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~ por Ven. Ajahn Payutto ~

2C. Anatta: A Característica de Não-eu

A. Escopo

Como explicado anteriormente, a qualidade de não-eu (anattatā) tem uma abrangência mais ampla do que as qualidades de impermanência e dukkha. Vê-se imediatamente a diferença na apresentação do Buddha:

1. Sabbe saṅkhārā aniccā: todos os fenômenos condicionados são impermanentes.
2. Sabbe saṅkhārā dukkhā: todos os fenômenos condicionados são sujeitos à pressão.

3. Sabbe dhammā anattā: todos os fenômenos são não-eu.

Este ensinamento indica que os fenômenos condicionados (e todos os fenômenos condicionados) são impermanentes e dukkha. Mas algo existe para além de tais fenômenos, que não é nem impermanente nem sujeito a pressão. Todas as coisas, sem exceção, porém, são anatta: são não-eu. Nada existe que seja um self ou possuidor de um self.

A definição dhamma abrange todas as coisas. Assim, dhamma inclui todas as coisas que podem ser subdivididas indefinidamente. Pode-se, no entanto, classificar as coisas em grupos e categorias. A divisão pertinente a esta discussão é aquela sobre as coisas condicionadas (saṅkhata-dhamma) e o Incondicionado (asaṅkhata-dhamma).

Saṅkhata-dhamma refere-se a coisas criadas por fatores condicionantes (paccaya). Tais coisas podem ser chamadas simplesmente saṅkhāra e incluem tudo, materialidade e mentalidade, constituindo os cinco agregados. Asaṅkhata-dhamma, o Incondicionado, não é nem criado nem suportado por fatores condicionantes; é também chamado visaṅkhāra: o estado que transcende os cinco agregados, ou Nibbāna.

Pode-se descrever essa lei da natureza com mais detalhes como segue:
1.    Todas as coisas condicionadas (os cinco agregados) são impermanentes.
2.    Todas as coisas condicionadas (os cinco agregados) são dukkha.
3.    Todas as coisas, tanto as condicionadas como o Incondicionado, são não-eu.

 

B. Definição Básica

Anattā pode ser traduzido como “não-eu”, “desprendimento” ou “ausência-de-ego”. Como anattā é uma negação de attā, para compreender a característica de não-eu, devemos primeiro entender o significado de attā. Attā (sânscrito – ātman) refere-se a um eu eterno ou substância, que seja a essência ou o núcleo de alguma coisa em particular, residente permanentemente em um objeto. É tanto o proprietário e controlador, o recipiente essencial da experiência, quanto o agente da ação. É o que está por trás de todos os fenômenos, incluindo toda a vida, capaz de dirigir as coisas em conformidade com as suas necessidades e desejos.

Algumas religiões estendem-se proclamando que um ‘self’ superior ou ‘Espírito’ reside por trás de todos os fenômenos mundanos, reinando sobre as almas ou substância de todos os seres viventes e objetos inanimados. Alegam que este Espírito Supremo cria e governa todas as coisas ou é a fonte e destino de todas as coisas e toda a vida. No hinduísmo, por exemplo, é chamado Brahmā ou Paramātman.

A essência do ensinamento sobre anattā é a negação do duradouro e fixo self, tanto mundano quanto transcendente; afirma ser este self simplesmente uma idéia decorrente de um equívoco de apreensão pelos seres humanos não-despertos, que não percebem a verdadeira natureza do mundo. As pessoas criam um (conceito de) self e sobrepõem-no à realidade, esse (conceito de) self, então, os impede a visão da verdade. Um claro entendimento do não-eu dissipa o equívoco e dissolve o obscurecimento do (ideia de) self. O ensinamento do não-eu leva-nos a discernir com sabedoria que todas as coisas, todos os componentes da realidade, existem e procedem em conformidade com sua própria natureza. Nenhum oculto eu permanente existe como proprietário ou dirigente; as coisas não são subservientes a um controle interno ou externo.

A definição básica de não-egoidade, tanto em relação a fenômenos condicionados quanto ao Incondicionado, é que todas as coisas existem em conformidade com a sua natureza e não estão subordinadas a uma autoridade externa. Para elucidar esta definição deve-se analisar a distinção entre fenômenos condicionados e o Incondicionado. O Incondicionado ou Nibbāna, por sua vez, é uma verdade absoluta (dhamma-dhātu) * existindo independentemente de fatores condicionantes. Não é nem um ser, nem uma consciência, nem um ego (nissatta-nijjīva), não pode ser possuído ou controlado; nem agir em qualquer forma num papel criador. Fenômenos compostos, por outro lado, são dependentes e estão em conformidade com os fatores que agem como catalisadores ou agentes criadores. Esses fenômenos são vazios de uma substância interior que experiencie o processo formativo ou controle os cinco agregados, ordenando-os a seguir os desejos, independentemente das leis de causa e efeito.

* Literalmente, ‘verdade elementar’.

 

C. Definição Implícita

Antes de prosseguir, é preciso entender que o ensinamento buddhista refere-se a um self unicamente num nível convencional: o eu é uma verdade relativa; não é tomado por algo absoluto. Isto fica claro pela declaração do Buddha que um Buddha Perfeitamente Desperto não estabelece um self como parte de Sua doutrina; ele não considera o self como real:

O professor que não declara um “eu” como real ou verdadeiro, quer no presente
mundo ou no próximo, é chamado O Buddha Perfeitamente Desperto. [38]

Consequentemente, os ensinamentos buddhistas não se ocupam com a existência de um self ou se engajam em um diagnóstico do eu. Além disso, o Buddha afirma:

É impossível para uma pessoa dotada de visão correta (ou seja, um Entrante na Corrente) agarrar qualquer coisa (dhamma) como self. [39]

Com a realização do Supremo Estado, não há razão que subsista para um arahant † contemplar um self. Isto é substanciado pela designação que o Buddha faz de um arahant como alguém que “abandonou o eu” ou “descartou o eu” (attañjaho/attañjaha [40]): um arahant abandonou a crença em um self, o ponto de vista da existência ou da posse de um self. Algumas passagens descrevem um arahant como “tendo abandonado o si mesmo, não aderindo a nada” (attaṃ pahāya anupādiyāno). [41]

Apesar de um self não existir verdadeiramente, a maioria das pessoas abraça uma noção de um ego fixo. O Buddha rejeitou a validade de tal noção, e incentivou as pessoas a abandonar o apego ao eu.

† Um ser humano completamente desperto

No Buddhismo, um eu substancial não tem importância alguma, não é um assunto de especulação. O Buddhismo concentra-se sobre o se prender ao self ou sobre o conceito de self, que é o objeto de tal apego. O Buddhismo ensina às pessoas a libertação do apego. Com tal libertação cumpre-se plenamente o compromisso e um ego fixo e estável já não tem mais relevância.

Em resumo, quando uma pessoa compreende que as coisas condicionadas são desprovidas de um ego, o tema do eu versus não-eu esvai-se. Uma pessoa que realizou o Incondicionado não mais se identifica com qualquer coisa como um self. Além disso, qualquer explicação para a natureza vazia do Incondicionado, nibbāna, torna-se redundante. Estender-se sobre o nibbāna como anattā é desnecessário pelas seguintes razões:

• As únicas coisas que as pessoas apreendem e são capazes de apreender como self são fenômenos condicionados ou os cinco agregados.
• Tudo o que as pessoas não despertas apreendem, sabem e pensam está confinado aos limites dos cinco agregados. Mesmo quando falando do Nibbāna, o Nibbāna a que se referem não é o verdadeiro Nibbāna, mas sim parte dos cinco agregados.
• O dever de um professor, neste contexto, é apenas fomentar a compreensão das pessoas e, então, o abandono da incompreensão que os leva a apreender as coisas condicionadas como self.
• Uma vez que as pessoas estejam cientes, abandonando idéias errôneas e eliminando o apego aos cinco agregados como self, elas não buscam por qualquer outra coisa para se agarrar como um eu, porque perceberam claramente o Nibbāna que transcende os cinco agregados juntamente com toda a crença em um self. Aqueles que realizaram Nibbāna discernem por si mesmos a qualidade vazia do Incondicionado; não há mais necessidade de discutir o assunto. Em outras palavras, transcender o estado de uma pessoa ordinária (do nível de entrante na corrente em diante) resulta no fim do apego e da dúvida; a necessidade de discutir a natureza vazia de um self do Incondicionado desaparece automaticamente.

O padrão das explicações escriturais de anattā refere-se, então, aos fenômenos condicionados, que são de relevância cotidiana para as pessoas e compreendem todas as coisas que pessoas não despertas estão aptas a conceber a partir da experiência.

D. Explicação Escritural

Como dito acima, as explicações usuais sobre anattā nas escrituras focam nas coisas condicionadas porque esses ensinamentos são apresentados à pessoa comum e tocam em questões cotidianas. Além disso, aquilo a que as pessoas comuns não despertas são capazes de conceber como self são limitadas às coisas condicionadas (saṅkhāra) ou limitadas aos cinco agregados.

Portanto, as explicações de não-eu concentram-se exclusivamente nos cinco agregados. Isto corresponde às palavras do Buddha:

Bhikkhus, quaisquer ascetas e brāhmanas que ponderem sobre o self de uma forma ou outra aceitam os cinco agregados influenciados pelo apego, ou algum  dentre estes. Quais cinco?

Bhikkhus, a pessoa comum, não instruída… considera a forma como self, ou o self como possuindo a forma, ou a forma como no self, ou o self como na forma. Ela considera o sentimento/sensação como self, percepção como self… formações volitivas como self… consciência como self… ou self como na consciência. Assim, desta forma de aceitar as coisas, torna-se fixa a sua crença em que “eu existo”. [42]

Em outras palavras, (a crença em) um self só existe quando os cinco agregados existem, e existe por causa do apego a estes agregados, como explicado pelo Buddha:

Bhikkhus, quando o que existe, confiando em que, aderindo ao que, tal ponto de vista como este surge: “Isto é meu, isto sou eu, este é o meu ‘eu”?…

Quando há forma, bhikkhus, baseando-se na forma, aderindo à forma, tal ponto de vista como este surge: “Isto é meu, isto sou eu, este é o meu eu”. Quando há sensação/sentimento … percepção … formações volitivas … consciência, apoiando-se na consciência, aderindo a consciência, tal ponto de vista como este surge: “Isto é meu, isto sou eu, este é o meu eu”. [43]

Neste ponto, vamos examinar algumas das inúmeras explicações escriturais do não-eu. O Paṭisambhidāmagga define algo como anattā no sentido de ser ‘insubstancial’ (asārakaṭṭhena) [44]. Insubstancial significa ser sem essência, ser sem um núcleo, e não possuir coisa alguma que seja verdadeiramente estável ou duradoura.

Insubstancial significa a ausência de um self nuclear, essencial  (atta-sāra), que seja pensado como um self (attā), um suntentador (nivāsī), um agente (kāraka), um experimentador (vedaka), ou um mestre autônomo (sayaṁvasī) [70/18]. Porque aquilo que é impermanente é dukkha; é incapaz de impedir a sua transitoriedade ou a sua opressão de surgir e cessar. Como então pode existir algo como um fazedor, e assim por diante? Por isso o Buddha disse: ‘Bhikkhus, se esta forma física, por exemplo, fosse o self, certamente não estaria sujeita a aflição’ [45].

Note que esta definição de não-essência ou ausência de self, inclui a falta de um papel criador ou a falta de controle intrínseco. Se alguém possuísse um self durável e estável como um núcleo, então poderia resistir à mudança; portanto, não estaria sujeito a alterações. Da mesma forma, se alguém fosse senhor sobre as coisas, poderia manipular suas posses de acordo com seu desejo. A realidade, porém, não é assim. Uma característica distintiva da ausência de um eu permanente é a incapacidade de dominar as condições, e sua oposição ao desejo. (Note que o Buddha-Dhamma considera mesmo Brahma, Deus ou qualquer divindade suprema criadora como existindo dentro do mundo condicionado, sendo confinado aos cinco agregados e, portanto, exercendo a vontade de forma limitada). Nesse sentido, os comentários preferem definir anattā como “a incapacidade de controlar” ou “não sujeito ao controle” (avasavattanaṭṭhena ou avasavattanato) [46]. Da mesma forma, explicam que ninguém pode forçar as formações à subserviência, em oposição a causa e efeito, exigindo que surjam fenômenos não existentes, que fenômenos existentes não envelheçam e que os fenômenos que envelheçam não cessem [47]. Eles citam as palavras do Buddha:

Uma pessoa não pode, em relação à forma física, obter (como desejado): “Que a forma seja desta maneira, que a forma não seja desta maneira.” [O mesmo com respeito aos outros agregados.] [48]

Quando se examina cuidadosamente a natureza de todas as coisas, percebe-se que não existe self estável e permanente, como fica implícito ao dar-se nomes às coisas. Há apenas um processo natural (dhamma-pavatti) – um processo de condicionalidade – ou um processo de mentalidade e materialidade (khandha-pavatti), que se origina da confluência de múltiplos constituintes. Todos esses componentes surgem e desaparecem em um contínuo relacionamento intercausal, tanto dentro de uma dinâmica única, isolada, quanto em toda criação. Assim sendo, devemos tomar nota de quatro pontos importantes:

1)    Não há um self verdadeiramente permanente no interior de qualquer fenômeno, existindo como uma essência ou núcleo.
2)    Todas as coisas condicionadas surgem da convergência de componentes.
3)    Os componentes continuamente surgem e se desintegram, e são codependentes, constituindo uma dinâmica específica da natureza. [70/19]
4)    Quando se divide uma dinâmica específica em dinâmicas subordinadas, percebe-se que estas também são codependentes.

A manifestação e a transformação de uma dinâmica é determinada pela relação dos seus componentes. A dinâmica ocorre sem a intervenção de um ‘self’. Não existe self separado, nem um self interno permanente que resista à causa e efeito e seja capaz de dirigir a atividade de acordo com seus desejos, nem um agente externo independente.

Os seres humanos conferem nomes a muitos desses conjuntos e formações, por exemplo: ‘pessoa’, ‘cavalo’, ‘gato’, ‘formiga’, ‘carro’, ‘loja’, ‘casa’, ‘relógio’, ‘caneta’, ‘sr. Jones’ e ‘srta. Smith’. Esses nomes, no entanto, são apenas rótulos convencionais, estabelecidos para conveniência de comunicação. As entidades não existem realmente: elas não têm um verdadeiro self, uma identidade separada, distinta dos seus componentes coletivos. Após a análise dessas entidades o que resta é cada unidade ou parte com o seu nome específico próprio. Não é possível encontrar um self no interior de tais entidades, não importa o quão profundamente buscamos. Ao dar nomes às coisas cria-se um self provisório que é sobreposto à verdadeira condição. Ele é sobreposto aleatoriamente, sem qualquer relação direta, controle sobre ou efeito naquela dinâmica particular, exceto quando se agarra a designação convencional (o apego é, então, um componente do processo). Se os nomes são apenas rótulos convencionais, arbitrariamente sobrepostos, então é evidente que eles são impotentes.

Quando os elementos convergem e se manifestam como formas particulares nós, em acordo, atribuímos nomes para estas formas. Enquanto os componentes estão unidos, eles sustentam a forma particular que corresponde a uma identidade convencional. Quando os componentes se separam, no entanto, ou as condições que os mantinham unidos não mais subsistem, a forma desaparece. Por exemplo, quando a temperatura sobe acima de um certo nível, o gelo derrete; a entidade chamada ‘gelo’ desaparece, com a água restando. Com um aumento a mais na temperatura a água some tornando-se vapor; aquela entidade ‘água’ deixa de existir. Da mesma forma, quando o papel é queimado, apenas cinzas permanecem; a entidade chamada ‘papel’ não é mais encontrada.

As dinâmicas da natureza ocorrem de acordo com causa e efeito; não obedecem ao desejo, e não são influenciadas por estas entidades aleatoriamente estabelecidas. Elas não obedecem ao desejo, pois, falando precisamente, o desejo não serve a um self autônomo, o desejo é um componente dentro de uma dinâmica causal, e não é o agente que realiza uma ação. O desejo só é capaz de produzir resultados quando, atuando como um impulso, afeta condições subsequentes como esforço ou ação, em conformidade com causa e efeito.

Um self independente e distinto não pode existir; se existisse, não seria sujeito à causalidade – seria constante. Isso impediria o fluxo causal, tornando todos os restantes elementos dispensáveis. Qualquer dinâmica fluente seria anulada. Tal self poderia interferir com e modificar as condições, causando um desvio de causalidade. Na verdade, porém, todas as coisas condicionadas procedem de acordo com causa e efeito. Um self separado não existe verdadeiramente, quer dentro de uma dinâmica, quer externamente. [70/20] O único self que existe é o convencional que precisa ser entendido ou termina a nos enganar e oprimir.

O significado básico de anattatā – que todas as coisas surgem como um composto de partes interligadas segundo causa e efeito, que são vazios de um self permanente e sem um agente criador fixo – é confirmada por muitas referências nas escrituras. Por exemplo:

Da mesma forma que um espaço cercado por madeira, cipó, barro e palha, vem a ser chamado de ‘casa’, assim também, quando um espaço é cercado por ossos e nervos, carne e pele, ele passa a ser chamado de “corpo” (rūpa) [49].

Māra * perguntou a Vajirā Bhikkhunī:

* O ‘Maligno’, o ‘Tentador’, personificado como uma deidade.

Quem criou este ser (pessoa)? Onde está o criador dos seres? Onde é que um ser se origina? Onde é que um ser deixa de existir?

Vajirā respondeu:

Māra, você acredita em um ser? Você acalenta tal visão? Isto é puramente uma massa de formações; aqui, nenhum ser pode ser encontrado. Assim como da combinação de várias partes, o termo “carroça” resulta, assim também, com os cinco agregados, o termo convencional “ser” surge. Na verdade, há apenas dukkha que surge, torna-se perceptível e desaparece. Nada além de dukkha vem a ser, nada além de dukkha cessa [50].

Māra perguntou o mesmo para Selā Bhikkhunī, que respondeu:

Ninguém veste esta forma, ninguém a criou. Dependente de causas surgiu, com o fim de causas ela cessa. Da mesma forma como as sementes quando semeadas no campo vão brotar, devido tanto aos nutrientes no solo quanto à umidade dentro da semente, assim também estes agregados, elementos e seis sentidos surgem dependentes de causas, e cessam com a dissolução das causas [51].

Combinados, os soldados, os veículos e as armas são chamados um exército. Nós chamamos a um conjunto de prédios, casas, pessoas e empresas de cidade. Uma mão com os dedos colocados em uma determinada posição é chamada de punho. [70/21] Desfaça o punho e apenas uma mão com os dedos permanece. Da mesma forma, quando divide-se a mão em partes componentes a mão também não mais existe. Pode-se continuar a subdividi-los, mas não é possível encontrar qualquer unidade ou elementos estáticos. Os suttas contêm apenas os ensinamentos sobre materialidade e mentalidade (nāma-rūpa), não há menção a um “ser” ou “pessoa” fixos [52].

Há quatro principais definições de anattatā compilados pelos comentadores. As coisas são consideradas não-eu pelas seguintes razões: [53]

1.    Suññato: porque existem em um estado de vazio; pois elas são carentes de um self como essência ou núcleo (atta-sāra). São vazios de uma identidade real como ‘pessoa’, ‘eu’, ‘ele’, ou ‘ela’. Não há nenhum ocupante, agente ou experimentador além do processo causal ou a parte de designações provisórias. As coisas existem independentemente de suas identidades atribuídas, por exemplo, ‘homem’, ‘mulher’, ‘eu’,’você’, objeto A’ ou ‘objeto B’.
2.    Assāmikato: porque são sem proprietário; elas não pertencem a uma pessoa ou a um self. Não existe self separado, que possua os fenômenos; existe apenas um processo causal natural.
3.    Avasa-vattanato: porque não estão sujeitas ao controle, elas não estão subordinadas a ninguém. Um termo relacionado utilizado é anissarato, traduzido como ‘não-governável’ ou ‘impotente’. Nós não temos poder absoluto sobre as coisas; devemos estar em acordo com as causas. Em alguns lugares, encontra-se o termo akāmakāriyato, traduzido como “incapaz de fazer o que apetece”. As coisas não obedecem aos desejos; a mente de desejo não pode comandar as coisas. Se alguém quer que as coisas sejam de certa maneira, então deve estar em conformidade com ou fazer surgir as causas e condições apropriadas. As coisas dependem de causas, não do poder ou do desejo de alguém . Por exemplo, é impossível ordenar a algo que surgiu que desapareça, ou que não se altere, ou não se deteriore.
4.    Atta-paṭikkhepato: porque é inconsistente com, ou opõe-se a, um self. O processo causal de componentes inter-relacionados é intrinsecamente incompatível com um self independente, autônomo, que comande ou interfira com o processo. [70/22] Tal self isolado não pode existir. Se existisse, uma dinâmica causal não poderia ocorrer; o curso dos acontecimentos seria necessariamente seguir os ditames do self. Além disso, a lei da causalidade é intrinsecamente completa; ela não requer um agente de controle para intervir.

Existem duas definições adicionais de anatta que, embora incluídos no âmbito dos quatro pontos mencionados acima, são particularmente importantes e por isso devem ser discernidos. Eles destacam a natureza dinâmica dos fenômenos:

5.    Suddha-saṅkhāra-puñjato ou suddha-dhamma-puñjato: As coisas existem puramente como uma massa de formações ou como uma massa de fenômenos (dhamma) ou seja, a materialidade (rūpa-dhamma) e / ou a mentalidade (nāma-dhamma). Outro termo usado é aṅga-sambhārato, que significa que as coisas existem como um composto de partes complementares. Elas surgem do ajuntamento destas partes. Elas não são absolutas e duradouras “unidades” ou “entidades”. Não há ‘ser’ real, ‘pessoa’ ou ‘self’, para além destes componentes. (Esta definição já foi salientada acima no ponto 1).
6.    Yathāpaccaya-pavattito: As coisas existem segundo causas e condições. Elas existem como um conjunto de partes inter-relacionadas e codependentes. As coisas não obedecem aos desejos da pessoa, e nenhum self existe, quer como uma essência interna ou como um agente externo, que opõe-se ou dirige o processo. (Todos os quatro pontos acima incluem esta definição, especialmente os 3 e 4).

Em suma, todas as coisas existem de acordo com causas específicas. Se as causas determinantes existem, um fenômeno origina-se em conformidade com tais causas. Se essas causas cessam, o fenômeno cessa (de existir daquela forma). As coisas não obedecem à súplica ou ao desejo. Elas não são “entidades” ou “coisas” como comumente identificadas, e elas não pertencem a ser algum. Como explicado anteriormente, essas definições de anattā aqui apresentadas focam em fenômenos condicionados.

Um dos maiores equívocos das pessoas é a crença de que um ‘pensador’ existe para além do pensamento, um ‘planejador’ existe para além da volição, um “sentidor” existe para além dos sentimentos/sensações, ou um ‘agente’ existe para além das ações. Este equívoco tem enroscado até mesmo muitos dos grandes filósofos que foram, assim, incapazes de perceber a verdade e serem libertos da eclipsante influência da visão do self. René Descartes, o famoso filósofo francês, é um exemplo, pois depois de muita consideração postulou: “Penso, logo existo”. [54] [70/23] A crença em uma alma ou self distinto é comum a seres não-despertos em todos os lugares. Essa crença parece verdadeira e lógica para a consciência comum, mas uma vez que se investigue profundamente a premissa do self, as contradições aparecem.

As pessoas muitas vezes colocavam questões sobre o self para o Buddha, por exemplo: quem faz contato (quem conscientiza)? Quem sente? Quem anseia? Quem se apega? O Buddha respondeu que estas são questões inadequadas, que resultam de uma premissa falsa, pois elas não são compatíveis com a realidade. Perguntas apropriadas são: qual é a condição que deu origem ao contato? Qual é a condição que deu origem ao sentimento? Quais são as condições que deram origem ao desejo e apego? [55]

Assim como o pensamento, intenção, desejo e sensação/sentimento são componentes de um processo físico e mental, assim também a experiência de um ‘pensador’ ou um ‘criador’, por exemplo, é um componente desse processo. Todos estes componentes existem em um relacionamento intercausal. Há meramente pensamento e uma experiência de um ‘pensador’ (ou seja, uma falsa crença num pensador – um pensador não existente) resultantes de uma dinâmica singular. A experiência de que há um pensador é na verdade um tipo de pensamento; é um instante no processo de pensamento. A crença errônea em um pensador surge devido à incapacidade da pessoa de distinguir as partes relacionadas e de distinguir cada evento momentâneo dentro do continuum. No momento do pensamento não existe a experiência de haver um ‘pensador’; e no instante da experienciação de um ‘pensador’ não há nenhum (outro) pensamento. Enquanto se pensa em um determinado assunto, não se reflete sobre um ‘pensador’; e quando se reflete sobre um ‘pensador’, não se pensa sobre este prévio objeto de consideração. Pensar sobre um objeto e experienciar um ‘pensador’ (pensar em um ‘pensador’) são, na verdade, diferentes momentos do pensamento que existem no mesmo processo. O “pensador” é apenas uma fabricação mental, que então se torna um objeto para um instante posterior no tempo.

A falácia mencionada acima resulta de uma falta de minuciosa atenção (ayoniso-manasikāra) e é classificada como uma das seis visões errôneas mencionadas no ensinamento do Buddha:

Quando um  ser não desperto percebe sem sabedoria desta forma, um de seis pontos de vista surge: surge nele a visão (recorrente), assim como verdadeira e estabelecida, que “Eu tenho um eu”… “Eu não tenho um eu”… “Eu conheço o eu através do eu”… “Eu conheço o não-eu através do eu”… “Eu conheço o eu através do não-eu”; ou então ele tem uma visão como esta: “É este meu eu que comete, sente e experiencia, aqui e lá, o fruto de boas e más ações’ [56].

Foi mencionado anteriormente como um nome atribuído a uma entidade particular é um artificial e arbitrariamente sobreposto self, que, a não ser que tomado pelo apego, não tem qualquer relação ou efeito sobre a dinâmica causal. [70/24] Embora tal self não exista verdadeiramente, o apego a essa idéia de self cria problemas. Isso ocorre porque o apego torna-se uma parte da dinâmica, determinando outros componentes, que afetam a dinâmica como um todo. O apego é um fator prejudicial, uma vez que decorre da ignorância que contamina outros elementos do processo, interferindo negativamente no fluxo causal.

Um dos efeitos do apego é que produz um conflito dentro da dinâmica, resultando em um sentimento de opressão e sofrimento. Pessoas que aderem ao eu convencional como real são afligidas por esta apreensão. Aqueles que compreendem plenamente os rótulos convencionais, por outro lado, não se apegam a ideia de um self, vendo apenas um continuum causal. Estas pessoas usam qualquer termo que seja comumente atribuído a um objeto específico, porém eles podem intensificar a dinâmica como lhes aprouver, agindo em harmonia com seus fatores determinantes. Elas não permitem ao desejo e ao apego oprimi-las, evitando assim o consequente sofrimento. Tais pessoas sabem como se beneficiar dos termos convencionais, sem sofrer o dano de aderir a eles.
Outro efeito negativo do apego a um ego é a produção de estados mentais insalubres conhecidos como “impurezas” (kilesa). Em particular, eles incluem:

Taṇhā: a ânsia, o egoísmo e desejo insaciável.
Māna: vaidade, autoindulgência e o desejo de poder pessoal.
Diṭṭhi: O obsessivo apego a opiniões pessoais; a teimosia, a inabalável convicção de que nossos pontos de vista representam a verdade.

Estas três contaminações intensificam a discórdia, tanto interna quanto externa. Pessoas que não veem mais além dos rótulos convencionais se agarram às identidades casualmente estabelecidas como sendo a verdade e permitem que estas contaminações determinem seu comportamento, aumentando o tormento para si próprias e para os outros. Aquelas que penetram a verdade relativa dos rótulos convencionais, no entanto, não se apegam a eles e são libertas da influência destas contaminações. Elas não são enganadas por pensamentos tais como ‘isto me pertence’, ‘eu sou assim’ ou ‘este é quem eu sou’. Elas conduzem sua vida com sabedoria. Um entendimento claro dos rótulos convencionais e a ação em harmonia com as causas e condições é a base a partir da qual a segurança verdadeira e a libertação do sofrimento se estendem

Outro erro que tende a enredar as pessoas é a vacilação de um ponto de vista extremo ao outro. Algumas pessoas acreditam estritamente no self como real e permanente pois elas pensam que o self forma a essência de um ser humano e que não é apenas uma entidade convencional. Cada pessoa, dizem, tem um eu real, estável e eterno, mesmo quando uma pessoa morre a alma/self/espírito (ātman/attā) continua inalterado: o eu não desaparece ou se desintegra. Alguns acreditam que essa alma reencarna, enquanto outros acreditam que ela aguarda o julgamento do Deus superior para a eterna salvação ou condenação. Tal visão cai na categoria do eternalismo (sassata-diṭṭhi ou sassata-vāda): a crença de que o self ou alma é real e perene. Outro grupo de pessoas acredita que um tal self existe, que uma pessoa existe como uma identidade definitiva, mas que este self é temporário: ele se desintegra. [70/25] Na morte, eles afirmam, o self se dissolve e cessa. Este ponto de vista é chamado de niilismo/aniquilacionismo (uccheda-diṭṭhi ou uccheda-vāda): a crença em que o self ou alma é impermanente; que existe temporariamente e depois desvanece e desaparece.

Eruditos buddhistas também podem adotar uma destas visões se lhes faltar clara compreensão. Aqueles que estudam a lei do kamma (sânscrito – karma) em relação ao ciclo de renascimentos (saṁsāra-vaṭṭa) podem sustentar uma visão eternalista, considerando o self como permanente. Aqueles que não entendem bem os ensinamentos de anattā, por outro lado, podem sustentar uma visão aniquilacionista, acreditando que nada existe depois da morte. O ponto comum de incompreensão para os defensores destes dois extremos é a crença de que um ser ou pessoa existe como entidade real, fixa. Uma parte acredita que tal entidade é constante e eterna, enquanto a outra acredita que esta entidade se dissolve e desaparece com a morte.

Além desses dois, há outro grupo com uma visão ainda mais extrema, acreditando que a falta de um self significa que nada existe. Se não existir coisa alguma então ninguém experiencia resultados. Portanto, as ações não têm consequências, as ações são insignificantes, e não há responsabilidade em relação às ações. Falando de maneira simples, não há kamma. Pode-se dividir esse tipo de crença em três categorias. Uma facção acredita que as ações não têm significado ou que as ações não produzem frutos. Esta é a chamada doutrina da ineficácia da ação (akiraya-diṭṭhi ou akiriyavāda). Outra facção crê que as coisas ocorrem a esmo, por mero acaso, sem quaisquer causas. Esta é a chamada doutrina da não-causalidade ou acidentalismo (ahetuka-diṭṭhi ou ahetuka-vāda). A terceira facção acredita que nada existe: não existe coisa alguma com valor ou significado. Esta é chamada de niilismo (natthika-diṭṭhi ou natthika-vāda).

Uma vez que todas as coisas existem como um continuum causal, originárias da convergência de componentes, não há eu que persista ou se desintegre. Neste exato momento nenhuma ‘pessoa’ ou ‘eu’ existe; onde se pode encontrar uma persistência ou uma dissolução do self? Este ensinamento nega tanto o eternalismo quanto o niilismo. Visto que a dinâmica da natureza consiste de componentes inter-relacionados, causalmente dependentes, como se pode reivindicar que nada existe, ou que as coisas ocorrem a esmo e por acaso? O ensinamento nega as doutrinas do niilismo e não-causalidade. Como a dinâmica muda de acordo com fatores causais inerentes, cada agente dentro de uma dinâmica produz um efeito, nada é vazio de efeito. Além disso, os resultados advêm, sem a necessidade de um “receptor” de tais resultados, os resultados são intrínsecos à dinâmica. Conceitualmente pode-se dizer que a dinâmica é o próprio receptor. Estes resultados são mais assegurados do que se um eu estável existisse como receptor, uma vez que o eu poderia rejeitar os resultados indesejados. Como a lei de causalidade existe, como poder-se-ia afirmar que as ações são sem sentido ou não tem resultados? O ensinamento nega a doutrina da ineficácia da ação. [70/26]

As seguintes passagens do Visuddhi Magga corroboram as explicações apresentadas acima:

Na verdade, apenas mente e matéria existem no mundo. Não se pode encontrar um ser ou uma pessoa dentro deste mente e matéria. Este mente e matéria é vazio. É formado (por fatores condicionantes) como uma boneca. É uma massa de instabilidade (dukkha), como grama e gravetos. [57]

O sofrimento existe, mas nenhum sofredor pode ser encontrado. Ações existem, mas nenhum agente. Nibbana existe, mas ninguém que se extingua. O caminho existe,mas não um caminhante. [58]

Não há nenhum autor de uma ação, ou alguém que colha os resultados da ação; só fenômenos em fluxo. Esta é a visão correta. Conforme kamma e fruição (vipāka) causalmente desta forma mantém o seu devir, como sementes e árvores que se sucedem, por sua vez, nenhum instante primeiro pode ser discernido. Nem num futuro ciclo de nascimentos (saṁsāra) pode uma ausência deste ciclo de kamma e fruição ser discernida. Os adeptos de outras seitas, não sabendo disso, têm falhado em conquistar o autodomínio [asayaṁvasī – são dependentes de outros por causa da visão errônea]. Eles assumem um ser (satta-saññā), e veem-no como eterno ou aniquilável. Eles adotam os sessenta e dois tipos de pontos de vista, cada um contradizendo o outro. O fluxo do desejo os conduz, o emaranhado de pontos de vista os embaraça. E assim, como o fluxo os leva, eles não estão livres do sofrimento. Um monge, discípulo do Buddha, com conhecimento direto deste fato, penetra este profundo e sutil vazio da condicionalidade.

Não há nenhum kamma na fruição, nem fruição existe no kamma; embora eles sejam vazios um do outro, não existe fruto sem ação. Da mesma forma que o fogo não existe dentro da luz solar, numa lente (de aumento) ou em esterco de vaca (usado como combustível) e nem fora destes, mas é gerado por sua conjunção. Assim, nem a fruição pode ser encontrada dentro do kamma, nem fora; nem kamma subsiste (nos frutos que produziu). Kamma é vazio do seu fruto; nenhum fruto subsiste na ação. E, ainda, o fruto nasce de kamma, dependente de kamma. Para isso não há deus criador, nenhum criador do ciclo de nascimentos; apenas fenômenos em fluxo, dependentes da união de condições. [59]

Fenômenos naturais surgem inteiramente de causas, estão sujeitos a pressão, impermanentes, instáveis e inconstantes. Todas as coisas surgem de outras coisas em mútua dependência. Não há self pessoal ou externo dentro deste continuum.

Fenômenos dão origem a outros fenômenos, pela união das causas e condições. [70/27] O Buddha ensinou o Dhamma para a cessação das causas. Com a cessação das causas, o ciclo (vatta) é quebrado, e não gira mais. A vida santa (brahmacariya) existe para acabar com todo o sofrimento desta maneira. Quando nenhum ser pode ser encontrado, não há aniquilação, nem eternidade. [60]

Em resumo, o ensinamento de anattā sustenta os seguintes pontos:

A. Nega ambas as doutrinas de eternalismo e aniquilacionismo.
B. Nega a crença em um deus supremo que criou o mundo e governa o destino dos seres humanos, ou seja, o determinismo teísta (issara-nimmita-vāda).
C. É consistente com o ensinamento de kamma, tal como definido pelo Buddha-dhamma, ao mesmo tempo negando as doutrinas seguintes: a alegação de que as ações não têm resultados (doutrina da ineficácia da ação), a doutrina do determinismo pela ação do passado (pubbekatavāda), por exemplo, da Ordem Nigantha (jainismo); a doutrina do kamma envolvendo uma alma ou um sistema de castas (do hinduísmo, por exemplo); a afirmação de que as coisas ocorrem por acaso, sem causas (acidentalismo); e a doutrina do niilismo.
D. Revela o estado supremo, o objetivo final (parama-dhamma) do Buddhismo, que difere do objetivo das religiões que professam uma alma (attavāda).

 

Sumário

As Três Marcas de anicca, dukkha e anattā são conectadas; são três aspectos da mesma verdade, como é visto frequentemente no ensino do Buddha: o que é impermanente é dukkha; tudo o que é dukkha é não-eu (yad’aniccaṃ taṃ dukkhaṃ, yaṃ dukkhaṃ tad’anattā). Essa passagem é geralmente seguida pela declaração: o que é não-eu deveria ser visto com correta sabedoria, como realmente é, assim: “Isso não é meu, eu não sou isso, isso não é o meu eu” [61]. A relação é também evidente na frequente troca de perguntas e respostas:

‘É a forma material, etc, permanente ou impermanente?’ ‘Impermanente’.
‘E o que é impermanente é agradável ou doloroso?’ ‘Doloroso’.
‘Daquilo que é impermanente, doloroso e da natureza da mudança, é adequado considerar: ‘Isso é meu, isso sou eu, isso é o meu eu?’ [62]

Uma breve explicação da relação entre as três características, e do fato de que são três aspectos da mesma verdade, pode ser formulada assim: Todas as coisas se originam pela união de partes componentes. Cada uma destas partes surge, se mantém e se desintegra agindo, por sua vez, como condição para as outras partes, em perpétua transformação. [70/28] Pode-se referir a esse composto como um “continuum causal”, que tem as seguintes características:

1) O surgimento e a desintegração dos componentes; a instabilidade dos componentes ou de todo o processo: aniccatā.
2) A pressão sobre os componentes ou em toda a dinâmica de surgimento e declínio, a sua sujeição à mudança e a sua incapacidade de permanecer em um estado original: dukkhatā.
3) A ausência de um ‘núcleo’ fixo que governa a coleção de componentes, bem como a imposição aos componentes a estarem de acordo com as causas e condições; a característica de não-eu: anattatā.

Ao observar essas três características simultaneamente, qualquer objeto convencionalmente tido como uma entidade única é visto como um compósito de uma miríade de constituintes agrupados. Estes constituintes são instáveis, continuamente surgindo e desaparecendo. Eles se separam e se dispersam sujeitos à recíproca pressão e atrito, resultando em transformação. Eles dependem da relação de causas e condições que controlam e dão forma ao continuum particular. Nenhum dos componentes existe como um self; eles sucedem em conformidade com a causalidade, e não do desejo.

Embora o que é impermanente é dukkha e o que é dukkha é não-eu, o inverso, que o que quer que seja não-eu deva ser impermanente e dukkha, nem sempre é verdade. Todos os fenômenos condicionados (saṅkhāra) são impermanentes, sujeitos à pressão e vazios de um ego, mas todas as coisas (dhamma), tanto as coisas condicionadas quanto o Incondicionado (visaṅkhāra), embora vazias de um self, não precisam ser sempre impermanentes e dukkha. Existe algo que é permanente e livre de dukkha. O Incondicionado (Nibbāna), embora vazio de self, está além de ambos, impermanência e dukkha. Sendo assim, as definições das três características como facetas de uma verdade aplicável a fenômenos condicionados, seguem de acordo com a explicação do não-eu mencionada anteriormente. Da mesma forma, a qualidade de ser vazio de self do Incondicionado deve ser entendida em conformidade com a definição implícita descrita acima.

 

Traduzido por Jorge Furtado para o Centro Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2011 Edições Nalanda


Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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3 COMMENTS

  1. Claro e objetivo. Uma das melhores, senão a melhor, coisa que já li sobre anatta.

    Obrigado por compartilhar,

    Paulo

  2. Realmente da para se explicar anatta. Mas a tendencia comum é liga-la ao aniquilacionismo por não conseguir enxerga-la convenientemente. Outro ponto interessante é relacionar anatta a partir de um ser. Assim anatta entende anatta. Obrigado Jorge, um belo trabalho de tradução com palavras muito claras de entender em portugues.

    abçs

  3. Este texto é magnífico! E o que está publicado até aqui não é a metade ainda do que há.
    Sou muito grato ao professor Ricardo Sasaki pela oportunidade que me deu de estar trabalhando com ele neste texto. É uma felicidade muito grande para mim poder fazer a oferta deste texto em particular para a propagação do Buddhadhamma em língua portuguesa.
    Que os méritos deste trabalho frutifiquem em mentes mais próximas e aptas à prática do Caminho.
    Obrigado!

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