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Palestra proferida na Celebração Internacional do Vesak nas Nações Unidas
7 de maio de 2012

Ven. Bhikkhu Bodhi

Veneráveis Membros da Sangha, Suas Excelências, Distintos Convidados.

Nós estamos aqui hoje reunidos no Auditório da Assembleia Geral nas Nações Unidas para celebrar o Vesak, o dia em que comemoramos o nascimento, iluminação, e o parinirvāna do Senhor Buddha. Por toda a sua longa história de 2600 anos, o Buddhismo tem contribuído de maneiras incalculáveis para enobrecer a humanidade. Tem oferecido uma orientação moral, um sistema de valores afinado, filosofias profundas, métodos de cultivo pessoal, e ideais inspiradores que expressam as mais altas visões do potencial humano. Das suas origens no norte da Índia, espalhou-se por toda a Ásia e tornou-se no coração espiritual das maiores culturas asiáticas. Nos últimos dois séculos, a sua mensagem universal falou às pessoas de todos os continentes tendo agora ganhado um maior número de adeptos no Ocidente.

No entanto, não é suficiente que nos orgulhemos das elevadas contribuições que o Buddhismo trouxe do passado. Somos hoje chamados à solene tarefa de determinarmos como o Dharma pode contribuir para o futuro da humanidade. Esta tarefa é especialmente crítica porque os desenvolvimentos globais levantam a questão sobre a perspectiva da continuidade da presença humana no mundo. Assim, a missão que se nos depara, como seguidores do Dhama, tornou-se urgente e sem escapatória.

As ameaças ao futuro da civilização humana são evidentes em várias frentes. Vou mencionar apenas três. Estas têm sido analisadas por comentadores mais qualificados que eu, e por isso apenas as referirei. A minha maior preocupação é em ver como o Buddhismo pode oferecer um antídoto para estas tendências malévolas.

Numa primeira frente, que todos nós conhecemos bem, está a persistência de guerras e conflitos. Embora a Guerra Fria tenha soterrado o mundo por cinquenta anos, e que esta se tenha derretido nos inícios dos anos 90, ela foi porém substituída por guerras de diferente naturezas: guerras regionais, guerras étnicas, e agora, pela toda-abrangente “Guerra ao Terror”, que coloca a mais poderosa nação do mundo contra sinistros grupos de terroristas escondidos em enclaves nas montanhas ou cidades largamente povoadas. O que torna a guerra tão perigosa é que um grande número de nações tem agora matéria e conhecimentos suficientes para criar armas nucleares. Quando as hostilidades atingirem um certo nível, haverá sempre o risco de que um país ou um grupo malicioso, num gesto de desespero, possa usar esse tipo de armas, causando assim uma série de ataques nucleares em cadeia que deixarão depósitos de lixo radioativo que perdurarão por séculos. Mas o horror da guerra não está confinado às armas nucleares. Novas armas, potentes e letais, trazem à guerra uma qualidade de frieza impessoal que jamais teve no passado.

Um segundo problema perturbante é o afastamento abismal entre uma pequena e rica elite e todos os outros. Tal divisão sempre existiu, claro, mas tem-se tornado mais nítida e mais polarizada. O nascimento da ideologia do mercado-livre permite que poucos mas com grande ambição, afluência e poder possam manipular o sistema econômico em seu benefício. Assim, eles têm canalizado mais e mais riqueza mundial para si próprios, deixando os pobres mergulhar numa ainda mais degradante pobreza. Mesmo aqueles na classe média, encontram-se numa situação difícil face a um negócio repugnante. As portas para uma oportunidade tornaram-se estreitas, e muitas pessoas de classe média estão a escorregar das suas posições confortáveis para abismos de dívidas, tornando-se sem-abrigos, com fome e pobres. Esta é a situação atual nos Estados Unidos da América e na Europa, onde os governos, subservientes às corporações e rajás financeiros forçam a “austeridade” – uma palavra de código para esperanças esmagadas e sonhos desfeitos na classe média e de trabalhadores. Estas políticas de austeridade no “mundo desenvolvido” significam condições mais duras para países tradicionais, fazendo surgir o ressentimento e o potencial para um violento contra-efeito.

A terceira maior crise que enfrentamos é a escalada da mudança climática, em especial o aquecimento global. Porque a mudança climática é lenta, gradual e difícil de reverter, ela é particularmente traiçoeira. Nos mais recentes anos, nós já tivemos uma experiência daquilo que está para vir em termos de mudança climática nas décadas vindouras. Nós assistimos às cheias torrenciais no Paquistão, Sri Lanka e Tailândia, que desenraizaram milhões de pessoas das suas casas, perderam-se milhares de vidas, arruinaram terrenos férteis e ditaram o fim de negócios de bilhões de dólares. Os mesmo países, e outros na África central, têm tido prolongadas secas, batido recordes de ondas de calor, e outras ocorrências bizarras em termos climáticos. Tudo isto acabou com vidas e meios de subsistência de agricultores cuja sobrevivência dependia das regularidades do clima. Esta situação vai tornar-se ainda mais dura no futuro, à medida que as fontes de água potável se tornam escassas, os oceanos subam e alcancem as zonas costeiras baixas, invadindo cidades e engolindo pequenas nações-ilha.

Quando olhamos para a situação mundial atual, a questão que devemos ponderar é como pode o Dharma ajudar a melhorar estes pesados problemas. Antes que mencione os meus pensamentos sobre esta questão, julgo importante fazer notar que o Buddhismo não é uma religião evangelizadora, o que quer dizer que as pessoas para fazerem uso dos ensinamentos buddhistas não necessitam seguir uma conversão formal. O Dharma pode oferecer uma visão, valores, ideais e práticas a uma pessoa de qualquer religião – ou sem religião no sentido formal – podendo ser adaptado e aplicado à necessidade de cada um ou ainda como solução para problemas sociais. Julgo que esta é uma força especial do Buddhismo que deve ser reconhecida e apreciada.

A primeira chave que o Buddhismo pode oferecer para nos ajudar a lidar com a ameaça à civilização humana é o ensinamento que está no núcleo do Dharma, nomeadamente, as quatro nobres verdades. O Buddha ensinou as quatro nobres verdades como uma ferramenta para diagnóstico do sofrimento pessoal – sofrimento psicológico e o sofrimento intrínseco à vida no samsara – mas esta mesma fórmula pode ser usada como uma lente para a compreensão da nossa classe em coletivo. As quatro verdades são o fato do sofrimento, a sua origem no desejo sedento e ignorância, a sua cessação pelo fim do desejo sedento e ignorância, e o óctuplo nobre caminho como a maneira de encontrar o fim do sofrimento. As quatro verdades são, portanto, fundamentalmente dirigidas à verdadeira natureza do sofrimento e felicidade e às causas subjacentes.

As causas de desordem social são essencialmente as mesmas que as que estão por detrás do sofrimento pessoal. Do mesmo modo que o tormento pessoal é causado pelo desejo sedento e ignorância do próprio, também assim se passa com a doença que infeta a sociedade humana. Quando usamos a fórmula das quatro nobres verdades, podemos ver que múltiplos problemas que enfrentamos a um nível nacional e internacional – guerras, desigualdade econômica, a violação dos diretos humanos, e os estragos ao meio ambiente – surgem de uma fonte comum, que pode ser descrita como a tendência para colocar os interesses estreitos e de curto alcance sobre os interesses de longo alcance e para o bem de toda a comunidade humana.

O Buddha resumiu as causas da desordem e miséria em três “raízes prejudiciais”: ganância, ódio e ilusão. Hoje em dia, a prevalência da ganância, em conjunto com as nossas capacidades tecnológicas, levou-nos a um fenômeno que pode ser apelidado de “a mercantilização do mundo”. Sob a ideologia do mercado-livre, nós olhamos para tudo o que encontramos como tendo somente o seu valor utilitário, o seu potencial como uma mercadoria. Olhamos o mundo natural, apenas como uma fonte de materiais brutos para fabricarmos produtos que vão gratificar os desejos humanos. Esquecemo-nos do precioso valor de cada ser humano, e pensamos apenas em como o outro ser serve o nosso interesse privado ou corporativo, como clientes ou consumidores. Assim, o mundo torna-se um campo de batalha marcado pela implacável competição onde cada um procura prevalecer sobre o outro. Mesmo quando os limites estão ditados, eles não são baseados na verdadeira empatia, mas antes, na conveniência pessoal, e facilmente ultrapassados quando deixam de servir os nossos propósitos.

O ódio é manifestado nas suspeitas que as pessoas sentem pelos outros, por estes seguirem uma religião diferente, falarem uma língua diferente, ou venham de uma parte remota do mundo. Criamos fronteiras fixas entre “nós” e “eles”, e olhamos os outros do outro lado da fronteira com medo e desconfiança. Quando esta atitude se torna generalizada, pode promover a “mente de cidadela”, isto é, a ideia de que temos que proteger a “pátria” de alienígenas que são os “outros”. Acoplado à poderosa indústria bélica, tal mentalidade conduz a políticas baseadas no militarismo.

A ilusão reforça a ganância e o ódio ao propagar falsas ideologias. Particularmente perniciosas, como indiquei antes, é a ideologia do mercado sem regulamentação, que toma o crescimento econômico como sendo o único critério de progresso. Os proponentes do mercado livre mantêm que quando o mercado opera sem restrições vai beneficiar a todos. No entanto, após 30 anos de dominância do mercado livre, o vazio desta promessa é flagrante. O distanciamento dos ricos e elite poderosa num lado e todos os outros no outro lado está a crescer. As economias cambaleiam na fronteira do colapso, e demasiadas pessoas lutam pelas necessidades básicas da vida num planeta sobrecarregado de lixo tóxico.

Do ponto de vista buddhista, qualquer solução para os importantes problemas que enfrentamos hoje, deve certamente envolver mudanças fundamentais nas políticas e instituições mas estas só por si não são suficientes. O que realmente precisamos, como o Buddha enfatizou tantas vezes, é a mudança pessoal, a mudança na nossa compreensão, nas nossas atitudes, e nos nossos padrões éticos. Nestes tópicos, o Cinco Preceitos podem fornecer o enquadramento para a ação correta: evitar matar, roubar, conduta sexual inapropriada, discurso falso, e uso de intoxicantes. Estes preceitos não são apenas um guia para uma conduta individual mas têm também um significado global mais abrangente. O Buddha diz que quem segue estes preceitos, protege incontáveis seres e liberta do medo incontáveis seres.

Para além dos preceitos formais, eu diria que o que precisamos é de um sentido de responsabilidade humana, de uma compaixão consciente que nos permita olhar para o bem-estar de toda a humanidade – e mesmo olhar para todo o mundo senciente – como o nosso próprio bem-estar. Através da compaixão, podemos nos identificar com os outros se sentirmos o seu sofrimento como intolerável. Através do nosso sentido de consciência somos movidos a colocar o nosso sentido de compaixão em ação. Não podemos ficar somente na ideia de que a compaixão é um sentimento bonito mas antes devemos ser guiados pelo compromisso face às causas sociais por forma a tomar os passos necessários para aliviar o sofrimento e promover o bem-estar daqueles em necessidade.

A compaixão consciente leva-nos a uma ética centrada no mundo – uma postura ética que toma o bem-estar do mundo como o objetivo último de programas nacionais e políticas internacionais. Para consagrar tal ética há, claro, um desafio que nós budhistas não podemos tomar sozinhos. Nós devemos juntar as mãos aos seguidores de todas as fés, e com humanistas seculares também, e com todos os que querem salvaguardar que a espécie humana subverta o seu futuro através de comportamentos imprudentes.

Tal como vejo, tal ética centrada no mundo, pode ser moldada em três linhas gerais, que são formuladas como contrapesos às três raízes prejudiciais:

Nós devemos superar a ganância com generosidade global, providenciando ajuda aos mais necessitados e vulneráveis, aos afligidos por fome crônica, pobreza e doença.

Nós devemos substituir a violência e o militarismo com paz, tolerância e perdão. Tal passo deve começar com um consenso internacional que reduza de forma radical o aglomerar de armas nucleares, e eventualmente a eliminação de todas as armas de guerra. Devemos, em vez delas, procurar resolver os conflitos através de discussões e negociações.

Precisamos de sabedoria para vermos através de slogans ilusórios e ideologias. Devemos entender que somos todos irmãos e irmãs, interligados e complexamente interdependentes. Comportamentos irresponsáveis em qualquer lugar têm repercussões que se podem espalhar a qualquer lado, enquanto que as boas ações causarão espalhamento com impacto nos outros e que serão retribuídas pela bondade.

Propor tais ideias pode parecer um otimismo exagerado mas se refletirmos veremos que este programa é suportado numa sólida e pragmática fundação. É, no entanto, a outra alternativa a que envolve um otimismo exagerado: a ideia de que a dominância militar, a competição econômica implacável, manipulação financeira, e negligência ambiental, possam ser continuadas sem fazer perigar as nossas perspectivas de sobrevivência. Perseguir os nossos estreitos e auto-centrados interesses – incluindo os étnicos e nacionais – sem olhar às consequências é pôr em perigo toda a comunidade global, nós incluídos. Subordinar os interesses privados ao bem comum é promover o nosso bem-estar real, duradouro, que depende da paz, justiça social e ambiente estável.

No mundo de hoje, os ensinamentos do Buddha podem mostrar-nos como desenvolver tais condições de consciência universal. O Dharma oferece um claro entendimento da natureza da felicidade e sofrimento. Oferece uma profunda visão das causas do sofrimento e a maneira de as eliminar. Oferece uma ética de simplicidade, inocuidade e limitação. Oferece uma profunda análise da mente e dos meios para a transformação mental. Oferece o sentido de responsabilidade universal fundado sobre a grande virtude da boa vontade (ou amorosidade), compaixão, alegria altruística e imparcialidade. Estas são algumas das indicações que o Buddha deixou preparadas para o mundo durante o tempo que esteve no mundo. Como herdeiros do seu ensinamento, é a nossa responsabilidade praticá-las e passá-las como a distintiva contribuição do Buddhismo para o futuro da civilização humana.

Ven. Bhikkhu Bodhi é um monge buddhista americano de Nova Iorque. Obteve o PhD em filosofia pela Claremont Graduate School em 1972. Nos finais de 1972 recebeu a ordenação monástica no Sri Lanka, onde viveu por mais de vinte anos. De 1984 até 2002 foi o editor da Buddhist Publication Society em Kandy. Traduziu numerosos textos do “Canon Pali”, a coleção mais antiga dos ensinamentos do Buddha, escritos na antiga língua pali para o inglês. Em 2002, retornou aos Estados Unidos e agora vive no Mosteiro Chuang Yen, em Carmel, Nova Iorque. Em 2008, junto com outros seus alunos, Ven. Bodhi fundou a Buddhist Global Relief, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao alívio da fome em países que sofrem de pobreza e desnutrição crônica 
(ver http://www.buddhistglobalrelief.org).

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tradução: João Pedro Cruz para a Comunidade Nalanda, 2012

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