo, generosidade, grandeza e assim por diante, então você está em falta com ele. Nas relações de amizade, a fala deve ser sempre clara como as ações.
De acordo com o Jātaka Pāli, conquistar uma amizade é uma coisa, mantê-la é outra. Buddha não só deu conselhos inestimáveis para manter amizades, mas também tornar seus laços mais fortes.
A pessoa não deveria visitar muito frequentemente os amigos ou permanecer em sua casa além do que manda o bom senso. Se seu amigo der pela falta de algo, então poderá suspeitar de você. Isso transforma o amigo em inimigo. Visitar muito frequentemente um amigo, invariavelmente leva à fofoca, o que o envolverá em um redemoinho de dificuldades. Buddha diz que é igualmente ruim nunca visitar seus amigos. Você deve julgar por si próprio com que frequência você deve visitar seu amigo, quanto tempo você deve ficar e assim por diante. O Buddha deixa claro que uma amizade deteriora-se quando se exagera nos pedidos de favor, especialmente em maus momentos. Se você tem que pedir um favor, pelo menos que seja por um bom motivo e não de uma forma exigente. Pedir muitos favores, geralmente nos torna mais um incômodo do que um amigo.
Buddha ensinou que, se alguém quer provocar a própria ruína ou queda, ele deve se associar com um Papa Mitta ou os maus amigos que são os jogadores, libertinos, usuários de substâncias inebriantes, enganadores, caloteiros ou assassinos violentos. Os comentários buddhistas tradicionais definem um amigo assim: – “Um amigo é alguém cuja associação conduz ao crescimento espiritual, o protege do mal vindouro e interessa-se pelo seu bem-estar”.
Desta forma, o Buddhismo define os ingredientes básicos para nutrir uma amizade saudável, minimiza atritos e desgostos, promove a boa vontade e o companheirismo e, em última instância, leva ao cultivo do bem-estar aqui e agora e ao progresso espiritual conducente à realização da Felicidade Suprema do Nibbana.
A demonstração anterior de que, de fato, o Buddha adverte sobre as formas como devemos considerar a escolha, conquista e cultivo dos amigos, exposta no 6º Século antes da era cristã, ultrapassa todos os livros do século vinte com relação a esse assunto. E o conceito buddhista de amizade recorda-nos de uma sempre vibrante e perene força.
Traduzido por Jorge Luiz Furtado para a Comunidade Buddhista Nalanda
© 2006 Edições Nalanda
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Texto muito significativo e profundo concernente ao que significa ser amigo. O budismo é uma filosofia muito realista e só nos tem a nos ensinar.
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