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~ Ven. Ottama Sayadaw ~

Parte 6

O Alcance da Experiência Humana

Nós acessamos o “mundo externo” através das faculdades dos cinco sentidos e, talvez ocasionalmente, através da nossa intuição subdesenvolvida. Esses são os canais através dos quais nós recebemos informações sobre o nosso corpo e o meio ambiente. A partir destas imagens sensoriais, nossas mentes montam a imagem do nosso corpo e do “mundo fora dele”.

Se refletirmos profundamente sobre o alcance e o caráter da realidade, parece extremamente improvável, até mesmo de um ponto de vista estritamente científico, que os nossos órgãos sensoriais e percepções possam discernir tudo o que existe, que possam definir corretamente os limites da realidade. Considerando, por exemplo, os primeiros estágios da vida neste planeta e a forma como o aparelho sensorial das criaturas primitivas gradualmente se desenvolveu, parece óbvio que os nossos órgãos sensoriais preenchem um propósito biológico predeterminado: detectam apenas um fragmento muito estreito de entre todo o espectro da realidade, precisamente o fragmento que tem de ser reconhecido para permitir a nossa sobrevivência. Para lá desse segmento estreito existem dimensões da realidade que os nossos sentidos não conseguem apreender, um mistério escondido, obscuro e provocador, que podemos abordar apenas através do exercício incerto da inferência e da especulação.

A melhor ilustração para a nossa situação pode ser encontrada na física: ondas eletromagnéticas. Para aqueles não familiarizados com o assunto, deixe-me resumir rapidamente o assunto. Os vários tipos de ondas eletromagnéticas são muito diferentes, mas todos eles têm certas características comuns: todas viajam na velocidade da luz e são suscetíveis a interferências, etc. Começando com as frequências mais baixas, as ondas eletromagnéticas incluem ondas de rádio AM, ondas de TV, ondas de FM, radar, micro-ondas, luz infravermelha, luz visível, ultravioleta, raios X, radiação gama e raios cósmicos. O quantum principal através do qual elas são distinguidas é o comprimento de onda, que pode variar a partir de mais da metade de um quilometro, no caso das amplitudes mais longas de rádio, para cerca de 0,0005 milímetros para a luz visível (a faixa do meio), para baixo de 0,0000000000000001 milímetros para a radiação interestelar. E quão sensíveis são as faculdades dos sentidos humanos a todas essas ondas?

Não podemos perceber nem a transmissão de rádio nem a de TV, embora as vozes, música e imagens de milhares de programas literalmente penetrem nas nossas cabeças a cada segundo de nossas vidas. Nossos sentidos não registram nem o radar e nem os raios cósmicos. Percebemos a luz ultravioleta apenas quando temos uma queimadura de sol. Não sentimos nem mesmo as doses letais de radiação ou raios-X. De todo espectro de ondas eletromagnéticas a única parte que podemos perceber diretamente é o diminuto espectro de luz visível, que possui ondas de tamanho entre 0,0004 e 0,0008 mm e o calor infravermelho, de comprimento próximo, que mede aproximadamente de 0.0008 a 0.3 mm. Não é incrível?

Entendo os diferentes níveis do saṁsāra como diferentes “frequências” da realidade. Como as ondas eletromagnéticas de certas frequências invisíveis, outros planos de existência passam através de nós sem nos fazer pestanejar. De acordo com os textos buddhistas e da observação de pessoas dotadas de sensibilidade incomum, nós partilhamos esta terra com muitos seres invisíveis de nossa vizinhança saṁsārica. Com fantasmas e “divindades terrestres”, com duendes e demônios. Contos de fadas infantis e relatos de OVNIS talvez não sejam tanto ficção e fantasia como os verdadeiros registros de difusão saṁsārica. Os nossos ancestrais estavam provavelmente mais abertos, receptivos e sensíveis – mas também mais vulneráveis – a esse respeito, do que nós estamos. Hoje, mesmo se esses fenômenos atravessam os nossos sentidos, nós raramente os registramos, e se os notamos, não temos nenhum esquema conceptual útil a respeito deles. Nesta nossa época as nossas mentes estão intensa e estreitamente direcionadas para o “terrestre”, para as frequências puramente materiais da realidade.

É extremamente improvável que nós e os animais sejamos os únicos habitantes conscientes do “todo”. De acordo com as escrituras buddhistas, nossa realidade humana está na extremidade baixa da escala saṁsārica. As únicas esferas abaixo de nós são os animais, fantasmas, uma classe de demônios decaídos e vários infernos. Nossos vizinhos na direção superior são os céus da esfera dos seis sentidos. Todas as moradas abaixo do mundo humano, o próprio plano humano e as duas esferas celestiais abaixo são considerados o intervalo usual no qual nosso renascimento acontece. No curso da morte e renascimento, os seres sempre mudam seu plano de existência, de acordo com o kamma que se torna ativo no momento de sua morte. Os textos buddhistas sugerem que até o renascimento nos céus inferiores não são fáceis de serem atingidos, e muito mais raro é o renascimento nos planos superiores!

Os dezesseis reinos divinos “materiais sutis”, situados acima dos céus, são descritos nos textos como bem diferentes daquelas realidades normalmente conhecidas por nós. Esses planos materiais são considerados menos densos, e os mais grosseiros tipos de fenômenos materiais não aparecem de forma alguma. Os equipamentos sensoriais desses seres são destinados a captar somente sutis impressões visuais e auditivas, enquanto as suas funções mentais são muito mais refinadas do que as nossas. A expectativa de vida deles é contada em eras. As quatro esferas imateriais ou sem forma, localizadas acima deles no espectro cosmológico, são ainda mais refinadas. Como o nome sugere, aqui não há qualquer materialidade. Os seres sublimes que existem aí são formados unicamente de mente, sem qualquer mescla de corpo. Quando falamos sobre os vários reinos de existência no saṁsāra, sempre fazemos referência tanto a um tipo especial de mente quanto ao tipo correspondente de materialidade, com exceção parcial dos quatro reinos sem formas, onde há mente, mas não existem formações materiais, e uma “morada não sensitiva”, onde os seres têm corpos, mas não têm mente.

No saṁsāra o tempo é um fator muito relativo, fluindo de modo diferente em diferentes planos. Em todas as esferas acima do nosso plano humano, o tempo de vida aumenta exponencialmente em cada nível, mas é impossível para nós percebermos de que maneira é que esses seres percebem o tempo. Talvez haja uma relação direta entre a velocidade (relativa) do tempo e a densidade da mente e da matéria. Parece que quanto mais sutil o plano de existência, mais devagar é percebido o fluxo do tempo. Algumas passagens nas escrituras indicam que a experiência do tempo nesses planos difere enormemente da nossa própria experiência: no céu de Tavatiṁsa diz-se que cem anos humanos correspondem a um único dia.

Os períodos de vida nas esferas sem forma são os mais extensos; diz-se que se estendem entre 20000 a 84000 grandes éons (mahākappa). Um grande éon corresponde ao tempo necessário para que o nosso universo físico se desenvolva e se dissolva. Se desejarmos expressar o período de vida dos mais elevados deuses sem forma recorrendo a uma língua contemporânea, poderemos denominá-lo por um período cíclico de 84000 ‘big bangs’. O Nibbāna, todavia, não está incluído na escala do tempo, pois o Nibbāna é intemporal, sem um passado ou um futuro.

Se atravessarmos todo o espectro de reinos saṁsāricos da “base” ao “topo”, isto é, dos infernos até às esferas imateriais, movemo-nos em direção à crescente pureza, refinamento e sutileza da mente e matéria. Ao entrarmos no plano imaterial, o nível do ser torna-se sutil demais para suster matéria; aqui há apenas mente. Essa é também a direção da evolução na meditação samatha, o desenvolvimento de profunda concentração e absorção focada. A meditação samatha conduz a experiências sublimes, tais como a transcendência da sensualidade, a transcendência do sentido individual do ego, a sensação de ser um com todos em tudo, o sentido de infinitude e imensidão da consciência, etc. A “contraparte ontológica” dessas experiências é a existência nas esferas de matéria sutil e imaterial.

Neste ponto devo comentar que esse não é o rumo adquirido na prática de vipassanā ou meditação do insight, onde a pureza e aperfeiçoamento da mente não constituem o aspecto fundamental. A meditação vipassanā realmente requer certo grau de calma mental como base, mas uma profunda absorção não é essencial. A ação de vipassanā visa transpassar não apenas as camadas conceituais e os numerosos véus das criações mentais mais sutis além dos conceitos, mas em grau máximo, visa ainda transpassar as três cortinas da ignorância: a ilusão da permanência, a ilusão de uma felicidade saṁsārica verdadeira e a ilusão do “eu” como entidade duradoura, tais como “eu”, uma alma ou o “eu superior”, etc. O requisito para essa percepção não é a tranquilidade profunda ou a absorção mental, mas o completo desapego de todo e qualquer grau de experiência. Seu fruto: a erradicação completa do desejo.

 

Solidez

Estamos todos profundamente condicionados a perceber a matéria como sólida e substancial. No que se segue, irei deliberadamente “curvar” o nosso entendimento no sentido contrário a fim de evidenciar a insubstancialidade da matéria. O Abhidhamma Theravāda deixa em aberto a questão de se a existência ou não de matéria, em sentido último, é substancial. Com o amadurecimento do insight, o meditador percebe a realidade como um processo dinâmico de fenômenos mentais e materiais constantemente surgindo e desaparecendo. Chamar a materialidade nessa fase de substancial ou não substancial não expressa muito bem a realidade da experiência. No entanto, em minha opinião, a “imaterial” visão da materialidade está mais perto do alvo e expressa de forma mais adequada a natureza indescritível da matéria. Professores capacitados irão concordar que a matéria é a manifestação visível de qualidades e forças invisíveis.

O Buddha iria certamente desencorajar uma preocupação excessiva com esse tipo de reflexão, uma vez que a mente racional não pode abranger de forma satisfatória os níveis mais profundos da realidade. Eu incluí essa pequena digressão aqui, não para diversão intelectual, mas porque uma exposição do lado insubstancial da matéria permite tornar mais inteligível, para o leitor cético com formação científica, a visão buddhista do lado material do multivariado, multifacetado saṁsāra. Tenham uma boa excursão!

Pode surgir a pergunta: até que ponto os outros planos de existência são “sólidos”, “substanciais”, “compactos”? São os seres de lá, talvez um pouco transparentes? E se eles também têm pernas, não poderiam eles acidentalmente passar por através de outros? Eu penso que a experiência da matéria em outros planos não é, em princípio, diferente daquela do nosso próprio plano. A densidade do nosso mundo não decorre de qualquer solidez real da matéria em si, mas da nossa impressão subjetiva de sua solidez. Com o nosso nascimento no mundo humano, estamos em sintonia com uma “frequência” particular dos fenômenos mentais e materiais. Através da nossa ilusão inerente de solidez, nós experienciamos um objeto como sólido e substancial.

Nosso mundo nos parece ser tão real. Podemos construir casas com tijolos e as casas não desmoronam, podemos atravessar um rio sobre uma ponte e não cair dentro da água. Da mesma forma, os habitantes de outros domicílios percebem seus próprios mundos como reais, duros, sólidos, materiais.

Quando Thorwald Dethlefsen dava suas palestras para o público alemão costumava questionar a realidade substancial do nosso mundo. Ele ressaltou que, em sonhos, temos também um forte sentido de realidade material, apesar de que não pensamos nisso dessa forma. Em um sonho, quando somos perseguidos por inimigos, nós subimos as escadas e as escadas não desmoronam sob nossos pés. Quando estamos trancados em uma sala sem saída, não conseguimos escapar! Então, nós acordamos e tentamos rir com isso: “Ufa, era apenas um sonho”. Talvez sim, mas que tal o pijama encharcado de suor?

Diferentemente de muitos ensinamentos esotéricos, o Buddhismo Theravāda não defende que nosso corpo e ambiente físico são somente um tipo de alucinação coletiva. O “estilo” do ensinamento original do Buddha é sempre pragmático e evita as armadilhas teóricas em que facilmente se pode despender uma vida. A tradição Theravāda toma o mundo como real enquanto reconhece que há diferentes níveis de realidade. Eu uso a comparação com o sonho apenas para demonstrar de que maneira a aparente substancialidade do mundo material é relativa à nossa consciência.

Experimentos da física nuclear nos ensinaram que os átomos, os blocos construtivos da matéria, são extremamente vazios. Se um átomo de ferro fosse explodido até o tamanho de um estádio de futebol, o seu núcleo seria muito menor que uma bola de futebol, seria talvez do tamanho de um amendoim! A órbita dos elétrons ao redor do núcleo é praticamente imaterial – não muito mais do que o padrão dinâmico da energia. Mesmo no próprio núcleo, físicos mal conseguem encontrar algo de verdadeiramente sólido e material. É muito difícil para nós conciliarmos a imagem do vazio atômico – a de um amendoim nuclear a cada 300 metros – com a de usar um martelo para bater pregos em uma tábua de madeira, não é?

Na meditação avançada, conforme a vigilância se intensifica, a matéria é experimentada de modo mais preciso. A experiência convencional de objetos materiais torna-se “afiada” em quatro elementos primários (mahābhūta), cujos nomes simbolizam os quatro tipos de características materiais. O conceito de um objeto “dá um passo atrás”, ou mesmo se dissolve, e o meditante experimenta a realidade primordial da materialidade como dureza, maciez, peso, leveza, extensão, textura (equivalente a “terra”); fluidez, coesão (equivalente a “água”); calor, frio (equivalente a “fogo”); e pressão, movimento, distensão (equivalente a “ar”). Um número de qualidades secundárias como cor, odor, etc., também podem ser experimentadas.

Essas “propriedades imateriais” são a realidade última da matéria mas, em si mesmas, são todas insubstanciais: não há nada de sólido ou substancial na “dureza” ou no “peso”. No sentido mais abrangente não existe nada de sólido nem mesmo na noção de coisa sólida, e nada de material na definição de materialismo. É a nossa percepção, isto é, a nossa mente conceptual que, com base na percepção sensorial básica, cria uma imagem de um corpo substancial e material, de objetos materiais em nosso redor e de um universo sólido. [4]

[nota 4] Os princípios físicos básicos se aplicam mesmo a esse quadro não tão sólido do mundo. Os poucos yoguis que podiam voar pelo ar, sobre a água e afundar para dentro da terra eram raros mesmo na época do Buddha..

Ao nível da realidade última, a matéria é percebida como uma mera agregação ou “enxame” de grupos de qualidades materiais. Essa experiência direta da matéria difere radicalmente da nossa percepção cotidiana das coisas e objetos. Conforme o insight aprofunda, a experiência da materialidade muda junto com ele, revelando aspectos mais profundos da matéria que não podem ser adquiridos por mero pensamento. O que muda em primeiro lugar na percepção da matéria é a proporção de conceito que se sobrepõe à pura experiência. Conceitos são construções mentais criadas pela nossa mente.

Eles incluem todas as representações mentais de coisas, objetos, processos, ações, qualidades, etc. São como imagens ou fotografias de realidades supremas; elas próprias não são realidades supremas. Na nossa vida habitual a realidade nua dos estímulos sensoriais puros é quase que completamente coberta pela proliferação de ideias e conceitos interpretativos. Uma das principais funções da meditação vipassanā é remover essas camadas de verniz conceptual da experiência real, de forma a que possamos ver as coisas mais e mais claramente, cada vez mais ver as coisas como elas realmente são.

Os conceitos têm duas camadas ou níveis: primeiro, a camada da linguagem, palavras, nomes, pensamentos; e segundo, a camada de significação – as ideias das coisas significadas pelas palavras e expressões, as significações concebidas em nossas mentes. Os níveis verbais e não-verbais normalmente surgem em conjunto, um apoiando o outro. Às vezes, contudo, eles também podem ocorrer separadamente. Quando a verbalização interior cessa, isso não necessariamente põe um fim aos conceitos. Mesmo sem palavras, as nossas mentes podem vagar no domínio de significação conceitual, percebendo coisas em termos de sua familiaridade, aplicabilidade, utilidade, função e natureza desejável, e quanto às suas características salientes como forma, tamanho, localidade, peso, relações mútuas, etc. No Abhidhamma até a noção de tempo é classificada como um conceito.

Se, em nossa meditação, superamos nossa preocupação com conceitos e sintonizamos o processo de percepção, nossa experiência da matéria, assim como de outros objetos da consciência, se “desenrolará”, se desmontará em “gostos mentais” e em ideias (dhammas) momentaneamente surgindo e desaparecendo. Há muitas intensidades e muitos estágios desse “desenrolar”, dessa “separação” da macroexperiência em percepção microscópica dos constituintes básicos da realidade. Embora o fluxo da experiência continue, a mente para de criar os enfeites das construções mentais em volta dos impactos, dos gostos e das ideias; ela para de captar e de se identificar com a experiência. Então, reconhecemos essas ideias como “tijolos mentais” básicos de nossa realidade aparente. Nesse estágio, solidez também é vista como mera noção que faz com que as coisas sejam percebidas como reais e materiais.

Fazer com que as coisas pareçam tão sólidas é apenas uma das funções do chamado “elemento terra”. Somente quando a atividade de montagem e construção de nossas mentes é temporariamente trazida a uma pausa, podem os “sabores” e as noções mentais tornarem-se suficientemente distintas. Eles, então, assemelham-se às diferentes cores na paleta do artista, prontas para serem usadas para pintar o quadro seguinte, a cena seguinte do nosso mundo relativo. No nível mundano, falamos sobre nosso corpo, objetos materiais, nosso ambiente, o cosmo; no nível derradeiro, nos referimos apenas aos simples fenômenos materiais. Eu acho que vocês podem sentir a diferença.

Para mostrar de forma ainda mais diferenciada a mudança fundamental da realidade convencional para a realidade última, deixem-me trazer de novo o símile de um programa de TV. Existe uma história de vida constantemente em curso nas nossas mentes, uma história em que somos totalmente absorvidos, tal como somos absorvidos num show de TV. O objetivo da meditação vipassanā é ver a realidade tal como ela é; nos termos do símile, isso significa entender o trabalho do produtor do filme, do realizador, do roteirista, dos atores, dos operadores de câmera, dos técnicos de luz, dos editores. À medida que nossa compreensão e insight avançam, nós damos menos e menos importância à história em si, as imagens difusas na tela perdem o seu fascínio e nós começamos a perceber o próprio equipamento de TV ligado. Gradualmente notamos o tubo de TV e talvez até os pontos de luz alinhados ao longo da tela.

A verdadeira realidade de um filme de TV é tão pequena! A história toda é apenas uma obra de ficção escrita pelo autor, os amantes mortos do drama ainda estão muito vivos. Os papéis são simulados por atores profissionais, os diálogos nascem da mente do roteirista; uma variedade de efeitos especiais é usada ​​para aumentar a ilusão, a fim de seduzir os espectadores completamente. Enquanto nós estamos assistindo ao filme podemos ficar animados ou aflitos, ficarmos eufóricos ou chocados, mas tudo o que é real são os impulsos magnéticos na fita de vídeo no estúdio, as ondas de TV sendo transmitidas através do ar, o aparelho de TV ligado e os pontos tremeluzentes de luz correndo pela tela. Ainda mais drástica é a mudança da realidade mundana para a realidade última.

No entanto, não devemos pensar que a esfera mundana é inteiramente irreal. Existe a compreensão errada. Erros e enganos são fatos. As ações produzem resultados; a lei de causa e efeito é funcional. Os equívocos também têm a sua parte de realidade, e se cairmos nós neles, teremos de enfrentar as consequências. É a ilusão que nos mantém presos no saṁsāra e não a realidade última. A correta percepção é idêntica ao insight vipassanā.

Há mais um assunto que nós ainda não discutimos, nomeadamente, a chamada:

 

“Matéria Objetiva”

Por “matéria objetiva” quero dizer “algo lá fora” a partir do qual nossos sentidos recebem as impressões e sinais. Não há dúvida de que nossa mente interpreta todos os estímulos sensoriais à sua própria maneira, de acordo com o nível e a frequência da realidade com a qual está em sintonia. Mas, o que são esses “objetos” que se impingem sobre os nossos sentidos? São eles alguma coisa objetiva? Se assim forem, até onde eles são objetivos?

Nas páginas anteriores, nós lidamos com a experiência da “matéria objetiva”, a qual muda de acordo com o nível do insight penetrante. Embora os textos buddhistas clássicos do Theravāda nunca discutam o tema exatamente nesses termos, ainda podemos traçar uma distinção entre, por um lado, os impulsos e noções com base nos quais nossa mente cria sua imagem do mundo material e, por outro lado, a “matéria objetiva” tal como ela é em si mesma.

Muitas perguntas cercam esta ideia de “matéria objetiva”: Será que esta “matéria” existe de forma independente? Pode ela existir sem a mente conhecedora? Será que ela existe mesmo? Ela está “lá fora” ou apenas em minha mente? Ela é a mesma para todos nós ou cada um de nós habita em nosso próprio mundo privado?

Enquanto o Abhidhamma do Theravāda considera a matéria como um dos paramattha-dhamma ou realidades últimas, ele não provê nenhuma resposta direta à questão de quão fielmente ou quão distorcida as nossas percepções sensoriais representam “objetos objetivos”, nem ao menos explora a questão se elas representam algum “objeto lá de fora”, de fato. O Abhidhamma deixa para o estágio de discernimento do próprio aluno elaborar as implicações e consequências ou deixar essas questões de lado como irrelevantes aos objetivos da libertação.

A ideia de “matéria objetiva” transcende totalmente o nosso entendimento. Não podemos imaginar materialidade sem qualquer camada de conceitos. A única coisa razoável que podemos dizer sobre ela é que não é o que parece ser: não no sentido de que um cinzel seria realmente macio ou um martelo de luz, mas no sentido de que seu modo de existência seria totalmente diferente de qualquer coisa que possamos, mesmo que remotamente, imaginar. Os objetos materiais seriam apenas feixes de campos magnéticos oscilantes ou perturbações diferentes na totalidade primordial.

Não podemos experienciar a matéria diretamente, como é “em si própria”, mas apenas como um objeto de consciência. Assim, a sua aparência em nossa mente estará sempre intimamente ligada ao tipo e ao nível da mente perceptiva. Na verdade, apenas podemos experienciar reflexos da “matéria objetiva” nas partes sensitivas de nossas faculdades sensoriais, onde estes estímulos causam mudanças físicas ou químicas: na retina dos nossos olhos, nos tímpanos dos nossos ouvidos, nos nossos receptores olfativos, nas nossas papilas gustativas, nos nossos nervos táteis. Esses impulsos são então transmitidos ao cérebro, onde são “traduzidos” em contatos sensoriais que se tornam objetos de percepção sensorial. Dessa forma, há uma grande distância entre a “garrafa” na minha mente e a formação específica da “matéria objetiva” à qual se refere esta noção.

O Abhidhamma reconhece a existência de materialidade “fora” da minha mente, e às vezes até mesmo como independente de uma mente que sabe, mas sempre o trata dentro do quadro de causalidade.

A matéria – ou rūpa, para usar a palavra mais precisa em pāli – consiste de quatro elementos primários (dhātu): terra, água, fogo e ar, juntamente com vários tipos de matéria secundária ou “derivada” (upadarūpa). Quando estudamos o Abhidhamma mais profundamente, vemos que esses elementos não são substâncias básicas, mas qualidades materiais ou modos de energia: dureza / maciez, fluidez / coesão, temperatura / maturação, e movimento / distensão. Os comentários do Abhidhamma ensinam que rūpa é composta de entidades submicroscópicas, comparáveis aos átomos, surgindo e desaparecendo em inimaginável rápida sucessão.

Essas entidades são chamadas kalapa, “pacotes” ou agrupamentos, um termo que indica que mesmo estas chamadas partículas elementares são elas próprias compostas. Cada kalapa é constituído por uma combinação dos quatro elementos primários e vários tipos de qualidades secundárias, sendo no mínimo quatro: odor, cor, sabor e essência nutritiva. Assim como podemos criar todo o espectro de cores misturando as três cores primárias, também toda a diversidade do mundo material surge a partir das diferentes combinações dos quatro elementos primários. Mesmo esses elementos não são partículas simples da matéria, como comumente entendido, mas “cristalizações” de energia. Se pensarmos na matéria nesses termos, isso irá nos lembrar de que a maneira como entendemos nosso mundo não é a única forma possível e certamente não a derradeira.

 

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o Autor

© 2011 Edições Nalanda


Nota: Ensinamentos sobre o Kamma” consiste de um ensaio moderno sobre a doutrina do kamma (skr. karma, ação) no Buddhismo, escrito pelo venerável Ashin Ottama Sayadaw. Ashin Ottama é monge buddhista e professor na linhagem de Mahasi Sayadaw, viveu no Mosteiro Bodhipala na Suíça e atualmente vive na Itália. Esteve em fevereiro de 2012 no Brasil a convite da Comunidade Nalanda.

 


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