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~ Ven. Ottama Sayadaw ~
Parte 7
A Solidez dos Fantasmas
Ao refletirmos acerca da solidez de outros planos de existência, entendemos melhor nossa própria realidade. Se a humanidade como a conhecemos constitui-se de “noções materiais” e conceitos, da mesma forma são os outros planos. Nosso mundo e vida são totalmente relativos; identicamente, a realidade dos outros planos é relativa também. Mas, por favor, sejam cautelosos diante disto: por mais relativo que possa ser nosso mundo, todas as coisas e acontecimentos em nossas vidas são reais e nossas ações possuem todas as consequências. Para aqueles aprisionados no saṁsāra o sofrimento é totalmente real.
As cores com que o Buddha retrata o saṁsāra são de fato pouco atraentes e, por vezes, até assustadoras: todos os reinos de existência mais elevados são muito pouco habitados; a maioria dos seres está presa nos reinos inferiores. A existência humana é um período de “feriado” saṁsārico. É dito que para a maioria das pessoas a existência pós-morte continua em reinos sub-humanos, enquanto que um renascimento celestial é conquistado apenas pelos poucos virtuosos.
Ao longo da história mestres espirituais tradicionais podiam usar com sucesso descrições de infernos como um meio hábil para motivar as pessoas à prática espiritual. Fora dos países buddhistas tradicionais, as pessoas hoje em dia se sentem inspiradas pelo Dhamma principalmente pelos seus valores positivos e ideais morais, como verdade, pureza, sabedoria e compaixão. Ainda assim, uma das questões deste capítulo permanece – segure sua cabeça com as duas mãos – o inferno parece real!
Não sei até onde vocês aceitam os ensinamentos do kamma-renascimento-saṁsāra e até onde vocês duvidam ou discordam deles. Mesmo se desacreditarem totalmente o que quase todas as grandes religiões e tradições espirituais do mundo proclamam de um jeito ou de outro, parem um pouco e tentem imaginar como seria se as religiões estivessem certas. Vocês não precisam acreditar. Apenas tentem imaginar isso em detalhe, junto com as consequências que isso teria para vocês.
Podemos abordar o “mundo exterior” através de nossos cinco sentidos e da mente – isso é tudo. Na meditação podemos vir a nos perceber como uma sala com cinco pequenas janelas. Pode levar algum tempo para percebermos que o cômodo não tem porta, que nunca podemos sair. Nesse ponto começamos a entender a verdadeira natureza do saṁsāra: vemos que estamos presos, desesperadamente presos, aprisionados! O Buddha ensinou o Dhamma com o claro propósito de nos mostrar o caminho de saída da prisão. Apenas em Nibbāna é que a prisão do saṁsāra, juntamente com o prisioneiro, cessam de ser.
Mais algumas palavras…
Um entendimento do kamma-renascimento-saṁsāra não é um requerimento absolute para a prática da meditação vipassanā. Ainda assim, é uma base bem útil e uma ajuda para nosso desenvolvimento ao longo do caminho. É a “moldura” do Ensinamento.
Em tempos recentes, muitos professores de Dhamma introduziram interpretações do Dhamma inovadoras que focam quase exclusivamente na vida presente e deixam a existência passada e futura mais ou menos “fora do quadro”. Eles chamam a atenção dos alunos para o presente, pois, no final das contas, a situação da angústia saṁsārica e a da vida presente têm basicamente as mesmas raízes. Nessas novas interpretações do Dhamma os ensinamentos do kamma, renascimento e saṁsāra assumem um papel bastante diferente. Kamma é visto pela sua perspectiva de “instante” e “médio prazo”; não são mostrados os resultados completos, mas apenas as tendências para certos tipos de resultados são mostradas como iminentes. O renascimento é usualmente explicado como o aparecimento e morte de cada momento-mental, às vezes como o aparecimento e morte do senso reflexivo do “meu próprio eu”.
Os planos estratificados da existência saṁsārica são tidos como representando diferentes estados mentais. O ódio e a agressividade são as chamas do inferno. A ganância obsessiva e a fome sensual são como um renascimento temporário na morada dos fantasmas. Quando o entorpecimento e a estupidez prevalecem em nossa mente, é como se tivéssemos renascido por algum tempo no reino animal. A mistura dos bons e dos maus estados mentais é a típica condição dos seres humanos. Quando somos invejosos e competitivos e nos sentimos impelidos a dominar os outros, nessa altura nós renascemos como demônios. O prazer sutil e sublime, iluminado pela inteligência brilhante, é comparável a um período passado em reinos celestiais. Os estados sublimes de absorção meditativa são apresentados como as qualidades da mente simbolizada nos textos antigos, pelas descrições floridas dos reinos abençoados dos deuses.
Essa interpretação pragmática e racional dos ensinamentos do kamma, renascimento e saṁsāra é, sem dúvida, lógica e coerente e, para muitos ocidentais (e também alguns buddhistas asiáticos), tem facilitado o acesso ao Dhamma. Sendo “prática” e “realista”, essa aproximação requer apenas uma mínima fé e tem, deste modo, provado ser um “meio habilidoso” efetivo para novatos ao Buddhismo, assim como para todos aqueles fechados à dimensão espiritual da mente.
Não quero menosprezar o valor e o significado dessa nova perspectiva. No mundo ocidental tem ajudado inúmeras pessoas a descobrirem uma relevância imediata no Dhamma e, com isso, conduzi-las ao estudo dos ensinamentos e à prática da meditação vipassanā. Contudo, devemos também estar conscientes das limitações dessa abordagem. Essa perspectiva não representa todo o ensinamento do Buddha. Concentra-se, pelo contrário, apenas em partes selecionadas da doutrina, que são adaptadas para uma finalidade especial. A inspiração e o encorajamento para a prática que poderíamos adquirir da nova abordagem pragmática, de forma alguma se iguala à que poderá advir da perspectiva original e integral. Para mim, pessoalmente, a formulação original dos Ensinamentos do Buddha foi muito útil e, ainda hoje, permanece como o sistema de referência que apoia a minha prática.
Há ainda mais razões para respeitar a formulação original e não distorcida do ensinamento. Se não fizermos caso da realidade do renascimento sem fim perdemos de vista as relações a longo prazo e as implicações kammicas das nossas ações. A lei do kamma será compreendida indistintamente, e nós ficaremos com uma imagem incorreta e incompleta da extensão da nossa aflição saṁsārica. Diagnosticaremos erradamente a nossa situação no saṁsāra e, consequentemente, poderemos escolher um remédio inadequado para o nosso mal-estar.
Se não tivermos em consideração a escala temporal proposta nos ensinamentos originais, poderemos não ser capazes de avaliar as diferenças entre os vários tipos de libertação que as diferentes tradições espirituais nos oferecem. Por exemplo, na absorção dos jhānas a mente torna-se exultante e refinada; experienciamos uma extraordinária liberdade interior e a sensação de individualidade separada poderá parecer que perde os seus limites. A sensação de unidade que daí resulta poderá então ser apercebida como a unio mystico, a união mística com Deus, que poderá levar o praticante a acreditar ter conseguido a libertação final e definitiva em relação à infelicidade saṁsārica.
De acordo com o Buddha, mesmo os estados mentais saṁsāricos mais elevados ainda são limitados em vários aspectos. Eles são condicionados; eles não garantem plena visão da natureza da mente, do corpo e do mundo; eles não penetram totalmente nos meandros da ignorância. Na visão do Buddha da total imensidão de tempo que se estende por incontáveis éons, a chamada existência “eterna” de deidades nos reinos divinos é reconhecida como apenas um período de vida extremamente longo que, certamente, no fim é seguido de um novo renascimento.
O resultado do renascimento é quase sempre incerto (ver Jātaka No. 318). Se o bom kamma for esgotado ou o kamma pesado se tornar ativo, o ser é obrigado a mergulhar em estados de existência inferiores, em estados de real miséria. Enquanto o processo de morte e renascimento continua não há um fim real para a situação samsárica.
Eu acho que vocês sabem onde eu quero chegar. Se o problema da insatisfatoriedade e do sofrimento diz respeito apenas à vida presente, e talvez à próxima, haveria muitas soluções à mão. Quase toda profunda e sincera tradição espiritual, pode oferecer orientação definitiva e ajuda ativa. Dificilmente haveria qualquer razão convincente para assumir as dificuldades e dores da prática vipassanā e trabalhar pela libertação ao longo do caminho do Buddha.
Muitos Picos no Monte Análogo
Alunos ocidentais que têm praticado diferentes correntes espirituais têm frequentemente a impressão de que todos os caminhos espirituais sérios levam ao mesmo objetivo. Essa ideia, contudo, é de difícil justificativa. Não apenas é difícil justificá-la do ponto de vista teórico, mas também não se encontra sustentada pela experiência de fato. Se, após contemplar algumas flores, surgir a conclusão de que todas as flores são iguais, as abelhas e as garotas não concordariam com você.
Pode ser verdadeiro que, no começo, os praticantes em muitas tradições espirituais diferentes, enfrentem semelhantes dificuldades iniciais. Eles devem superar as mesmas barreiras na prática e têm que passar etapas semelhantes de purificação. As distorções nas mentes das pessoas são mais semelhantes do que pensamos. Contudo, nas mais altas etapas da prática os caminhos diferenciam-se consideravelmente, e é também provável que algumas dessas diferenças fiquem implícitas também nas etapas iniciais. Os caminhos diferentes levam a realizações diferentes, tipos diferentes de libertação e resultados diferentes.
Podemos comparar o processo de desenvolvimento espiritual a escalar uma montanha enorme e inacessível, com elevações variadas, ravinas, fissuras e picos. Quando a observamos a distância ela nos parece apenas uma grande montanha, mas se nos aproximarmos, perceberemos mais claramente seus diversos detalhes. Além disso, ela parece bem diferente de cada direção e o pico do nosso lado sempre parece mais alto que os outros, ainda que não seja realmente. Essa é a lei da perspectiva. A paisagem espiritual é tão imensa e multifacetada!
As diferentes religiões e orientações espirituais são sempre parciais; elas não dão a imagem por inteiro da montanha. Mesmo o Buddha, propositadamente, não revelou tudo. No entanto, seu ensinamento reflete a mais ampla visão já conhecida em todos os tempos. Ele considera a mais ampla gama das dimensões, desde os componentes subatômicos até as incontáveis galáxias; também nos dá os mais detalhados relatos do tempo, variando desde momentos mentais de vida inconcebivelmente curta até éons, períodos de expansão e dissolução cósmica. Ele descreve as mais sutis distinções entre os vários tipos e “frequências” da existência saṁsārica, do mais grosseiro ao mais sutil. E o mais importante, ele mostra o caminho para fora do estado de total ignorância na direção da realização da mais alta sabedoria, do insight penetrante em relação à realidade última e à realização do Nibbāna.
Nessa imensa visão os princípios subjacentes do todo são tornados aparentes. O Buddha reconheceu que a insatisfatoriedade é universal, uma característica intrínseca permeando todos os tipos e níveis de existência no saṁsāra. Embora seja fácil ver o sofrimento nos tipos mais grosseiros de consciência e a angústia das formas inferiores de existência, é preciso o insight extremamente purificado e a visão profunda para ver o sofrimento sutil escondido mesmo nas sublimes absorções meditativas e nos reinos abençoados dos deuses mais superiores.
Meu objetivo em escrever este livreto foi o de ajudar a dissolver certos bloqueios, aflouxar alguns vieses, e clarear alguns preconceitos de modo a abrir, para o leitor pós-moderno, a amplitude original do Ensinamento do Buddha tal como ele ensinou. Comparado com a “nova abordagem pragmática”, isso é realmente uma dimensão inteiramente diferente. Curar nossa existência saṁsārica não é a mesma coisa que atingir uma vida saudável e bem sucedida desde a perspectiva da psicoterapia moderna.
Nossa motivação para a prática do Dhamma envolve diferentes tipos de inspiração. Algumas vezes, somos movidos pela beleza da sabedoria, pelos desafios do caminho espiritual, pela pureza do objetivo último. Podemos considerar a inspiração vinda desses impulsos como uma força que “puxa”. Outras vezes, somos impelidos pelo medo dos sofrimentos da vida, pelos terrores do saṁsāra. A inspiração vinda desses impulsos pode ser vista como uma força que “empurra”. Os diferentes tipos de inspiração não ocorrem ao mesmo tempo, mas é sábio abrirmo-nos para todos eles, de maneira que possamos nos mover de forma estável pelo caminho.
A essência dos ensinamentos do Buddha é extremamente frágil. Quando eu conheci o Dhamma pela primeira vez, alguns vinte e sete anos atrás, eu não poderia acreditar que este ensinamento sutil tinha sobrevivido nas mãos das pessoas por um período tão longo. As pessoas geralmente distorcem, alteram e deformam a verdade, até no mesmo dia. E aqui, existia um espaço de vinte e cinco séculos! Pode haver a necessidade de ajustar o Ensinamento ao nosso tempo, para explicá-lo, adaptando seus princípios à configuração mental dos estudantes ou ao nível da audiência. Mas é de crucial importância que a mensagem essencial do Ensinamento permaneça inalterada.
Não é fácil encontrar o caminho para fora da loucura do saṁsāra. Fazer isso significa que devemos estar frequentemente preparados para ir contra a corrente, para ir na contramão desse mundo. Se é para seguir esse caminho até o seu fim apropriado, então se deve verdadeiramente ser maduro, resoluto e sério.
A realização total do Dhamma, acompanhada da libertação completa e desapego total do coração, conforme descrito nos suttas antigos é, sem dúvida, muito, muito rara, de fato. Mas ainda existe. Até hoje uma estrofe de um dos raros Sayadaws reverbera profunda em minha mente: “Quando você olhar mesmo as esferas sublimes mais altas da existência, as formas de inteligência radiante e jubilosa como uma cuspideira, então você está pronto para o Nibbāna”.
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o Autor
© 2011 Edições Nalanda
Nota: “Ensinamentos sobre o Kamma” consiste de um ensaio moderno sobre a doutrina do kamma (skr. karma, ação) no Buddhismo, escrito pelo venerável Ashin Ottama Sayadaw. Ashin Ottama é monge buddhista e professor na linhagem de Mahasi Sayadaw, viveu no Mosteiro Bodhipala na Suíça e atualmente vive na Itália. Esteve em fevereiro de 2012 no Brasil a convite da Comunidade Nalanda.
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