por Ajahn Sucitto

Toda manhã comemoramos o dia com um pūjā. É uma celebração do despertar do Buddha, um ato de louvor e reconhecimento. É uma oferenda. Então, terminados os cânticos, se nos mantivermos no espírito do pūjā e continuarmos a oferenda, isso vem a ser um yoga espiritual. Meramente cantar algumas palavras e depois esquecê-las assim que os cânticos terminam não é um verdadeiro exercício do espírito. Pode até mesmo haver uma rápida elevação da energia, mas se não nos lembrarmos do sentido, abandonamos a oferenda e também o espírito. Talvez tropecemos em pensamentos, percepções e sentimentos – nem tanto apreendendo-os, mas sendo agarrados por eles. Mas se pararmos para refletir sobre este ensinamento, este treinamento no Dhamma, então atinaremos para o fato de que se trata de envolver nossos corações, mentes e espírito muito completamente. É através disso que ativamos as cinco faculdades de suporte (indriya), tornando-as fortes, e trazendo à tona, de fato, o espírito do Despertar. A primeira faculdade é a da fé; e para isso serve o pūjā. O pūjā é uma oferenda, um trazer à tona, uma ativação do espírito.

Em nosso desenvolvimento espiritual, muito se enfatiza a concentração e a calma, mas precisamos promover a atitude correta – o elemento da fé – antes de começarmos a nos concentrar e acalmar. Ela dispersa a apatia que nos faz imaginar que estamos respirando de forma vigilante, mas, de fato, estamos caindo em um estado de estagnação em vez de calma. As coisas podem estar calmas, mas não é a calma de uma mente clara, não é uma calma desperta.

A fé nos traz um frescor, eleva a energia do coração e nos dá uma nova perspectiva. Sem a fé, tendemos a operar a partir de velhos hábitos psicológicos, de percepções pré-estabelecidas de nós mesmos, no tempo e no espaço, com todos os humores e as atitudes habituais. Vigilância (mindfulness) é apenas a habilidade de manter algo em mente de forma objetiva. Mas se calcarmos nossa vigilância na perspectiva de nossas personalidades, se trouxermos para a meditação atitudes a respeito de nós mesmos e nossos defeitos, necessidades e limitações, só isso já é agarrar, ou ser agarrado na experiência do ‘eu’. Sentando aqui, apenas investimos tempo na confirmação da pessoa que pensamos ser.

Todavia, se fizermos um puja sem estabilizar a mente e penetrar em nosso interior, então a fé não se estabelece. Simplesmente ‘viajamos’. Sem a recordação, em que se reflete sobre aquilo que move o coração e ao que este aspira, a experiência não tem sabedoria. Então nos apegamos a ela, desenvolvemos visões esotéricas sobre consciências cósmicas energéticas. Em vez de utilizarmos a vigilância para a sabedoria, desenvolvemos apego a rituais e sistemas – um grande obstáculo. Esta falta de reflexão estabelece um clima mental no qual a prática da meditação se torna mais um ritual que fazemos sem sensibilidade e sem integração com o nosso mundo pessoal. A meditação pode se tornar um modo de não nos relacionarmos de verdade ou de não experimentarmos nada em termos dos pensamentos e atitudes que precisamos penetrar com sabedoria. Então não estaremos plenamente despertos, mas somente enveredando por fantasias espirituais.

Então, o que vem a ser esta fé que se diz irromper? Como pode ser ela irrompida? Precisamos, propositalmente, fazer do pūjā nossa oferenda à Tríplice Joia – ao Buddha, Dhamma e Sangha – e ficar mentalmente alertas por meio da ativação e do exercício das faculdades espirituais. Isso é alcançado focando-se, primeiramente, nas qualidades do Buddha, rememorando seu Despertar e a benção que ele nos concedeu; introjetando isso de fato, e considerando-o à medida que toca o coração. Podemos nos lembrar do Buddha tocando a terra, trazendo o Despertar ao mundo, à consciência. Esse é um ato de compaixão e força. Essa lembrança não é uma crença que restrinja a mente, mas um jeito de tocar o coração. É no coração que ressoamos com e participamos do Buddha. O Buddha é o cerne da prática: O que é o Buddha agora, senão um Despertar para o presente com todos os seus mistérios e causas desconhecidas?

Em seguida, vem o Dhamma, a Honestidade Absoluta – uma qualidade sempre-presente, total, unificadora e absoluta; e que atende a todas as condições, quer sejam estas dolorosas ou prazerosas, sutis ou grosseiras, físicas ou mentais. É uma honestidade que somos encorajados a desenvolver e atinar por nós mesmos. Não temos que conceber esta honestidade, nem vir a sê-la, temos apenas que nos abrir a sermos verdadeiros com relação à experiência. Portanto, o Dhamma é convidativo; dá-nos as boas-vindas, não é algo distante ou indiferente. O Dhamma tem uma qualidade expansiva, amorosa: “Por favor, achegue-se até aqui”, em vez da atitude de “Não venha aqui com sua mente suja!” Este “ehipassiko, opanayiko” é algo que todos podemos experimentar; somos parte disso. Assim nos toca, faz emergir nossa fé. Somos convidados a nos inclinar ao Dhamma e deixá-lo nos sustentar. Se conseguirmos trazer esta reflexão até os nossos corações, nos abrimos a um grande movimento do espírito.

E então, vem a fé na Sangha. Esse é o potencial para que a experiência kármica localizada, pessoal, a que denominamos ‘mim, eu mesmo(a)’, associe-se com valor, propósito e integridade. Somos convidados a encontrar nossa autoridade, a assumir nossas vidas humanas inigualáveis.

O surgimento da fé, portanto, é quase miraculoso – ele provê uma ocasião na qual se experimenta um estado de inteireza e aceitação; ele proporciona esse tipo de realização.

A maioria das religiões reconhece e evoca este espírito do Divino, do Sublime, de Brahma, Atman, ou Deus, o Todo Poderoso, porém, daí, a mente pensante diz: “Mas como eu consigo isso?” é um movimento de fé. Para isso, relembrar estimula a fé e a energia, e ao experimentarmos sua força estável, reconhecemos que até mesmo a aspiração de estar com o Dhamma é Dhamma. Já é isto. Observamos aquilo que nos traz aqui: o que é que, de fato, nos motiva a reunir para um puja, ou a nos comprometer com a prática, ou a prosseguir na Vida Santa? O que é isso? Podemos pensar, “Eu quero fazê-lo”, ou, “Não acho que eu consiga fazê-lo.” Essas atitudes e pensamentos são as interpretações da mente que acredita haver um ser encarregado pela vida. Mas esse é apenas um ponto de vista habitual e não temos de operar com base nele o tempo todo. Isso não vai nos levar muito longe. E é apenas uma criação psicológica. Quem nasceu? Quem morre? Quem pode Despertar?

Sim, pergunte a si mesmo(a): o que é que nos urge a Despertar? Essa urgência, em si mesma, é um aspecto do Despertar. É também um aspecto essencial do Dhamma; é como o potencial para o Despertar procurando se manifestar. Participar de um puja é uma celebração, um reconhecimento e uma felicidade para nossa aspiração. Saímos de nossa estória pessoal, de nossa história e suposições a respeito de quem somos e do que irá acontecer amanhã. Saímos da recriação de nossa identidade histórica com suas falhas e dúvidas. O ato da fé é um ato de frescor, de nos relembrarmos, que significa, literalmente, reconstituir a mente [no inglês, ‘re-minding’], ou seja, não usar a mesma mente de sempre. Então poderemos testemunhar as coisas comuns de modo novo. Podemos notar nossa corporeidade, as sensações e energias no corpo. Podemos abordar a mente pensante com curiosidade: como funciona isso? Quem faz isso? De onde vêm os pensamentos e as sensações? Podemos ficar bastante presos a acreditar que somos estes pensamentos e sensações, ou que estamos neles, ou que precisamos consertá-los, ficar livres deles, aperfeiçoá-los… sentindo-nos bem a respeito disso e mal a respeito daquilo, sem saber o que fazer, tentando livrar-nos disso ou daquilo, ou simplesmente ignorando-os e perseguindo o arco-íris. Tudo isso provém da visão de si. Ao invés, podemos observar que Há sentimento; que há consciência… Então o que vem a ser isto? Como ocorre a visão? O que é isso que pode observar a visão? Ou conscientizar-se dos pensamentos, humores e sentimentos, e notar que estes mudam?

Portanto, o pūjā vem antes de qualquer sistema de meditação. É uma grande chacoalhada. É uma celebração e uma varredura para estabelecer e evocar a fé, a energia e a vigilância. Assim podemos sentir qual tema de meditação é o mais indicado, o que é que aguça o nosso interesse, se queremos penetrar mais profundamente no corpo ou tratar de alguns assuntos emocionais. Nesta recordação e reestruturação da mente [no inglês, ‘re-minding’], o espírito pode se aplicar a sensações de frescor ou calor, ou à respiração, ao passo que, com visão de si, nossa forma física permanece um simples pacote de carne.

Com visão de si, a mente pode estar simplesmente reciclando suas frases, humores e sentimentos habituais – como um velho papagaio desgastado, gritando sobre nossos ombros. Mas podemos colocar a mente a bailar, torná-la responsiva. Podemos ser espaçosos: o pensamento está lá, não aqui; o sentimento está lá, mudando, momento a momento. Tudo é somente uma dança imediata do momento presente. Este é o puja do espírito, por que não nos juntarmos a ele?

O Buddha se iluminou a partir dos cinco khandhas; por exemplo, a partir dos sentidos e memórias, notando como estes nos afetam, mudam e se movem; notando nossos pensamentos e impulsos como energias que surgem, devagar ou agitadas. Quando não seguramos ou nos agarramos aos agregados, estes se tornam uma base que nos permite atinar para a natureza dançante, momentânea da experiência. Quando há fé, esta suscita energia e nos dá espaço e perspectiva, a partir dos quais trabalhar, ao invés de nos deixar abater por algum hábito, humor ou tédio obsessivo. Podemos mover nossa atenção para a pele, para os ossos, para as costas, a cabeça, os olhos – até para o fato de que há consciência surgindo; consciência se movendo e sempre-mutante. Tudo isso pode ser examinado, de novo, observado claramente em suas qualidades mutáveis e evanescentes. Daí podemos nos voltar para os humores e energias, nos quais parecemos nos emperrar, com a habilidade de trabalhá-los. Fé e energia nos fornecem a possibilidade de mudar de reativos para responsivos. O movimento da energia, a contrição ou desequilíbrio – o que é necessário neste exato momento?

Assim, nós abordamos a meditação com vigilância e investigação. Estes são os dois primeiros fatores do Despertar, avenidas para o Incondicionado – porque nos mostram que as coisas estão mudando, que nenhuma delas é um ‘eu’; e nos mostram também como é insatisfatório agarrar-nos a pensamentos e sentimentos. Estes três gestos sempre nos guiarão e orientarão. Se experimentarmos insatisfação, será devido ao ato de agarrar. E coisas não podem ser agarradas. Na tentativa de apego, gera-se um ser frustrado. Mas com a mudança, vem a vibração do sentimento, o movimento do pensamento, o fluir das emoções e assim por diante.

Então, o que é que nota essas mudanças e consegue ficar com isto – com o olho que vê, com o ouvido que escuta – com um coração paciente, e a fé do espírito?  Este é um ponto de vista que se encontra fora das circunstâncias, mas que, ao mesmo tempo, apesar disso, é totalmente aplicável a elas. Portanto, para o bem-estar do mundo, podemos praticar estes caminhos do espírito a partir deste próprio corpo e mente; a partir do corpo, da mente e das seis esferas dos sentidos. Quando este mundo do qual parecemos ser o centro, este mundo de consciência, de formas e mudanças, é revisto com o espírito – quando o espírito se move através dele – então este mundo é um prazer, um local de realização, amor e imensidão. Adentrar-se nisto é a oferenda do pūjā – uma oferenda que abarca tanto nós mesmos quanto os outros.

 © Tradução do inglês de Rosana Lucas para o Centro Buddhista Nalanda, 2006


Ajahn Sucitto nasceu em Londres em 1949, e entrou em contato com o buddhismo ainda jovem quando se interessou pela literatura japonesa. Diplomou-se em Literatura inglesa e americana pela Warwick University em 1971, saindo em seguida para uma peregrinação ao Oriente. Em 1975 estava na Thailândia onde resolveu tentar a vida monástica. Depois de três anos vividos principalmente em Wat Kiriwong em Nakhon Sawan, encontrou Ajahn Sumedho. Quando voltou para a Inglaterra em 1978 a fim de visitar sua família, encontrou-se novamente com Ajahn Sumedho, resolvendo então treinar com ele.

Ajahn Sucitto estava entre o grupo original que fundou o Chithurst Monastery Cittavivekha em 1979, bem como alguns outros monastérios. Em 1992 tornou-se o responsável sênior do Chithurst Monastery onde reside até hoje.


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