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Não há cantos escuros de ignorância, nenhuma teia de mistério, nenhum recinto esfumaçado de segredo; não há “doutrinas secretas”, nenhum dogma escondido no ensinamento do Buddha, que é brilhante como a luz do dia e claro como cristal. “A doutrina e a disciplina proclamadas pelo Buddha brilham quando desnudas e não quando cobertas, assim como o sol e a lua brilham quando desnudos, e não quando cobertos”. (AN.i, 283).
O Mestre desaprovava aqueles que professavam ter “doutrinas secretas”, dizendo: “O segredo é o pátio de entrada das falsas doutrinas”. Dirigindo-se ao discípulo Ānanda, o Mestre disse: “Ensinei o Dhamma, Ānanda, sem fazer distinção entre a doutrina exotérica e esotérica; pois em respeito às verdades, Ānanda, o Tathāgata não tem nada como o punho fechado do professor que esconde algum conhecimento essencial do seu pupilo” [1].
Um Buddha é algo extremamente raro, mas não é nenhuma aberração na história humana. Ele não preservaria seu conhecimento supremo para si mesmo. Tal idéia seria completamente ridícula e abominável do ponto de vista buddhista, e ao Buddha um tal desejo é, em suma, inconcebível. Levado pela compaixão e amor universais, o Buddha expôs seu ensinamento sem resguardar nada do que era essencial para a libertação humana dos grilhões do samsāra, vagando repetidamente.
O ensinamento do Buddha é, do começo ao fim, aberto a todos que tenham olhos para ver e uma mente para compreender. O Buddhismo nunca foi forçado a ninguém na mira de um revólver ou de uma baioneta. Conversão compulsória era desconhecida entre buddhistas e repugnante ao Buddha.
Sobre o credo de compaixão do Buddha, H. Fielding Hall escreve em The Soul of a People: “Não pode nunca haver uma guerra do Buddhismo. Nenhum país arrasado já foi testemunha do poderio dos seguidores do Buddha; nenhum homem assassinado jorrou sangue em seus lares, matou em seus nomes; jamais mulheres arruinadas amaldiçoaram seu nome aos céus. Ele e sua fé estão livres da mancha de sangue. Era o pregador da Grande Paz, do amor e da caridade, da compaixão, e tão claro em seu ensinamento que não pode jamais ser incompreendido”.
Ao comunicar o Dhamma a seus discípulos, o Mestre não fez distinções entre eles, pois não havia discípulos especialmente favoritos. Entre seus discípulos, todos os que eram arahats, que estavam livres das paixões e haviam se libertado dos grilhões que os prendiam às renovadas existências, haviam igualmente se aperfeiçoado à pureza. Mas havia alguns que se destacavam em diferentes ramos do conhecimento e da prática, e por seus dotes mentais ganharam posições de distinção; mas o Mestre jamais granjeou favores especiais a ninguém. Upāli, por exemplo, que era da família de um barbeiro, foi tornado chefe dos assuntos disciplinares (vinaya) em preferência a muitos arahats que pertenciam à classe dos nobres e dos guerreiros (kshatriya). Sāriputta e Moggallāna, brāhmanas por nascimento, devido a suas duradouras aspirações em vidas prévias tornaram-se os discípulos-chefes do Buddha. O primeiro era excelente na sabedoria (pañña) e o último em poderes sobrenaturais (iddhi).
O Buddha nunca desejou extrair de seus discípulos fé cega e submissa nele ou em seus ensinamentos. Ele sempre insistia no exame discriminatório e na pesquisa crítica. Não foi em termos incertos que pressionou por investigação crítica quando se dirigiu aos Kālāmas num discurso que tem sido chamado, com razão, de primeira carta régia do pensamento livre:
“Vinde, Kālāmas. Não sigam a tradição oral, a linhagem dos ensinamentos, o ouvir dizer, uma reunião de escrituras, o raciocínio lógico, o raciocínio por inferência, a reflexão sobre as razões, a aceitação de uma visão após pensar nela, ao buscar a competência do falante ou porque vocês pensam ‘O asceta é nosso professor’. Mas quando vocês souberem por vocês mesmos, ‘Essas coisas são lesadas, essas coisas devem ser culpadas; essas coisas são censuradas pelos sábios; essas coisas, se tomadas e praticadas, levam ao dano e ao sofrimento”, então vocês as devem abandonar. E quando vocês souberem, ‘Essas coisas são incólumes, essas coisas são sem culpa; essas coisas são louvadas pelos sábios; essas coisas, se tomadas e praticadas, levam ao bem-estar e à felicidade’, então deveis vos empenhar nelas”.
Simplesmente confiar em alguma coisa não é o espírito do Buddhismo, então encontramos este diálogo entre o Mestre e seus discípulos: “Se agora, sabendo disso e preservando isso, disserdes: ‘Nós honramos nosso Mestre e por respeito a ele respeitamos o que ele diz?’ – ‘Não, Senhor’. – ‘Isso que vocês afirmam, ó discípulos, é nada mais que o que vocês mesmos reconheceram, viram e apreenderam?’ – ‘Sim, Senhor’.” [2]
O Buddha encarava fatos e se recusava a reconhecer ou ceder a qualquer coisa que não estivesse de acordo com a verdade. Não quer que reconheçamos qualquer coisa indiscriminadamente e sem razão. Ele quer que compreendamos as coisas como elas realmente são, investir o esforço necessário e resolver nossas próprias tribulações com a plena vigilância.
“Todo o esforço compete a vocês,
Os Tathāgatas mostram o caminho”.[3]
“Agitem-se, ativem-se, levantem-se,
Ao que o Buddha professa dêem seus peitos.
O exército do rei da morte abalem,
Feito o elefante à casa de sapê”[4].
O Buddha, pela primeira vez na história do mundo, ensinou que a libertação deve ser buscada independentemente de um salvador, humano ou divino. A idéia de que alguém traz um outro de uma posição inferior para uma superior na vida, e por fim o resgata, tende a fazer do homem indolente e fraco, passivo e tolo. Esse tipo de crença degrada o homem e sufoca cada centelha de dignidade de seu ser moral.
O Iluminado exorta seus seguidores a adquirir autoconfiança. Outros podem nos dar uma mão indiretamente, mas a libertação do sofrimento deve ser forjada e modelada por cada um de nós na bigorna de nossas próprias ações.
[1] Mahā Parinibbāna Sutta, DN. 16; II, 100.
[2] MN 38, I. 264.
[3] Dhp. 276
[4] SN. I., 156.
Texto maravilhoso. Pena que muitas pessoas tem uma visão totalmente distorcida do budismo.
Talvez não nessa vida, mas tenho certeza que um dia verei a doutrina do nosso mestre, o Buddha, sendo compreendidos por todos os povos do mundo de forma tão clara como o sol e a lua brilham quando desnudos…
Parabéns por mais esse texto belíssimo.
Fábio Gian, Belém-Pará
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