1. CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Um progresso duvidoso

No início, devemos reconhecer as bênçãos inumeráveis nos oferecidas pela ciência. Ninguém questionará o enorme valor que ela tem. Para conseguir dar esta palestra, viajei de Bangkok para Chiang Mai em apenas uma hora. Nos tempos do Rei Rama I, você teria de esperar três meses até que eu conseguisse chegar aqui e, nesse caso, eu provavelmente nem teria vindo. Devemos reconhecer a contribuição da ciência para viagens, sejam feitas de avião, de trem ou de carro.

Observando as comunicações atualmente, nós temos rádio, telefone, fax, televisão, vídeos, satélites e muito mais, graças aos avanços científicos e tecnológicos.

Outra área obviamente muito desenvolvida é a medicina, são tantas doenças contagiosas que foram praticamente erradicadas. Cólera é muito rara, na Ásia está quase extinta. Peste bubônica não existe mais. Varíola foi erradicada. Nós não precisamos mais temer essas doenças infecciosas. Antigamente uma pessoa poderia morrer com apenas um apêndice infectado, mas hoje em dia uma apendicectomia é uma operação relativamente simples. Mesmo operações cerebrais estão ficando mais fáceis. Ferramentas sofisticadas para análise e diagnóstico precisos são cada vez mais acessíveis. Máquinas de raio X estão sendo substituídas por máquinas de raio X computadorizadas e agora temos ultra-som e ressonância magnética. Quase já não é necessário que o médico examine o paciente, as máquinas podem fazer isso por ele. Estes são exemplos extremamente valiosos de avanços tecnológicos.

E temos também eletricidade e inúmeros dispositivos economizadores de trabalho. A impressão e a publicação têm progredido surpreendentemente. Máquinas que antes se pensava serem bastante complexas, como os relógios, agora são consideradas insignificantes. Os relógios de casa costumavam ser muito grandes, pesados e difíceis de utilizar. Tinham que ser acertados ou os seus pesos puxados todos os dias. Agora temos relógios de quartzo. Eles são simples, baratos e muito mais precisos do que os antigos relógios. Os instrumentos de escrita são tão comuns e baratos: há vinte anos você teria de cuidar muito bem da sua caneta, mas agora elas são tão baratas que você apenas as usa e joga fora. Tudo é tão abundante e conveniente. Agora os seres humanos estão indo para o espaço e desenvolvendo computadores, que estão na vanguarda da tecnologia.

O campo da biologia tem visto o desenvolvimento da engenharia genética, o qual pode produzir novas ou especialmente adaptadas espécies de plantas e de animais. É quase impossível listar todos os avanços tecnológicos que temos hoje.

Mas, por outro lado, quando realmente investigamos isso, observamos que a ciência e, em particular a tecnologia, também criaram muitíssimos problemas para a humanidade. No momento presente, particularmente nos países altamente desenvolvidos, há mesmo o medo de que a raça humana, e o mundo inteiro, encontrem a destruição por meio desse progresso tecnológico. Poderia ser um tipo de destruição instantânea, com o apertar de um botão, por assim dizer, ou poderia ser um tipo de destruição gradual e lenta, tal qual a deterioração paulatina do ambiente, um problema bastante crítico nos dias de hoje.

Mesmo dentro do imediatismo da nossa vida cotidiana, somos ameaçados por perigos. Não podemos ter certeza se a nossa comida foi embebida em produtos químicos ou não. Às vezes, as plantas e os animais, nosso suprimento de alimentos, são tratados com hormônios para estimular o seu crescimento. Porcos recebem aditivos especiais para dar a sua carne uma cor muito vermelha. Substâncias venenosas às vezes são usadas em alimentos como conservantes, realçadores de sabor ou corantes, para não mencionar o uso descontrolado de agrotóxicos (x). Algumas das pessoas que vendem esses alimentos não ousariam comê-los eles mesmos!

(x) Algumas dessas práticas têm ocorrido na Tailândia nos anos recentes.

 

A alienação da ciência e da natureza

Nesse sentido, a ciência parece ter invadido o mundo natural. Nossa percepção é de que a ciência e a natureza são entidades separadas, apesar do fato de a ciência ser o estudo da natureza e ter sempre existido ao seu lado. A ciência é, basicamente, una com a natureza, mas nos dias de hoje a maioria das pessoas sente que o que nós chamamos de ciência não é natural. Produtos da tecnologia são frequentemente chamados de ‘artificiais’: nós temos ‘pulmões artificiais’, ‘rins artificiais’ e por aí vai. A ciência parece ser um intruso na natureza.

Esta ‘manipulação da natureza’ implica que o mundo da natureza pode, no devido tempo, tornar-se um mundo da ciência. Quando a ciência tiver invadido completamente o mundo da natureza, podemos ser deixados com apenas um mundo científico, ou mundo ‘artificial’. Os seres humanos são seres naturais, vivendo em um mundo natural, mas no futuro nós talvez nos encontremos vivendo em um mundo artificial. Se queremos que os seres humanos vivam harmoniosamente com esse mundo artificial pode ser necessário adaptar o corpo humano, nos tornando pessoas artificiais vivendo em um mundo artificial. No presente momento este não é o caso, nós não estamos em harmonia com nosso ambiente. Quando estamos fora de sintonia com a natureza, estamos fadados a ter problemas.

Sob esta luz, o progresso científico não parece ter sido muito harmonioso. A ciência, em suas tentativas de “melhorar” o ambiente humano, parece tê-lo transformado em um mundo científico. Muitas novas e emocionantes invenções têm sido criadas, mas a ciência não foi capaz de ajustar a vida das pessoas para encaixá-las. O progresso da ciência transformou o ambiente físico externo em um mundo científico ou artificial.

Para os seres humanos, dotados de corpo e mente, a parte que deveria corresponder ao mundo físico externo é o seu corpo. Mas o que encontramos em vez disso é que a mente está se adaptando. A ciência tem transformado a mente das pessoas em mentes artificiais: mentes que apreciam a ciência e aspiram a coisas artificiais, mentes que estão alienadas da natureza. Existe conflito aqui, tanto interna como externamente. Internamente, a mente e o corpo estão em desacordo um com o outro, enquanto externamente, o corpo biológico, físico, está em desacordo com o mundo científico. Ainda enquanto um organismo puramente natural, que precisa de ar puro, água pura e alimentos puros, o corpo está tendo problemas com essas mesmas coisas. O ar, a água e os alimentos não são puros, eles vêm sendo alterados pela ciência.

Nesta conjuntura, pode ser necessário para a humanidade decidir sobre o rumo a se tomar. Seja para uma humanidade natural, vivendo em um mundo natural, ou se tentar fazer um “humano científico”, para o mundo científico.

 

Dois tipos de tecnologia

Essa aplicação da ciência que realiza as mudanças no mundo natural, transformando-o num presumível mundo artificial, é aquilo a que chamamos ‘tecnologia’. Contudo, para existir, a tecnologia depende do conhecimento obtido através da ciência. A tecnologia é o instrumento, ou o canal, que a humanidade tem usado para manipular a natureza na sua busca pelo conforto material mas, simultaneamente, os perigos que ameaçam a humanidade são também inerentes a essa tecnologia. Assim, a tecnologia é tanto um instrumento para encontrar a felicidade como também é o catalisador do perigo.

Agora, em resposta a tudo isso, os cientistas podem contrapor que a palavra ‘ciência’ refere-se à Ciência Pura. A Ciência Pura busca apenas descobrir e revelar a verdade, se ocupa apenas com a busca de conhecimento. O que quer que alguém deseje fazer com esse conhecimento só diz respeito a este alguém, não é problema da ciência. A Ciência Pura tende a se afastar da responsabilidade com respeito a isso.

A ciência tem a tendência a acusar a tecnologia de usar o conhecimento adquirido pela ciência para seus próprios propósitos, mas a tecnologia não vem usando esse conhecimento exclusivamente para seus próprios propósitos. O propósito inicial da tecnologia foi o de beneficiar a humanidade, embora tenhamos dois tipos de tecnologia atualmente. A primeira é a tecnologia usada para criar benefícios, enquanto a outra é usada para buscar benefícios. O que precisamos é a tecnologia usada para criar benefício, porém, os problemas atuais existem porque a tecnologia moderna é a do tipo que busca benefícios.

Se pudermos nos restringir da criação de benefício, as repercussões decorrentes serão poucas e distantes entre si. Mas, sempre que a tecnologia for usada para obter benefício, problemas surgirão, como podemos ver no tempo presente. Portanto, devemos fazer uma distinção clara entre a tecnologia para a criação de benefício e aquela usada para obter benefício.

 

O lugar da ética

É uma questão da forma como se utiliza, seja como uma utilização errada do conhecimento científico, a utilização da tecnologia para procura de benefício, ou ainda para destruição do planeta. Os problemas que surgem com a tecnologia nasceram, integralmente, do resultado da utilização do ser humano. Como o problema nasce nos seres humanos, então resume-se a uma questão de ética ou moralidade.

Esses problemas podem ser resolvidos simples e diretamente apenas quando existir moralidade. Apenas assim a tecnologia e a ciência poderão ser utilizadas para fins construtivos. Mesmo que hajam algumas consequências danosas, advindas da falta de prudência ou da ignorância, sua prevenção ou retificação se darão no mais alto nível.

A humanidade tem buscado a ciência e a tecnologia para beneficiar a sociedade, mas ambas não garantem que trarão apenas os benefícios esperados. Essas coisas estão totalmente à disposição do usuário para criar danos ou benefícios, dependendo de como são utilizadas.

Se ignorarmos moralidade e ética, em vez de criar benefícios, o mais provável dos resultados será o de que a ciência e a tecnologia trarão problemas, à medida que enfatizam a produção e o consumo irrestritos de bens que satisfazem os sentidos, alimentando desejos e ganância (raga e lobha); aumento gradativo do poder de destruição (dosa); e aumentando a viabilidade e a intensidade dessas influências que jogam as pessoas na ilusão e falta de cuidado (moha). Fazendo isso, a tecnologia destrói a qualidade de vida e polui o meio ambiente. Apenas a ética verdadeira pode aliviar essas influências destrutivas.

Sem ética, o progresso tecnológico, até mesmo o de tipo benéfico, tende a aumentar a propensão para a destruição. Quanto mais a ciência e a tecnologia avançam, mais intensamente a destruição parece ameaçar a humanidade; quanto mais elas são desenvolvidas, mais ética é necessária, e mais a estabilidade e o bem-estar da humanidade irão depender disso.

Em qualquer dos casos, este tema da ética, embora simples e direto, é amplamente ignorado nos tempos modernos. A maioria das pessoas quer viver sem problemas, mas não quer resolver problemas. Como eles não querem resolver problemas ou lidar com a ética, devem estar preparados para sofrer problemas.

 

Ciência e tecnologia não podem ser separadas

Ciência e tecnologia têm sempre apoiado uma à outra.  E não é somente a Ciência que tem fomentado o crescimento da tecnologia – a tecnologia tem sido também um fator decisivo no desenvolvimento da  ciência. E o que é que tem possibilitado a ciência de progredir até aonde ela está agora? O método científico. Uma parte essencial do  método científico é a observação e a experiência. As mais antigas formas de observação e experiência foram levadas a cabo através dos cinco sentidos – olho, ouvido, nariz, língua e corpo, especialmente  os olhos para olhar, os ouvidos para ouvir e as mãos para tocar.

Entretanto, os órgãos humanos dos sentidos são limitados. Podemos ver, a olho nu, um número limitado de estrelas e uma porção limitada do universo. À medida que a tecnologia se desenvolveu, o telescópio foi inventado. A invenção do telescópio capacitou a ciência a dar um grande salto à frente. Organismos microscópicos, invisíveis a olho nu, tornaram-se visíveis por meio da invenção do microscópio. Novamente a ciência fez avanços. A ciência pura, como se vê, dependeu pesadamente da tecnologia para seu progresso.

É óbvio que essas duas disciplinas têm influenciado uma à outra. As ferramentas utilizadas para a pesquisa científica são produtos da tecnologia. É por isso que a ciência e a tecnologia têm estado inseparavelmente ligadas ao longo do caminho de seu desenvolvimento. Nos dias atuais, os cientistas estão olhando para o computador, o instrumento do futuro, para continuar sua busca pela verdade. O computador é capaz de recolher e confrontar enorme quantidade de informações, muito mais do que a mente humana normal seria capaz de fazer. No futuro, o computador será indispensável no teste de hipóteses e na formulação de teorias.

Contudo, os benefícios criados pela ciência aparecem para a massa de pessoas através de suas manifestações tecnológicas. A humanidade deve, no entanto, aprender a escolher entre a tecnologia que cria benefício e tecnologia para a busca do benefício.

 

Atingir os limites, sem encontrar resposta

No momento atual, os avanços da ciência têm sido tão vastos que parecem estar se aproximando dos limites do universo físico. A ciência tem limitado suas investigações ao mundo físico, mas como se aproxima dos limites desse mundo, ela vem se voltando para o mundo psíquico. Um número considerável de cientistas estão se tornando interessados nos mistérios da mente. O que é a mente? Como isto funciona? O que é a consciência? Será que ela surge de uma fonte física? Ou é completamente separada do mundo físico? Nos dias de hoje, os computadores têm Inteligência Artificial. Será que o desenvolvimento da Inteligência Artificial vai criar computadores com mentes? Esta é uma pergunta que alguns cientistas estão especulando a respeito. Isso indica que a ciência está começando a invadir os limites da mente.

Analisando os métodos modernos de observação e verificação vemos que eles transcenderam as limitações dos cinco sentidos. Previamente, os cinco sentidos haviam sido instrumentos suficientes de observação – o olho nu, os ouvidos e as mãos. Mais tarde, nos apoiamos em instrumentos para expandir suas capacidades limitadas. Sempre que os sentidos se tornaram incapazes de perceber além, lançamos mão desses instrumentos tecnológicos.

Mas agora, mesmo com estes instrumentos, sentimos que atingimos o nosso limite. A este passo, a investigação científica é reduzida a símbolos matemáticos. A linguagem da matemática é usada para transmitir o significado de conceitos, reduzindo o universo a um mundo de símbolos.

À medida que a observação, a experimentação e a análise adentram a esfera da “psique”, a ciência retém sua atitude básica e seu método de experimentação e, assim, é reduzida à conjectura e à crença. Há muita crença ou pré-concepções, nesse tipo de observação. À medida que ela se aproxima das fronteiras de mente, resta saber se a ciência pode, de fato, adentrá-la e porque meios.

 

Valores e motivações

Vamos agora voltar e olhar para o nascimento da ciência e como ela se desenvolveu até seu estado atual.

Apesar de a Ciência Pura gostar de ser distinguida da Ciência Aplicada e da tecnologia, no entanto, a Ciência Pura compartilha parte da responsabilidade pelos danos resultantes dessas coisas. De fato, nos últimos cem anos ou mais, a Ciência Pura não tem realmente sido tão pura. Isso ocorre porque há um conjunto de valores implícitos no interior da Ciência Pura, algo de que a fraternidade científica não tem consciência; e por não estar ciente desse conjunto de valores, a ciência torna-se, sem saber, objeto de sua influência.

Qual é a fonte da ciência? Todas as ciências, sejam elas ciências naturais ou sociais, são, de fato, baseadas em conjuntos de valores. Tome a economia como exemplo. Qual a origem da economia? Qual é a sua fonte? Querer é a fonte da economia. E o que é o querer? Isso pode ser observado com qualquer um dos cinco sentidos? Não, não pode. Essa é uma qualidade da mente, um valor. A disciplina conhecida como ciência afirma que é livre de valores, mas, de fato, ela nunca pode ser livre de valor.

Agora, onde está a fonte da ciência física? A fonte, ou motivação, da ciência é o desejo de conhecer a verdade da natureza, ou realidade. Essa resposta é aceitável para a maioria dos cientistas, e de fato foi dada por um cientista. O desejo de conhecer as verdades da natureza, juntamente com a crença de que a natureza tem leis constantes e funciona de acordo com causa e efeito, são as duas premissas básicas sobre as quais a ciência baseia sua busca pelos segredos da natureza.

A base da ciência está no interior da mente humana, no desejo de conhecer e na fé. Sem essas duas qualidades mentais, teria sido impossível para a ciência crescer e desenvolver-se.

A motivação que dirigiu os primeiros desenvolvimentos da ciência, e que ainda existe até certo ponto, foi o desejo de conhecer as verdades da natureza. Esta foi uma espécie de desejo relativamente pura. Mais tarde, esse desejo de saber foi reprimido pela Igreja, na Idade das Trevas. A Igreja Cristã estabeleceu um tribunal para avaliar a dimensão da fé das pessoas, conhecida como a Inquisição. Aqueles que duvidavam da palavra da Bíblia ou faziam declarações que lançassem dúvidas sobre ela, eram trazidos perante este tribunal e levados a julgamento, e se fossem considerados culpados, eram punidos. Galileu foi um dos levados a julgamento. Ele havia dito que a Terra girava em torno do sol, e quase foi condenado à morte por envenenamento por esse ensinamento. No último momento, ele declarou-se culpado e foi absolvido; ele não morreu, mas muitos outros foram queimados vivos na fogueira.

Naquele tempo havia forte repressão da busca pela verdade. Mas quanto mais forte a supressão, mais forte a reação. Então aconteceu que esta repressão e restrição da Idade das Trevas intensificou o desejo de conhecer as verdades da natureza, e este desejo instilou-se no pensamento das culturas ocidentais, onde tem permanecido até os dias atuais.

Mesmo assim, essa intenção ainda pode ser considerada um desejo relativamente puro por conhecimento. A ciência que nós temos hoje em dia, no entanto, não é mais tão pura. A ciência que está sendo desenvolvida atualmente foi influenciada por dois grandes sistemas de valores ou preconceitos, que impregnaram o progresso da ciência e controlam a direção das pesquisas e aprendizado.

Quais são estes dois valores? Eles são:

  1. O impulso para conquistar a natureza ou o entendimento de que a prosperidade da humanidade depende da submissão da natureza.

Essa forma de pensar vem da fé cristã de que Deus criou a humanidade a sua imagem para controlar o mundo e dominar a natureza. Deus criou a natureza, e tudo o que faz parte dela, para usufruto do homem. A humanidade é o líder, o centro do universo, o mestre e aprende os segredos da natureza para manipulá-la conforme seus desejos. A natureza existe para uso do homem.

Um texto ocidental afirma que essa ideia é responsável pelo progresso científico ocidental. O texto afirma que, nos tempos antigos, o Oriente, particularmente a China e a Índia, eram cientificamente mais avançados do que o Ocidente, mas devido à influência dessa ideia de conquistar a natureza, o Ocidente finalmente ultrapassou o Oriente, e manteve-se à frente até o tempo presente.

Então, o primeiro e mais importante sistema de valor é a crença no direito do homem de conquistar a natureza, o que proporcionou o incentivo (e a justificativa) para tais ações. Agora chegamos à segunda grande influência:

  1. A crença de que o bem-estar depende de uma abundância de bens materiais.

Essa linha de pensamento também exerceu uma influência muito poderosa sobre a expansão industrial do Ocidente. Originariamente, as indústrias no Ocidente foram criadas para resolver o problema da escassez, que é encontrada ao longo da história ocidental. A vida nos países ocidentais foi assolada por forças elementares hostis, como os invernos congelantes, o que tornou impossível o cultivo. As pessoas em tais lugares tiveram que viver uma vida extremamente árdua. Não só estavam sujeitas a baixas temperaturas congelantes, mas também à escassez de alimentos. A vida era uma luta pela sobrevivência, e esta luta levou ao desenvolvimento da indústria.

Agora, o que é o oposto da escassez? O oposto da escassez é a abundância. As pessoas nos países ocidentais pensaram que quando o problema da escassez fosse resolvido, elas seriam felizes. Isso, então, foi o impulso por trás do desenvolvimento da Revolução Industrial – a conscientização da escassez e o desejo de prover em suficiência, o que por sua vez foi baseado na visão de que abundância material era o pré-requisito para a felicidade

Esse tipo de pensamento desenvolveu-se em materialismo, que por sua vez se tornou consumismo, a que uma contribuição significativa foi feita pelos industriais, sob a influência da primeira linha de pensamento mencionada acima. A primeira ideia mencionada apenas agora foi a crença no domínio do homem sobre a natureza. Juntamente com a ideia de que a felicidade é dependente de uma abundância de bens materiais, temos a convicção de que a natureza tem de ser conquistada, a fim de produzir bens materiais para atender aos desejos do homem. Estas duas formas de pensar são inter-relacionados e reforçam-se mutuamente.

É como se o puro desejo por conhecimento mencionado anteriormente tenha sido corrompido, sofrendo a influência dos desejos de conquistar a natureza e produzir abundância de bens materiais ou materialismo. Quando esses dois valores entram em cena, aquele desejo puro e simples por conhecimento se torna um instrumento para satisfazer os objetivos desses valores secundários, dando lugar ao surgimento de uma relação de exploração com a natureza.

A suposição é que conquistando a natureza, a espécie humana pudesse criar bens materiais sem limite, que atendesse aos seus desejos, resultando na paz perfeita. Tanto progresso que foi alcançado nos tempos correntes, especialmente desde a Revolução Industrial. Também foi dito que a ciência que se desenvolveu recentemente, na Idade Industrial, é uma serva da indústria.

Todos podemos provavelmente concordar que a prosperidade experimentada nos últimos tempos é a prosperidade da indústria. Atualmente, no entanto, enquanto os tailandeses estão entrando com todo o coração na era industrial, o ocidente a está superando. A Tailândia gostaria de se chamar um NIC (New Industrialized Country , ou seja, um Novo País Industrializado), mas os ocidentais atravessaram agora esta fase, em direção a uma era pós-industrial, a era da informação. A ciência é o fator importante em ambos os casos. A ciência pode alegar que abriu o caminho para a indústria, mas a indústria diz: “A ciência? Ela é minha serva!”

Juntamente com o desenvolvimento industrial temos observado o aparecimento gradual, em cada vez maior gravidade, de nocivos efeitos contingentes a ele. Agora, com o perigo que nos ameaça advindo da destruição do meio ambiente, isso tudo é muito claro.

A causa disto são estas duas ideias: o desejo de conquistar a natureza e o materialismo. Juntas colocam firmemente a humanidade no caminho da manipulação e, como consequência, a danificação da natureza numa escala crescente. Além disso, esses dois impulsos são a causa das lutas interiores da humanidade, o conflito entre os indivíduos para arrebatar para si tanto conforto material quanto possível. Pode até dizer-se que o homem moderno teve de experienciar as consequências nocivas do desenvolvimento industrial do século passado, essencialmente devido a essas duas assunções.

 

Por trás da prosperidade…

Estas duas hipóteses não são toda a imagem. Há também duas grandes tendências que têm servido para apoiá-las:

  1. Especialização: A Era Industrial foi a época da especialização. Ramos de aprendizagem foram subdivididos em campos especializados de conhecimento. Cada um desses ramos do conhecimento pode ser muito proficiente em seu respectivo campo, mas no geral, os diferentes campos não se integram.

O propósito original dessa especialização do aprendizado era obter conhecimento num nível mais detalhado e juntar todas essas áreas do conhecimento num todo integrado, mas os especialistas ficaram cegos pelo seu conhecimento, dando origem a um tipo desequilibrado de especialização, uma visão radical. No campo da ciência há aqueles que sentem que apenas ela resolverá todos os problemas da humanidade e responderá todas as dúvidas, o que lhes deixa pouco inclinados a integrar seu aprendizado a outros campos do conhecimento.

Este tipo de perspectiva produziu a crença de que a religião e a ética são também áreas especializadas de aprendizagem. A educação moderna reduz a ética a apenas mais um assunto acadêmico. Quando as pessoas pensam em ética, elas pensam: “Oh, religião”, e arquivam isso num pequeno compartimento. Elas não estão interessadas. Mas quando se trata de resolver os problemas do mundo, dizem: “Oh, meu campo de estudo pode fazer isso!” Elas não pensam em tentar integração com outras disciplinas. Se elas realmente fossem capazes de resolver todos os problemas, elas teriam que ser capazes de resolver os éticos também. Mas eles dizem que a ética é uma preocupação da religião, desta ou daquela área de especialização. Isto leva-me à segunda atitude que eu gostaria de mencionar:

  1. A crença de que os problemas éticos podem ser resolvidos sem a necessidade da ética. Os defensores desta ideia acreditam que quando o desenvolvimento material atingir o seu pico, todos os problemas éticos desaparecerão por si mesmos. De acordo com este ponto de vista, não é necessário treinar os seres humanos ou desenvolver a mente. Esta é uma linha de raciocínio que apareceu recentemente no campo da economia. Alguns economistas dizem que se a economia for saudável e os bens materiais abundantes, não haverá mais qualquer disputa, e a sociedade será harmoniosa. Isto está simplesmente a dizer que os problemas éticos ou morais podem ser resolvidos através de meios materiais, sem a necessidade da ética.

Isto não está totalmente errado. Situações econômicas têm certa influência sobre problemas éticos, mas é demasiado simplista acreditar que se a economia é saudável, os problemas éticos vão simplesmente desaparecer.

Poderia ser dito, ainda que jocosamente, que essa linha de argumentação é verdadeira, em certo sentido, porque sem princípios morais seria impossível a economia ser saudável. Poderia ser dito, alternativamente, que se a prática ética fosse boa (por exemplo, as pessoas fossem encorajadas a serem diligentes, generosas, prudentes, e a usarem suas posses de modo útil para a sociedade), então os problemas econômicos desapareceriam.

A afirmação “quando a economia está bem, os problemas éticos não surgirão” é verdadeira no sentido em que antes de a economia poder ser saudável, os problemas éticos devem ser enfrentados. De modo similar, a afirmação “quando os problemas éticos estão resolvidos, a economia será saudável” é verdadeira no sentido em que antes de que os problemas éticos possam ser resolvidos, os problemas econômicos devem ser enfrentados.

A frase “problemas éticos” se encaixa em uma ampla gama de situações, incluindo saúde mental e a busca pela felicidade. Assim, a resolução de problemas éticos por meio de meios materialistas implica necessariamente em lidar com estados de humor e sentimentos, cujos exemplos podem ser vistos na sintetização de tranquilizantes para aliviar o stress, a preocupação, a depressão e a tristeza. Todavia seria um erro tentar resolver problemas éticos por meio de tais meios. Esse tipo de alívio é somente temporário. Ele somente abranda o problema, não o resolve. Podemos voltar a esse ponto mais tarde.

Muitos ramos de aprendizagem gostariam de ser reconhecidos como ciências definitivas, mas a perspectiva especializada causa uma visão afunilada, discórdia, e em si tornam-se um obstáculo à ciência verdadeira. Os especialistas são incapazes de serem cientistas verdadeiros. Mesmo a física não pode ser chamada de ciência verdadeira, porque lhe falta totalidade; seus fatos são graduais, sua verdade é parcial. Quando a verdade é parcial, não é a verdade autêntica. Com apenas alguns dos fatos conhecidos, quaisquer deduções feitas não estarão de acordo com a realidade total. O fluxo de causa e efeito não é visto em sua inteireza e, assim, a verdade permanece fora de alcance.

Essas duas crenças ou atitudes (isto é, a especialização e a crença de que os problemas éticos podem ser resolvidos através de meios materiais) permeiam a Era da Industrialização. Juntamente com as duas linhas de raciocínio anteriormente mencionadas, os problemas são intensificados em conformidade.

Aqui eu iniciei um curso de inquérito. Pode haver alguns de vocês que estão se perguntando o que tudo isso tem a ver com religião. Em resposta eu gostaria de dizer que neste momento estamos começando a nos aproximar do domínio da religião. Muitos dos pontos que mencionei até agora estão dentro do domínio da religião, mas, para ver isso mais claramente, eu gostaria de refazer meus passos e voltar ao assunto da própria religião. Tenho falado sobre a ciência, suas origens e desenvolvimento, agora vamos dar uma olhada na origem e desenvolvimento da religião e tentar integrar os dois de alguma forma.

 


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com Buddhadhamma Foundation
Para Distribuição Gratuita
© 2014 Edições Nalanda

Nota: “Escritos sobre o Buddha Dhamma” consiste de um conjunto de escritos de um dos mais respeitados monges da Thailândia contemporânea, Venerável Ajahn Payutto.


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